Debate com a esquerda que lamenta a queda da ditadura de Al-Assad
(Introdução e contexto: Reproduzimos em português o texto “OJS lamenta a caída de Al-Assasd” em que a organização Luta Internacionalista (seção espanhola da Unidade Internacional de Trabalhadoras e Trabalhadores – Quarta Internacional – UIT-QI) polemiza com a posição da Organização Juvenil Socialista (OJS) sobre a caída da ditadura de Al-Assad na Síria. A OJS é parte de uma organização de caráter amplo do Estado Espanhol denominada “Movimento Socialista”, surgida no estado Basco, mas que é composta por diversas organizações a nível nacional.
Nós, da Corrente Socialista de Trabalhadores e Trabalhadoras (seção da UIT-QI), estivemos sempre ao lado do povo trabalhador na Síria contra a ditadura de Al-Assad. Avaliamos que esse artigo de polêmica pode ser usado para o debate na esquerda brasileira sobre o caráter do governo de Al-Assad, da revolução síria e os atuais debates e desafios da classe trabalhadora e do povo sobre o futuro da Síria e da região em meio às disputas interimperialistas e para o impulsionamento da resistência palestina contra o genocídio promovido pelo Estado sionista).
A OJS lamenta a caída de Al-Assad
Na análise da OJS, tudo se reduz a um “tabuleiro geoestratégico regional e internacional”. Uma visão que abandona totalmente o método de análise do marxismo, baseado na luta de classe e na compreensão das dinâmicas de opressão e libertação dos povos. Não encontraremos nenhuma crítica ao regime de Al-Assad. A OJS se limita a dizer que o regime colapsou “devido a inação dos principais apoios (Rússia e Irã) que o sustentavam no poder apesar de toda a pressão econômica, política e militar do bloco imperialista ocidental”.
Perguntamos: onde estão os povos de Síria? Onde está a luta de mais de 14 anos contra um regime que aprisionava seu povo e era uma ditadura sanguinária que produziu mais desaparecidos que os regimes de Videla (ex-ditador argentino) e Pinochet juntos? O regime, efetivamente, se sustentava no poder graças à ajuda de Rússia e Irã, porque sozinho não podia conter sua juventude, sua classe trabalhadora, o povo curdo e outras minorias que sufocava debaixo de suas botas. As pessoas não são levados em conta pela OJS.
Também é importante que nos expliquem sobre “toda pressão econômica, política e militar do bloco imperialista ocidental”, supostamente imposto contra a Síria de Al-Assad. O ex-ditador bombardeou impunemente com barris de dinamite os bairros operários das grandes cidades sírias e utilizou armas químicas contra sua população. Diante disso, Obama (ex-presidente dos EUA), que havia ameaçado detê-lo, o que fez? Nada. A única intervenção militar do “bloco imperialista ocidental” na Síria foi precisamente apoiar os curdos na sua luta contra o Estado Islâmico, o que imaginamos que a OJS não questiona. Ou questiona? Politicamente, Al-Assad era um mal menor para este “bloco imperialista ocidental”, no qual também por certo está a Turquia, que é membro da OTAN e que intervia militarmente no lado oposto dos EUA contra os curdos.
As pessoas como nós estavam em prisões na Síria comandada por Al-Assad, ou no exílio, depois de três anos saindo às ruas de forma massiva com a palavra de ordem “o povo quer a caída do regime”. Agora estão voltando massivamente ao país. É outra coisa que o “tabuleiro da geopolítica” não pode (ou não quer) explicar: para onde as pessoas estão indo? As pessoas, hoje, estão correndo para regressar à Síria, depois que caiu o ditador. Se a Síria fosse o lugar tão obscuro e dominado por jihadistas, como diz a OJS, as pessoas não correriam para voltar ao país. Não pararam para pensar, nem sequer por um momento, que as pessoas em Síria têm exatamente os mesmo anseios que nós temos deste outro lado do mediterráneo? Ou os povos de Síria não merecem, depois de 50 anos de ditadura, libertar, abraçar seus prisioneiros, chorar, enterrar seus mortos e ter a solidariedade do resto dos povos do mundo para materializar o sonho de um país com democracia e justiça social? Este é o problema desta esquerda de matriz estalinista que se converteu em porta-voz da “geopolítica”, que em toda sua análise falta os atores mais importantes: os povos e as classes sociais. E quando a análise deles não se enquadra na realidade, então distorcem a realidade ao invés de corrigir a análise.
Obviamente o caminho da revolução síria está cheio de obstáculos, que devemos analizar e, desde uma perspectiva internacionalista, contribuir para que sejam superados na medida das nossas possibilidades. Isto não se faz negando a um povo o direito a se levantar contra uma ditadura, nem querendo dar aula a eles sobre tudo que pode dar errado. Avisa-nos a OJS de que o HTS (Exército de Libertação Levante), uma das facções que liderou a ofensiva contra a Al-Assad, “reúne à sua volta numerosos componentes fundamentalistas das mais diversas origens (Chechénia, Uzbequistão, Albânia…)” e isso é mais radical do que aquilo que a imprensa ocidental nos quer apresentar.
Por que para o HTS a OJS tem essa caracterização e não a aplica também para qualificar o Hamas? O Hamas não é menos “fundamentalista”, tem uma relação direta com o HTS e imediatamente celebrou a queda do regime de Al-Assad. Também Hezbollah “o partido de Deus”, que segundo a OJS é, junto com Hamas, uma “referência política para os oprimidos da região”1, sem qualquer consideração por seu programa confessional.
