O fim do PSR: capítulo final de uma geração do trotskismo brasileiro

Escreve: Henrique Lignani – Historiador e professor da rede estadual do RJ e
Michel Tunes – coordenação nacional da CST

(último artigo do especial 80 anos do PSR, um conjunto de artigos históricos publicado mensalmente no jornal Combate Socialista entre setembro de 2019 e Março de 2020)


Fundado em 1939, o Partido Socialista Revolucionário atuou até o início da década de 1950. Apesar da sua importância política, o partido atravessou diversas crises, o que ajuda a entender o seu fim, por volta de 1952. A dissolução do PSR possui grande importância para o trotskismo brasileiro, marcando o fim da segunda geração do movimento.

A cisão “anti-defensista” de 1940

Um primeiro momento de crise atravessado pelo PSR ocorreu em 1940. Suas origens se situam nos debates em nível internacional, sendo aquele um contexto turbulento para o trotskismo no mundo inteiro. Primeiramente, destaca-se o fato de que a IV Internacional, fundada em 1938, logo se viu imersa em uma realidade marcada pela Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Diante da situação de guerra na Europa, a sede da Internacional foi obrigada a se transferir de Paris para Nova Iorque, ficando a sua direção praticamente restrita ao SWP (seção estadunidense da IV Internacional). Com as dificuldades impostas pela situação, as atividades políticas da IV Internacional ficaram muito reduzidas, existindo, além disso, a interrupção quase total dos contatos entre as diferentes seções nacionais. Sem dúvidas essa realidade afetou o partido brasileiro, provocando um isolamento do PSR.

Não bastassem as consequências da eclosão do conflito armado, em 1940 a IV Internacional atravessou ainda uma crise interna, provocando uma importante cisão no movimento. Desde 1939, com a assinatura do pacto de não-agressão entre Hitler e Stalin e com as ameaças de invasão à Polônia e à Finlândia pelo Exército soviético, o debate sobre a caracterização da URSS ganhou força entre os trotskistas. Ela ainda poderia ser considerada um “Estado operário burocraticamente degenerado”, definição formulada por Trotsky; ou deveria ser encontrada outra caracterização, como “Estado livre burocratizado” (sem caráter operário) ou até mesmo um Estado imperialista? A burocracia surgida no seio do Partido Comunista da União Soviética poderia ou não ser considerada uma nova classe? Essa polêmica teve forte repercussão no SWP estadunidense, ocasionando o rompimento de um grupo de militantes liderados por Max Schachtman e James Burnham, e logo alcançou outras seções nacionais. Não se tratava apenas de um debate teórico, pois uma mudança de caracterização acarretaria na mudança da política da IV Internacional, pautada pela defesa incondicional da URSS contra um ataque imperialista.

Em maio de 1940 foi realizada a Conferência de Emergência da IV Internacional, em consequência da eclosão da guerra, ocasião em que se lançou um documento intitulado “Manifesto da IV Internacional sobre a guerra imperialista e a revolução proletária mundial” (também conhecido como “Manifesto de alarme”). Respondendo às polêmicas em curso naquele momento, o texto reafirmava o princípio de defesa revolucionária da URSS diante de uma ameaça imperialista, o que não significaria a defesa da burocracia stalinista, mas sim das conquistas da Revolução de Outubro.

