Texto 8: O mandelismo e os governos de Frente Popular

Uma das marcas do pensamento e da ação política de Leon Trotsky foi o combate aos governos de conciliação de classes, formados por aliança entre setores da burguesia e dos trabalhadores, também conhecidos como governos de Frente Popular.

Muitos ativistas e militantes socialistas podem, então, se questionar: como é possível que correntes psolistas ligadas à tradição trotskista e que fazem parte da autodenominada Quarta Internacional (antigo Secretariado Unificado 1) apoiem a chapa Lula/Alckmin e chapas estaduais de colaboração de classes, como Marcelo Freixo/Cesar Maia, no Rio. Pior: como algumas dessas tendências, como o Subverta e a Insurgência, podem estar aliadas no interior do partido a setores que pretendem participar de um eventual governo petista? Trata-se de uma excepcionalidade histórica, de uma descaracterização inédita do trotskismo?

Infelizmente, não se trata de uma novidade. A vertente do trotskismo à qual tais setores estão vinculados, conhecida como mandelismo, nome que deriva do dirigente Ernest Mandel, já capitulou várias vezes a governos de Frente Popular, inclusive no Brasil.

 

Bolívia: a primeira capitulação

Durante a década de 1940, ocorreu na Bolívia um crescimento das tensões sociais. Lutas operárias e camponesas explodiam com cada vez mais força. Avançava-se na organização sindical. As classes dominantes, divididas, batiam cabeça.

Nesse contexto, o Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), um partido nacionalista burguês de oposição, ganhou as eleições presidenciais de 1951, com a candidatura de Victor Paz Estensoro. Um golpe militar impediu a posse do novo governo e instaurou uma violenta ditadura.

Em abril de 1952, o MNR tentou dar um golpe, em aliança com um setor descontente da própria junta militar. A quartelada fracassou. Entretanto, antes da rendição final dos rebeldes, um extraordinário levante de massas, espontâneo, tomou conta das principais cidades do país e, de armas nas mãos, derrotou o exército, que foi totalmente desarticulado.

O MNR assumiu o governo, indicando Estensoro para a presidência. Seu governo teve como meta, desde o início, reestabelecer a ordem capitalista, interrompendo a revolução em curso. Porém, isso não foi fácil.

O poder estava dividido entre, de um lado, o governo burguês do MNR e, de outro, as milícias operárias e populares. Os trabalhadores fundaram a COB (Central Operária Boliviana), que logo assumiu o papel de núcleo central do poder popular.

O MNR propôs, como forma de neutralizar o ímpeto revolucionário das massas, a formação de um co-governo com a COB, com a incorporação de operários no ministério. Para quebrar as resistências, usou a influência de alguns dirigentes da COB ligados ao MNR, a chamada ala esquerda do partido.

O Partido Operário Revolucionário (POR), seção boliviana da Quarta Internacional (ainda unificada), tinha bastante influência, particularmente entre os operários e camponeses. O principal dirigente revolucionário camponês, José Rojas, era militante do POR e o partido disputava a direção das massas com o MNR.

O Secretariado Internacional da Quarta, liderado por Pablo (Michel Raptis) e Ernest Mandel, orientou o POR a apoiar criticamente o governo, sem participar do mesmo, buscando disputar a ala esquerda do MNR. A seção boliviana adotou essa linha. Facilitou, assim, a política do MNR de esvaziamento do processo revolucionário.

Somente em 1956, o POR lançou a consigna de “todo poder à COB”. Porém, já era muito tarde: o exército já estava reorganizado e o processo revolucionário esvaziado.

A corrente mandelista não aprendeu com a trágica capitulação na Bolívia. Desde então, apoiou vários governos de conciliação de classes, como na Nicarágua e na Venezuela, apenas para citar dois exemplos. Entretanto, durante muito tempo manteve um limite em suas relações com tais governos: apoiava, mas não participava. Em 1964, por exemplo, votou pela expulsão do Lama Sama Samaja Party, do Ceilão, das fileiras da Quarta Internacional, pois o partido havia entrado em um governo de Frente Popular. Todavia, esse limite foi quebrado justamente no Brasil.

