Fevereiro de 1917: A Revolução que derrubou o Czar
por Diego Vitello – Coordenação Nacional da CST-PSOL
“Em cada fábrica, em cada corporação, em cada companhia militar, em cada taberna, nos hospitais da tropa, a cada aquartelamento, e mesmo nos campos despovoados, progredia um trabalho molecular da ideia revolucionária.” Leon Trotsky
Há 100 anos um importante processo revolucionário derrubou um regime que imperou na Rússia por quase quatro séculos (1547 – 1917). Esse processo entrou para a história como “Revolução de Fevereiro” e derrubou o Czar Nicolau II, que governava a Rússia desde 1894. Fevereiro dá início a um período conturbadíssimo na Rússia, de intensos conflitos sociais, onde Revolução e Contrarrevolução se chocam mais abertamente durante o ano todo. O ano de 1917 é de tempos concentrados, onde, no que diz respeito à experiência política das classes sociais exploradas, dias valiam anos e meses valiam décadas.
Foi também o início de grandes mudanças no maior conflito armado que a humanidade conhecera até então, a Primeira Guerra Mundial, com cerca de 20 milhões de mortos entre combatentes e civis. O Império Russo jogava um papel destacado ao lado das antigas potências, Inglaterra e França, enfrentando a ascendente burguesia da Alemanha e seus aliados da Áustria-Hungria e do Império Turco-Otomano. Além de mudanças, no conflito, a relação de forças entre as classes sociais também ganha uma nova configuração. Ao proletariado e ao campesinato russo cabe cumprirem um papel decisivo na derrubada do regime czarista e os seus irmãos de classe dos outros países em conflito se animavam por defender seus próprios interesses e não mais os de seus governos e da “sua” burguesia.
A Revolução, devido ao desenvolvimento desigual e combinado na história, começará exatamente no “elo mais débil da cadeia imperialista”, como Lenin se referia ao Império Russo. A Rússia, em 1917, já contabilizava 5,5 milhões de mortos. A crise chega com força no exército, e as deserções em massa dos soldados são cada vez mais comuns. Três anos após o início da guerra, a previsão política de Lenin, de que as condições das massas iriam cair bruscamente gerando um enorme descontentamento e mudanças bruscas na situação política, abrindo uma situação revolucionária mundial, estava confirmada pela história.
Alguns elementos da Rússia antes da Revolução de Fevereiro
O país da revolução de fevereiro tinha no início da Primeira Guerra, em 1914, cerca de 160 milhões de habitantes, sendo que 87% viviam no campo. Deste campesinato, cerca de 80% era analfabeto. O atraso do país, que aboliu a servidão somente em 1861, fica evidente com esses dados. Do ponto de vista dos conflitos de classe, esse atraso gerou uma burguesia bem mais fraca que nos principais países europeus, e ao mesmo tempo, um proletariado relativamente novo frente ao de outros países como Inglaterra, França e Alemanha, por exemplo.
As empresas capitalistas e imperialistas penetravam com força na Rússia desde o final do século XIX. Um proletariado jovem, reduzido em número, porém concentradíssimo, ganhava seus contornos e ia se tornando um dos atores políticos e sociais mais relevantes da sociedade russa. Em 1905, um levante proletário com uma poderosíssima onda de greves espalhou as lutas pelo país, contagiando o campesinato pobre que realizou diversas ocupações de terra. Esta revolta, que Lenin batizou de “O Ensaio Geral” para 1917, gerou um importante amadurecimento político nos trabalhadores russos que, pela primeira vez, durante os meses de mobilização, formaram seus conselhos (Sovietes) para tomar as decisões políticas de sua mobilização.
O proletariado ganhava força, ano após ano. Em 1912, estima-se que haviam 3 milhões de operários em toda Rússia, uma proporção bastante baixa no que diz respeito ao conjunto da população. No entanto, as concentrações operárias eram grandes e bastante restritas às duas principais cidades do país, Petrogrado e Moscou. Essa classe operária trabalhava em geral mais de 10 horas por dia (a Lei das 10 horas de trabalho raramente era cumprida), e vivia em condições extremamente repressivas nas fábricas.
