Rússia 1917 | A reviravolta decisiva: As “Teses de Abril” de Lenin
Publicado no Jornal Combate Socialista n° 81
Por Diego Vitello, da Coordenação da CST-PSOL
O ano de 1917 é, sem sombra de dúvidas, de uma intensidade política gigantesca na Rússia. Revolução democrático-burguesa em fevereiro, Revolução Socialista em outubro. Porém, entre uma e outra, há acontecimentos fundamentais que vão determinar o curso desse processo revolucionário que, neste ano, celebramos seu centenário. Um deles, com certeza, é a chegada de Lenin na Rússia em abril e o impacto da reviravolta política que ele propunha, que ficou eternizada nas “Teses de Abril”.
Após a queda do Czar houve a formação de um Governo Provisório, montado pela burguesia com o “apoio crítico” e participação dos partidos que tinham maior peso político nos sovietes de deputados operários e camponeses (Mencheviques e Socialistas-Revolucionários). A discussão sobre o caráter desse governo e a política frente a ele será motivo de uma intensa luta política que ocorrerá dentro do Partido Bolchevique após a chegada de Lenin no país.
A hesitação inicial do Partido Bolchevique
É importante aclarar a situação do partido bolchevique. Antes da Revolução de Fevereiro, o partido bolchevique vivia em duras condições de clandestinidade. Sendo assim, boa parte de sua direção vivia no exterior, inclusive Lenin. Mesmo com essas dificuldades, mantinha um partido enraizado nas grandes fábricas de Petrogrado e Moscou, os dois grandes centros industriais da Rússia no início do século XX.
Logo após a derrubada do Czar, podemos dizer que a direção do partido, que estava dirigindo sua atuação na Rússia, vacilou e capitulou ao Governo Provisório da burguesia. Os principais dirigentes que estavam em solo russo, operando esse brutal equívoco, eram Kamenev e Stalin. A estratégia de derrubar o governo burguês esteve ausente da política do partido nos dois primeiros meses de governo, até a chegada de Lenin.
Acreditamos que esse relatório escrito por Stalin, ainda em abril, resume bem a posição vacilante do partido:
“O poder é partilhado ente dois órgãos, mas todo o poder ninguém possui. Fricções e uma luta entre eles existem e devem continuar. Os papeis são partilhados. O Soviete tomou a iniciativa das transformações revolucionárias: o Soviete é o líder revolucionário do povo rebelado, órgão controlando o governo provisório. Mas o governo provisório tomou de fato o papel de consolidar as conquistas do povo revolucionário. O Soviete mobiliza as forças, exerce um controle. O governo provisório, resistente, atrapalhado, pretende consolidar as conquistas que o povo efetivamente fez.” (TROTSKY, Leon. A História da Revolução Russa).
Ou seja, a orientação de preparar a derrubada do governo provisório não tinha nada a ver com a política da maioria da direção bolchevique. Pelo contrário, era uma política de apoio crítico ao novo governo, que, segundo o relatório, “consolida conquistas do povo revolucionário.”
Lenin começa o trabalho de disputa política com cartas enviadas à direção do partido, que escreve da Suíça, onde vivia exilado. Numa delas, datada de março, já colocava: “Nossa táctica: desafio completo, nenhum apoio ao novo governo: desconfiemos de Kerensky: armamento do proletariado”. (LENIN, Vladimir. Cartas de Longe).
Trotsky relata, nos tomos de sua magistral obra “A História da Revolução Russa”, que surgiam, na base operária do partido, importantes críticas à conduta da direção de apoio crítico ao governo. No famoso bairro de Vyborg, onde existiam imensas fábricas e os bolcheviques tinham um bastião político há muitos anos, os operários votam, numa reunião aberta do partido, em não confiar nas promessas do governo provisório.
Havia, na verdade, na cúpula do partido bolchevique, um velho esquema que era preciso ultrapassar. Kamenev e Stalin, os principais dirigentes do partido na Rússia, professavam ainda de uma tese semi-etapista da revolução. Em resumo, que era preciso alguns anos de desenvolvimento burguês para que as condições políticas amadurecessem para a tomada do poder pelo proletariado. Ou seja, que a Rússia não estava amadurecida para começar a construção do socialismo. Semelhante concepção, professavam os mencheviques. Kamenev, em discussão com Lenin, chega a colocar: “Lenin está errado quando diz que a revolução democrática-burguesa está terminada… Sobrevivência clássica do feudalismo – a propriedade latifundiária dos nobres – ainda não está liquidada… O Estado não se transformou em sociedade democrática… É muito cedo para dizer que a democracia burguesa esgotou todas as suas possibilidades.” (TROSKY, Leon. A História da Revolução Russa).
“É preciso explicar pacientemente…”
Após uma audaciosa e arriscada viagem, passando pela Alemanha, Lenin desembarca na Rússia em 03 de abril. Sua chegada tem importante impacto político e o partido bolchevique se agita em debates.
Lenin, para explicar suas posições, escreve as “Teses de Abril”, texto curto e de fácil compreensão, visto que ele objetivava que tivesse o maior alcance possível.