Capitulação às direções não operárias e aos governos de conciliação de classes

A capitulação na Bolívia foi precedida e preparada pelo chamado entrismo sui generis: partindo da equivocada avaliação de que uma terceira guerra mundial era inevitável e de que, nesse contexto, os stalinistas e demais forças tidas como “progressistas” seriam obrigadas a dar uma guinada à esquerda, a direção pablista/mandelista orientou a entrada de longa duração dos trotskistas nos PCs burocratizados, nos partidos social-democratas e nos partidos populistas anti-imperialistas. Em outras palavras, abriu mão da independência política e organizativa do movimento trotskista, em flagrante ruptura com toda a luta anterior de Trotsky, da Oposição de Esquerda e da IV Internacional.

No Brasil, essa linha levou ao entrismo no brizolismo, culminando no apoio dos pablistas/mandelistas à candidatura do burguês Jânio Quadros à Prefeitura de São Paulo, em 1953. Além disso, também se praticou o entrismo no PCB e no PCdoB.

Ainda em 1953, também graças ao entrismo sui generis, os pablistas/mandelistas se negaram a apoiar o levante das massas operárias de Berlim Oriental, ficando objetivamente do lado da burocracia alemã.

Posteriormente, a linha entrista foi formalmente abandonada. Todavia, as capitulações às direções stalinistas, reformistas e nacionalistas continuaram. Foram ilustrativas disso a capitulação, nos anos 70, à linha do foco guerrilheiro e, em seguida, a aproximação com o eurocomunismo, que levou mais adiante à retirada da ditadura do proletariado do programa mandelista.

Brasil: exemplo de capitulação total a um governo de Frente Popular

Em 2002, Lula foi eleito pela primeira vez presidente do Brasil. Seu companheiro de chapa, o vice José Alencar, era um grande empresário do setor têxtil. Já na campanha, especialmente com a Carta ao Povo Brasileiro, o petista deixou evidente que faria um governo de conciliação de classes.

Durante anos, o mandelismo foi representado no Brasil pela Democracia Socialista (DS), tendência interna do PT. Com a eleição de Lula, a DS foi convidada a participar do governo. Miguel Rossetto, membro da tendência, assumiu então o importante Ministério do Desenvolvimento Agrário.

Ao contrário do que se esperava, a entrada da DS no governo não provocou crise alguma na tendência ou na Quarta Internacional mandelista. Os descontentes calaram-se ou não tiveram força para contestar a decisão. O limite havia sido ultrapassado: uma vertente da tradição trotskista participava de um governo de Frente Popular.

Os setores descontentes da DS, muito minoritários, foram aos poucos se afastando da corrente e se engajando no processo de construção do PSOL. No âmbito da Internacional, somente em 2005, após dois anos de ataques aos direitos dos trabalhadores por parte do governo Lula, a participação ministerial da DS passou a ser verdadeiramente questionada.

Com a “Carta à Democracia Socialista”(2), de janeiro de 2005, assinada por Daniel Bensaid, Francisco Louçã e Michael Lowy, teve início uma polêmica entre o setor majoritário da direção internacional mandelista e a maioria da DS. Em fevereiro do mesmo ano, em reunião do Comitê Internacional (CI), foi aprovado o documento “Sobre a situação brasileira”(3). Pela primeira vez, a participação no governo Lula foi oficialmente criticada (vale notar: de forma “fraternal”), pois “está em contradição com a construção de uma alternativa no Brasil condizente com nossas posições programáticas.”

Por outro lado, não houve uma ruptura de relações com a maioria da DS:

O CI observa as discussões e divergências dentro da DS sobre estratégia, e a participação de um de seus setores na formação do PSOL. Em uma situação caracterizada por essa divisão e pelo risco de maior fragmentação, o CI decide manter relações com todos os componentes da QI no Brasil – com todos permanecendo membros da Internacional de pleno direito -, com o objetivo de fomentar o diálogo, as relações e a unidade na ação de todos esses componentes na perspectiva de criar uma alternativa política ao governo Lula.”

A maioria da DS não participou da reunião do CI e divulgou posteriormente o documento “Notas para a reflexão da militância”, afirmando que “a ausência da representação da DS na reunião do Comitê Internacional foi a reação necessária à ruptura do padrão histórico de relação da Internacional conosco.”(4)

A DS seguiu compondo o governo Lula. Mesmo assim, a direção mundial mandelista continuou a reconhecer, em nova reunião do CI de fevereiro de 2006, no documento “Resolução sobre o Brasil”(5), a DS como parte da Internacional: “o Comitê Internacional reafirma a manutenção de relações com todos os componentes da IV Internacional no Brasil, todos continuando membros de pleno direito da Internacional.”