O ano de 1917 também é o quarto ano do conflito internacional e a matança prolongada a mando dos governos imperialistas começa a gerar um descontentamento social a cada dia maior. Deserção e falta de disciplina nas tropas, inflação dos preços e racionamento de víveres, são também elementos que marcam a dramática situação política russa na guerra.
A derrubada do Czar
No final do mês de Fevereiro (no calendário Juliano, que era utilizado pela Rússia à época), teremos dias decisivos para a queda do império Czarista. O dia 23 de Fevereiro, para o calendário Juliano, ocorre no mesmo dia que o 8 de março, para o Gregoriano. Isso é importante, pois é justamente em um “Dia Internacional das Mulheres” que começam os momentos decisivos e o império czarista, que vinha agonizando há meses, cai. Nas palavras de Trotsky em seu célebre livro A História da Revolução Russa: “De fato, estabeleceu-se que a Revolução de Fevereiro foi desencadeada por elementos da base que ultrapassaram a oposição das suas próprias organizações e que a iniciativa foi espontaneamente tomada por um contingente do proletariado explorado e oprimido mais que todos os outros – as trabalhadoras do têxtil, cujo número, deveria se pensar, devia-se contar muitas mulheres soldados.”
O centro político da Revolução foi Petrogrado. Capital russa à época, a cidade era marcada por enormes concentrações operárias em fábricas com dezenas de milhares de trabalhadores. Foi no dia 27 de fevereiro que trabalhadores e soldados adentraram no Palácio Tauríde, em Petrogrado, onde funcionava a Duma (Parlamento Russo). Nesse mesmo dia se formou o governo provisório do qual falaremos mais adiante. Dias depois, no dia 2 de março, o Czar, já sem poder nenhum, abdica oficialmente.
A revolução de fevereiro de 1917, a chamada “insurreição anônima”, foi um levantamento espontâneo das massas, surpreendendo todos os socialistas, inclusive os bolcheviques, cujo papel, como organização, foi nulo durante os acontecimentos, apesar de que seus militantes desempenharam um importante trabalho individualmente nas fábricas e nas ruas, como agitadores e organizadores.
O ressurgimento dos sovietes e o duplo poder
Após a queda do Czar, os conselhos de operários e camponeses começam novamente a tomar forma pelo país, retomando a experiência do fugaz duplo poder da Revolução de 1905. Estava instaurada uma polarização que perduraria durante o ano de 17. De um lado estavam os sovietes, representante direto de operários, camponeses e soldados, do outro, o governo provisório, formado pela burguesia liberal com a colaboração de partidos como o Menchevique e o Socialista-Revolucionário, que ainda estavam à frente dos sovietes também. Esta contradição inexorável irá durar poucos meses.
A situação de duplo poder cria inevitavelmente uma instabilidade muito grande no país, já que é impossível que classes antagônicas governem ao mesmo tempo. Vai se gestando, desde os dias subsequentes a fevereiro, um conflito aberto, que mostra que uma nova revolução estava latente. O que retardou em alguns meses essa Revolução foi, sem dúvidas, a política de conciliação de classes promovida pelos partidos dos principais dirigentes dos sovietes: o Menchevique e o Socialista-Revolucionário. A influência de ambos partidos na condução dos primeiros meses dos sovietes explica também a “demora” de uma nova revolução.