A cúpula do partido crê que o afastamento de Lenin da Rússia é que estava gerando essa posição e, a partir do conhecimento maior da realidade, ele entraria de acordo com a política do partido. Na verdade foi o contrário. Quanto mais Lenin tomava conhecimento da situação russa naquele abril de 1917, mais dura era sua batalha para modificar a linha do seu partido.
Em resumo, as teses de Lenin colocam: A guerra é uma guerra imperialista, onde o proletariado de cada país deve aproveitar a situação para derrotar a sua própria burguesia e não apoiá-la de forma alguma. Reafirma que o momento pós-fevereiro deve ser de uma transição, a mais rápida possível, para que o poder passe para as mãos do proletariado. Chama as massas a não confiar no Governo Provisório de maneira nenhuma. Diz que pelo seu caráter de governo burguês, imperialista, não quer de forma alguma sair da guerra. O Governo Provisório, por sua vez, dá declarações permanentemente dúbias, coloca, perante as massas, que sua intenção é sair da guerra, porém o seu compromisso real era com a burguesia, que não tinha interesse em sair da guerra.
As massas ainda apoiavam e tinham esperanças no governo provisório que assume as rédeas do país após a queda do Czar. Lenin diz que é preciso manter-se intransigente na oposição ao governo, “explicando pacientemente” à classe operária o verdadeiro caráter do novo governo.
Ele explica: “A república que saiu da insurreição de Fevereiro não é a nossa república, e a guerra que trava não é a nossa guerra. A tarefa para os bolcheviques é de derrubar o governo imperialista. Mas este mantém-se graças ao apoio dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques, os quais se apoiam na confiança das massas populares. Estamos em minoria. Nessas condições, está fora de questão um ato de força da nossa parte. É necessário ensinar às massas a não se fiar nos conciliadores e nos partidários da defesa nacional. É preciso dar pacientemente explicações.” (LENIN, Vladimir. Teses de Abril)
O rearmamento do partido: os bolcheviques começam sua marcha para o poder
Lenin participa de intensos debates em torno das suas teses entre os meses de abril e maio. Nos setores operários do partido, que já vinham contestando a linha política inicial, as teses de Lenin são muito bem recebidas.
Com o passar dos dias, vai ficando claro que o Governo Provisório não tem nenhuma intenção de sair da guerra. Que é um governo débil, em crise permanente.
As condições de vida de amplas massas pioram a cada dia. No front, as condições, já insuportáveis, dos soldados iriam se aprofundar. Os camponeses e operários continuariam a ser recrutados para servir de bucha de canhão da política imperialista da burguesia. O descontentamento generalizado com a permanência do governo na guerra, a queda brusca do nível de vida das massas, contribuía enormemente para que as Teses de Lenin ganhassem espaço político.
A política de Lenin frente ao governo provisório mostra sua extrema justeza. Frente aos vacilos e oscilações da maioria do comitê executivo até sua chegada, seu papel assume uma gigantesca importância.
Lenin, construtor histórico da fração bolchevique, com imenso “faro” para expressar o sentimento de amplas massas operárias, produto do próprio desenvolvimento do jovem e concentrado proletariado russo, foi, sem dúvidas, determinante para a batalha pelo rearmamento do partido.
Trotsky e as Teses de Abril
As Teses de Abril marcam também uma aproximação importantíssima de Trotsky com o partido bolchevique. A reorientação do partido será fundamental para que ele comece a colaborar com os bolcheviques e acabe por entrar no partido em agosto. Ele que ao lado de Lenin dirigiu a Revolução de Outubro, vinha desde 1905 escrevendo e teorizando sobre a incapacidade da frágil burguesia Russa de levar à frente um projeto de desenvolvimento nacional aplicando a fundo reformas democráticas como a Reforma Agrária. Para as reformas democráticas, será preciso que o proletariado tome o poder, as realize e as combine com as tarefas socialistas. Essa teoria foi batizada de “Revolução Permanente”. Trotsky conta uma lembrança acerca desse período: “Recordo que pouco depois de chegar em São Petersburgo, eu disse a Kamenev que eu estava identificado totalmente com as famosas “teses de abril” de Lenin, na qual se marcava a nova orientação do partido, e Kamenev me contestou: “Naturalmente!” (TROTSKY, Leon. Minha Vida).
Uma lição das “Teses de Abril” para os nossos dias
Trotsky classificou o governo que é produto da revolução democrático-burguesa de fevereiro como o “primeiro governo de frente-popular da história”. A presença do partido menchevique, que tinha base operária, e do partido Socialista-Revolucionário, de base camponesa, em um governo em comum com a burguesia russa, que tinha como principal representante o partido cadete, foi a conformação do primeiro governo de conciliação de classes da história.
A atitude intransigente de Lenin frente ao governo, materializada nas “Teses de Abril”, é um exemplo a ser seguido. Nos governos onde partidos operários e camponeses governam ao lado de partidos burgueses, a política, inevitavelmente, é ditada pela burguesia. Sendo assim, a tarefa estratégica da classe operária e de suas organizações revolucionárias, deve ser derrubá-lo e não apoiá-lo em pequenas reformas que nada mais visam do que desmobilizar a classe trabalhadora.