Edição de outubro de 1947

O jornal vanguarda socialista agrupa os antidefensistas ligados a Mario Pedrosa

Os problemas em torno dessa discussão atingiram o PSR no mesmo ano de 1940. Em meio a um contexto que já era difícil para a atuação do partido, que sofria a pesada repressão imposta pela ditadura de Vargas (incluindo a prisão de militantes), Mário Pedrosa, um dos fundadores do trotskismo no Brasil, aderiu às perspectivas “anti-defensistas”, rompendo com a Internacional. Devido à grande influência de Pedrosa no partido brasileiro muitos militantes se somaram às posições por ele adotadas, o que levou ao afastamento de grande parte da “primeira geração” do trotskismo brasileiro. Pedrosa e seus companheiros fundaram o periódico Vanguarda Socialista, em 1945, reunindo intelectuais em grande parte provenientes do trotskismo. O jornal foi um importante meio de divulgação para a esquerda brasileira, tendo como eixo uma perspectiva socialista crítica tanto ao stalinismo quanto ao bolchevismo. Distanciava-se da idéia leninista do partido de vanguarda e, em alguma medida, se aproximava de algumas concepções organizativas de Rosa Luxemburgo. Posteriormente, foram parte do movimento que deu origem à Esquerda Democrática e ao Partido Socialista Brasileiro (PSB), adotando posições revisionistas e reformistas. Entre os ex-trotskistas que colaboraram com Vanguarda Socialista, além de Mário Pedrosa, podemos citar outros importantes militantes: Patrícia Galvão, Hilcar Leite, Plínio Gomes de Mello, Febus Gikovate, Fulvio Abramo, Edmundo Moniz, Aristides Lobo.

O PSR manteve uma postura firme

É importante ressaltar que enquanto enfrentava essa grave crise interna, o PSR reafirmou sua adesão aos princípios da IV Internacional. Existe menção a uma carta enviada pelo PSR à IV Internacional, na qual o partido “se declara pronto, apesar da forte tendência derrotista existente nas suas fileiras, a continuar a defender o slogan de defesa incondicional [da URSS] até que uma decisão internacional seja alcançada” [1].

De qualquer forma, o processo de cisão impactou gravemente os trotskistas no país. As debilidades apresentadas pelo partido podem ser percebidas em um texto de balanço das atividades da seção brasileira apresentado durante a já citada Conferência de Emergência de 1940. No documento em questão afirmava-se o seguinte: “O movimento pela Quarta Internacional no Brasil é um dos mais antigos no continente; foi organizado por volta de 1930-31. Desde sua formação, passou por uma série de crises políticas e organizacionais. Politicamente, tem sido um dos grupos mais ativos; mas devido à ausência de uma liderança política firme e estável, sua vida política assume uma forma desorganizada e se traduz, muitas vezes, em uma crise organizacional” [2].

Os anos finais do PSR

Após um período de maior atividade entre 1945 e 1948, no qual houve, por exemplo, a publicação regular do jornal Orientação Socialista, o PSR perdeu forças novamente no final dos anos 1940. O período final da existência do partido é pouco documentado e necessita de mais estudo por parte tanto dos historiadores quanto dos militantes trotskistas. Porém existem algumas informações importantes (apresentadas pelo historiador Murilo Leal) que indicam a existência de uma nova crise interna antes da dissolução final. A existência de divergências internas no PSR pode ser observada na realização de uma reunião ampliada do partido, em 1951, prévia ao III Congresso da IV Internacional. Segundo as informações apresentadas por Murilo Leal, as divergências envolveram o reconhecimento da seção oficial na Argentina: enquanto o PSR defendia a escolha do Partido Obrero Revolucionario (POR), de Nahuel Moreno, o delegado brasileiro enviado ao Congresso (cujo codinome era “Felipe”) se posicionou favoravelmente a J. Posadas (agrupado com a maioria da Internacional, cujos expoentes eram Pablo e Mandel).

Neste mesmo período ocorre o afastamento de Hermínio Sacchetta e posteriormente sua aproximação de algumas das posições adotadas por Mário Pedrosa. Sacchetta ainda colaborou por algum tempo com o PSR na condição de simpatizante e, em 1956, fundou a Liga Socialista Independente.