Por incrível que pareça, coube à DS romper relações com a Internacional. Isso aconteceu em março de 2006, com o documento “Uma política internacionalista para o século XXI”(6). Nele, a corrente afirma que “foram dois anos nos quais a atitude fracionista e antidemocrática de setores que compunham a DS tiveram o respaldo de manobras operadas desde as instâncias da IV Internacional” e que “interrompeu-se, assim, por iniciativa das instâncias de direção da IV Internacional, uma trajetória de trabalho conjunto e mútuo respeito”.

A direção mandelista ainda tentou reestabelecer o diálogo, sem sucesso, através do texto “O novo internacionalismo e a IV Internacional: uma primeira resposta ao documento da DS, Uma política internacionalista para o século XXI”(7), de 2007, em que declarou esperar “sinceramente que os camaradas da direção da DS voltem a partilhar estas discussões e estas avaliações com o resto da Internacional.”

Até quando?

Lamentavelmente, em vez de fazer uma autocrítica de seus erros (diversas capitulações aos governos de conciliação de classes e a direções stalinistas, nacionalistas e reformistas), para evitar repeti-los, a corrente mandelista aprofundou esse rumo ao longo do tempo.

Começou com o apoio crítico e chegou ao ponto de aceitar, mesmo que supostamente por um período de experiência (de mais de 2 anos!!!), a participação em governos de Frente Popular. Além disso, deixou de considerar a presença em tais governos como uma questão de princípio, algo que fere a independência de classe, pois sequer cogitou adotar com a DS o mesmo procedimento aplicado com o Lama Sama Samaja Party, ou seja, a expulsão. Limitou-se a condenar e a propor o debate.

A eventual vitória de Lula nas próximas eleições será um novo teste para os mandelistas. A pressão para que o PSOL apoie e componha o governo será enorme, tanto interna quanto externamente. Qual será a reação deles? Vão retomar o elo com a tradição trotskista, adotando uma postura de oposição de esquerda ao governo; ou sucumbirão às pressões (talvez até ultrapassando outro limite, o da participação “permanente” em governos de Frente Popular)? Alguns deles dizem que não integrarão o governo de Lula/Alckmin. Porém, compõem hoje o governo de Frente Ampla de Belém, rasgando os princípios do trotskismo. Não há dúvidas de que a única posição correta é o enfrentamento aos governos de colaboração de classes, sem capitular. Uma coisa é certa: sem revisitar criticamente sua própria história e reconhecer os erros do passado, provavelmente seguirão capitulando aos governos de Frente Popular. Com a palavra, os mandelistas!

Daniel Monteiro – Professor de filosofia. Foi durante muitos anos militante da vertente mandelista, até romper com a mesma e ingressar no morenismo.


 

(1) A Quarta Internacional foi fundada em 1938. Em 1953, houve a primeira grande cisão da organização. Ela ficou dividida entre o Secretariado Internacional – liderado por Pablo (Michel Raptis) e Ernest Mandel – e o Comitê Internacional – dirigido por Pierre Lambert, da França; Gerry Healy, da Inglaterra; o SWP, dos EUA; e Nahuel Moreno, da Argentina. Em 1963, ocorreu a reunificação entre o setor liderado por Mandel (Pablo saiu da Internacional logo depois, em 1964) e parte do Comitê Internacional, formada pelo SWP e por Moreno. Surgiu, então, a Quarta Internacional – Secretariado Unificado (SU). Em 1979, o setor ligado a Moreno rompeu com a Internacional, após a traição do SU na Revolução Nicaraguense (ver: https://www.youtube.com/watch?v=P1RNXTDGMxg). Alguns anos depois, o SWP também saiu. Restaram os setores ligados a Mandel, que seguiram usando o termo SU. Posteriormente, decidiram se autodenominar apenas como Quarta Internacional. No Brasil, são vinculados à Internacional mandelista, para além do Subverta e da Insurgência, a Comuna e o MES.

(2) https://internationalviewpoint.org/spip.php?article586

(3)https://internationalviewpoint.org/spip.php?article585

(4) https://democraciasocialista.org.br/notas-para-a-reflexao-da-militancia/

(5) https://internationalviewpoint.org/spip.php?article975

(6)https://democraciasocialista.org.br/uma-politica-internacionalista-para-o-seculo-xxi/

(7) https://internationalviewpoint.org/spip.php?article1264

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