Os bolcheviques, a guerra e fevereiro
A Revolução de Fevereiro também é um marco para o movimento operário internacional. Os principais partidos socialistas do mundo, porém, estavam de costas para esse processo. Em 1914, os principais partidos sociais-democratas, que agrupavam os socialistas de cada país, votaram, junto com as “suas” burguesias, os créditos de guerra. Ou seja, concretamente, mais de 90% da esquerda europeia mandava os operários e camponeses de seu país matarem os de outros países para defender os interesses econômicos da “sua” burguesia. Um crime político de repercussão histórica. Em 1916 Lenin escrevia: “É evidente a traição ao socialismo por parte daqueles que votaram pelos créditos de guerra, entraram para os ministérios e advogaram a ideia da defesa da pátria em 1914-1915. Só os hipócritas podem negar este fato (…)Em que consiste a essência econômica do defensismo durante a guerra de 1914-1915? A burguesia de todas as grandes potências trava a guerra com o fim de partilhar e explorar o mundo, com o fim de oprimir os povos. Um pequeno círculo da burocracia operária, da aristocracia operária e de companheiros de jornada pequeno-burgueses podem receber algumas migalhas dos grandes lucros da burguesia. A causa de classe profunda do social-chauvinismo e do oportunismo é a mesma: a aliança de uma pequena camada de operários privilegiados com a “sua” burguesia nacional contra as massas da classe operária, a aliança dos lacaios da burguesia com esta última contra a classe por ela explorada.” (LENIN, Vladimir. O oportunismo e a falência da II Internacional)
A localização política dos bolcheviques de não apoiar a burguesia de seu país, como o fizera a quase totalidade da esquerda europeia, os colocavam em uma armação política correta, contra a matança imperialista e a favor dos interesses da classe operária, que em nada ganhava com a guerra. Isso foi, sem dúvidas, importantíssimo no desenrolar dos acontecimentos de fevereiro. Lenin já havia alertado em 1914 que as condições de vida das massas iriam em breve se tornar insuportáveis e, portanto, uma situação revolucionária estava aberta com o início da guerra, apesar da traição histórica da maioria dos partidos sociais-democratas, mesmo que os marxistas revolucionários de todo mundo “coubessem em um vagão de trem” em 1914.
De fato, os bolcheviques participaram da Revolução de Fevereiro, ainda que não tinham a sua direção política, como em outubro. Um dos elementos, sem dúvidas, importante é que a ampla maioria da direção do partido, sobretudo os seus quadros de direção mais experimentados, se encontravam no exílio quando a Revolução se desencadeou. O próprio Lenin não estava na Rússia. Isso, por óbvio, gerou uma importante limitação na ação do partido, como mínimo. A “insurreição anônima” de fevereiro, como foi chamada por alguns historiadores, teve também a participação de diversas forças políticas, com um papel importante dos operários temperados nas lutas dos anos anteriores e na “escola de Lenin”. Nas palavras de Trotsky, mais uma vez: “A questão posta acima: quem conduziu a Revolução de Fevereiro? Podemos, por consequência responder com clareza desejada: operários conscientes e endurecidos que, sobretudo, tinham sido formados na escola do partido de Lenin. Mas, devemos acrescentar que, esta direção, se ela foi suficiente para segurar a vitória da insurreição, não esteve em posição de colocar, desde do início, a liderança da revolução entre as mãos da vanguarda proletária.” (TROTSKY, Leon. A História da Revolução Russa).
Surge o primeiro governo de conciliação de classes de história
A Revolução, fruto fundamentalmente da mobilização operária e popular, conquista um regime com uma série de liberdades democráticas inéditas para a Rússia. Porém, isso é somente nos seus inícios, logo o regime voltará a impor duras restrições às liberdades democráticas.
Logo após a queda do antigo regime, a débil burguesia russa rapidamente busca montar um governo que assuma o controle do país após a queda do Czar. Um governo que possa, sobretudo, parar e desviar o processo revolucionário em curso, do qual a revolução de fevereiro era apenas o começo. Nas palavras de Trotsky: “A burguesia russa, nascendo demasiado tarde, odiava mortalmente a revolução. Mas, ao seu ódio faltava-lhe força. Ela devia ficar na expectativa e manobrar. Não tendo possibilidade de derrubar e de sufocar a revolução, a burguesia contava tomá-la por via de extinção.” (TROTSKY, Leon. A História da Revolução Russa).
Devido à enorme mobilização popular que tinha desencadeado a Revolução, a burguesia chega a acordos com partidos pretensamente “de esquerda” para formar um governo. O governo surgido após a Revolução de Fevereiro é o primeiro governo de Frente-Popular da história, ou seja, pela primeira vez partidos operários governam um país em comum com a burguesia. Obviamente, o resultado dessa política é uma traição aos interesses da classe operária como os meses subsequentes irão demonstrar. Mas isso, é tema para os próximos textos que faremos abordando os principais acontecimentos na Rússia de 1917.