Este referido Congresso também dá mostras de que havia fragilidade nos vínculos existentes entre o PSR e o centro da IV Internacional. Em documento relativo às tarefas para a América Latina, mencionava-se brevemente a “nossa seção reorganizada” no Brasil, “que deve ser auxiliada pela Internacional” [3], afirmação que sugere, além do processo de “reorganização” pelo qual passava o partido após sucessivos rompimentos, que este auxílio internacional não acontecia naquele momento. Nesse sentido, é possível inferir que o tamanho reduzido do partido, as dificuldades vivenciadas no período e o contexto de crise tornaram o PSR praticamente inativo naquele momento.

O pablismo/posadismo e o trotskismo no Brasil

Caminhando para a conclusão desta série de textos sobre os 80 anos do PSR, retornamos a um evento citado acima: o III Congresso da IV Internacional, de 1951. Como mencionado, na polêmica envolvendo o reconhecimento da seção trotskista na Argentina, há indícios de que o PSR tenha se manifestado favoravelmente a Moreno, contra Posadas. Entretanto, apoiado por Michel Pablo e Ernest Mandel, o grupo posadista foi eleito como seção oficial argentina. A existência desta polêmica no PSR, algo que ainda precisa ser mais pesquisado, poderia parecer menor ou passar despercebida. Porém, de um ponto de vista internacional expressa uma profunda divergência política e programática, pois Nahuel Moreno foi o principal dirigente latino americano da IV Internacional e uma das lideranças da luta internacional contra Pablo e Mandel e contra a nova orientação que defendiam para o movimento: o “entrismo suis generis”.

No plano da IV internacional a política e orientação estavam em debate no referido congresso mundial. Se tratava, no fim das contas, do apoio ou não a essas posições defendidas pelo “pablismo”. Segundo os formuladores do “entrismo suis generis”, o contexto político mundial, marcado pela guerra fria entre EUA e URSS, apontava para uma inevitável “terceira guerra mundial” envolvendo os dois países. Isso obrigaria os Partidos Comunistas ao redor do mundo a adotarem posições revolucionárias para defender a URSS. Dessa forma, Pablo e Mandel defendiam que os trotskistas entrassem nos Partidos Comunistas (ou, em certos casos, em correntes de esquerda de movimentos nacionalistas burgueses) não por um breve período, mas até que houvesse a tomada do poder, linha aprovada no III Congresso da IV Internacional. Moreno, junto a setores das seções inglesa e francesa e ao SWP estadunidense, se opôs a essa linha. Criticava tal análise como sendo revisionista, uma vez que reavaliava o caráter dos Partidos Comunistas dirigidos pelo stalinismo e considerava que eles poderiam voltar a ser revolucionários. Se trata do trotskismo ortodoxo que originou Comitê Internacional, chegando a produzir uma cisão  da IV internacional em 1953.

No Brasil, após o fim do PSR, houve a fundação de um novo partido atrelado politicamente à tendência pablista/posadista: o Partido Operário Revolucionário (POR). Fundado em 1952, este partido se formou a partir do envio para o Brasil de um dirigente argentino vinculado ao grupo de Posadas.

Apesar de ter produzido algumas análises interessantes sobre a realidade brasileira, a atuação do POR foi caracterizada por uma série de erros que comprometeram a formação do partido trotskista no país. Indo de acordo com a orientação sua tendência internacional, o partido praticou o “entrismo aqui generis” entre 1954 e 1962. A tática foi aplicada em relação ao PCB e ao recém fundado PCdoB, partidos nos quais sequer havia espaço para o debate interno. Após esse período, tendências nacionalistas burguesas, como o brizolismo, também foram alvo do “entrismo sui generis” do POR. O argumento era que tais tendências poderiam desempenhar o papel de direção de uma etapa do processo revolucionário. Assim capitulava as velhas direções pelegas ou diretamente burguesas, se negando a construir um partido independente e revolucionário. Não foi um acidente, portanto, realizar campanha para Jânio Quadros em eleição para prefeito de SP em 1953.

O revisionismo destruiu o partido trotskista e abandonou a construção da IV Internacional no Brasil

Em 1962, o próprio Posadas rompe com seus antigos aliados na direção da IV Internacional, mantendo o POR brasileiro sob sua influência. Porém, a ausência de um balanço dos resultados da atuação do partido e a condução da sua direção por parte de Posadas foram alvo de críticas internas. Essas críticas, que apontavam o personalismo e a falta de democracia na organização, foram logo suprimidas e taxadas de “fracionistas”. Entre idas e vindas, com alguns êxitos pontuais, o POR existiu até 1966. Porém, sua direção posadista já afastava o partido da IV Internacional e fundava sua própria Internacional.

Nota-se, portanto, como o revisionismo, em dois momentos, primeiro com os antidefensistas e em seguida com os posadistas, foi crucial para o que se poderia denominar de uma espécie de fim do trotskismo como organização revolucionária no Brasil. No início dos anos 50, apesar de alguns combates, não existiu uma corrente trotskista ortodoxa vigorosa que desse a batalha até o final como existiu em outros países, em especial o caso argentino, sob a condução de Nahuel Moreno. No Brasil o posadismo, apesar certos focos de resistências parciais, pôde seguir levando quadros para fora da IV internacional, impondo a dispersão e crise dos revolucionários.

Ao finalizar essa série de artigos esperamos que os acertos, bem como as debilidades e insuficiências do PSR, possam estimular reflexões e servir de base para a construção do partido revolucionário em nosso país, além de ajudar a seguir a batalha pela reconstrução da IV internacional. Do mesmo modo, esperamos que não se subestime a influência de grupos revisionistas e ecléticos, pablistas/mandelistas, que foram responsáveis pela destruição da IV enquanto uma organização centralizada mundial e do abandono do programa de Transição, cujo efeito no Brasil foi um retrocesso programático e organizativo, como se nota na experiência do posadismo. Isso impõe hoje como tarefa imprescindível a necessidade de sua reconstrução como partido mundial da revolução socialista e a construção de um partido revolucionário no Brasil.

Notas

[1] SUPPLEMENTARY Statement of the International Executive Committee. Adopted by the Emergency Conference of the Fourth International, 19-26/05/1940. Disponível em: <https://www.marxists.org/history/etol/document/fi/1938-1949/emergconf/fi-emerg04.htm> (acesso em 14/01/2020).

[2] GONZALES, Colay. On the movement of the Fourth International in Latin America. Report to the Emergency Conference of the Fourth International by the Latin American Department. Adopet by the Emergency Conference of the Fourth International, 19-26/05/1940. Disponível em: <https://www.marxists.org/history/etol/document/fi/1938-1949/emergconf/fi-emerg14.htm> (acesso em 14/01/2020).

[3] LATIN America: problems and task. Resolutions adopted by the Third Congress of Fourth International, Paris, April 1951. In: Fourth International, v. 12, nº 6, nov-dec 1951, p. 207-212. Disponível em: <https://www.marxists.org/history/etol/document/fi/1950-1953/fi-3rdcongress/1951-congress10.htm> (acesso em 18/01/2020).

Referências

Dainis Karepovs e José Castilho Marques Neto – Os trotskistas brasileiros e suas organizações políticas: 1930-1966 [Texto em: Marcelo Ridenti e Daniel Aarão Reis Filho – História do marxismo no Brasil: partidos e organizações dos anos 20 aos 60. Campinas, Ed. da UNICAMP, 2002. v. 5].

José Castilho Marques Neto (org.) – Mario Pedrosa e o Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001.

Murilo Leal Pereira Neto – À esquerda da esquerda: trotskistas, comunistas e populistas no Brasil contemporâneo: 1952-1966. São Paulo: Paz e Terra, 2003.

Pedro Roberto Ferreira – Imprensa política e ideologia: Orientação Socialista. São Paulo: Editora Moraes, 1989.

Nahuel Moreno.- O Partido e a Revolução: teoria, programa e política – polêmica com Mandel. São Paulo, Editora Sundermann, 2008.

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