A OJS tampouco faz referência ao caráter “fundamentalista” e reacionário do regime dos aiatolás do Irã, contra quem as mulheres iranianas e os povos se levantaram com o movimento “Mulher, vida e liberdade” para denunciar o assassinato da jovem curda Mahsa Gina Amini em dezembro de 2021. Para nós da UIT-QI, o Hamas e o Hezbollah, apesar de seu programa ser reacionário, tem sido referências para a luta pela libertação nacional dos povos da região. Por que não se pode aplicar a mesma lógica aos islamistas sírios? Não confiamos que estas direções possam levar seus povos até a vitória, mas não as denunciamos como “jihadistas”: dizemos que são pequeno-burguesas e que tem um programa reacionário, ao invés de nos deixarmos levar pela onda islamofóbica. E quando eles se levantam contra as ditaduras e o imperialismo, nós o reconhecemos, tentando construir lideranças verdadeiramente emancipatórias na batalha. Uma luta nunca é vencida sacrificando outra, como o OJS faz com os povos do Irã ou da Síria.
Além disso, a OJS nos diz que “o HTS tem o apoio ativo ou mantém vínculos com a Arábia Saudita, Inglaterra, Estados Unidos, Turquia e Israel”. Como eles provam isso? Não provam, é apenas uma narrativa para encaixar seu esquema de “campos”. O HTS é um aliado do Hamas e de Israel? E mais piruetas: Israel está bombardeando a Síria agora mesmo que seus “aliados” chegaram ao poder? Desde 1974, quando em Genebra o Estado de Israel assinou um acordo de não beligerância com a Síria dos al-Assads (que nunca disparou uma única bala contra o Estado sionista), com a renúncia prática das Colinas de Golã ocupadas, Israel nunca bombardeou e penetrou no território sírio como fez agora: eles se apressam em destruir as armas químicas e os arsenais do regime de al-Assad. Enquanto estavam nas mãos do regime de al-Assad, eles não eram problema para Israel, pois estes sabiam que Al-Assad só utilizaria essas armas contra seu próprio povo. Agora Benjamin Netanyahu corre para destrui-las pois não ter certeza que possam vir a ser usadas contra o estado sionista de Israel.
O interesse da Turquia não era a queda de al-Assad, mas liquidar os curdos, os quais atacou junto com o Exército Nacional Sírio (SNA), o qual controla. Em plena ofensiva rebelde, a 17 de Dezembro, a Turquia reuniu-se com a Rússia e Teerão em Doha e apelou à suspensão imediata da ofensiva e ao início das negociações com o regime. O ministro das Relações Exteriores turco declarou: “Tentamos evitar o colapso do regime, mas não conseguimos”2. A liderança curda do YPG, que havia concordado com uma política de não agressão com o regime de al-Assad, estava ao mesmo tempo armada e operava com as tropas dos EUA implantadas na Síria (eles ainda mantêm 900 soldados). Os EUA apoiam o YPG curdo porque precisam de alguém para impedir que o ISIS ameace derrubar o governo de ocupação iraquiano. Esses interesses conflitantes entre a Turquia e os EUA levaram a atritos entre os dois aliados da OTAN. Por que o OJS nem sequer menciona a relação do YPG com o imperialismo dos EUA? Não cabe na tentativa de conseguir desenhar dois blocos ou campos atuando na Síria! Defendemos que os povos obtenham as armas onde puderem, mas não apoiamos a presença de tropas norte-americanas operando com o YPG ou com as do imperialismo russo, agora e antes. O OJS também ignora que a liderança curda comemorou a queda do regime e que está em diálogo com o HTS sobre o futuro da Síria. Esperemos que o que deveria ter acontecido anos atrás aconteça agora: um acordo entre as forças árabes que se opõem à ditadura e os curdos para encontrar uma saída onde todos os povos da Síria vejam seus direitos nacionais respeitados.
A conclusão do OJS é que: “A vitória da oposição sobre al-Assad pode ser entendida como um ganho para o bloco imperialista ocidental e para a estratégia dos EUA de desestabilizar e mergulhar no caos todas as regiões que poderiam facilitar a formação de pólos alternativos ao seu poder hegemônico”. Assim, estaríamos diante de uma estratégia calculada das potências ocidentais para desestabilizar a região “em detrimento de seus inimigos declarados: China, Irã, Rússia e seus aliados”. É claro que a queda do regime sírio enfraquece a posição regional do Irã e da Rússia. Com o mundo dividido em blocos, para OJS o que um perde, o outro ganha. Nessa análise não tem nenhum fio de luta de classes e povos oprimidos. Os povos e a classe trabalhadora que têm que viver no suposto bloco oposto ao imperialismo ocidental estão perdidos, porque terão que renunciar aos seus interesses de classe e, como povos oprimidos, aos interesses do conselho do bloco. A mesma lógica se aplica na Ucrânia: os ucranianos devem se sacrificar no altar da geopolítica e se deixar invadir pelo imperialismo russo, que supostamente está se “defendendo” da OTAN. Essa posição tem a ver com a tradição do marxismo e do leninismo? Não.
De fato, um dos espelhos em que devemos ver como a nova situação na Síria afeta é em relação à luta imperialista estratégica na região: o genocídio sionista do povo palestino. De acordo com o OJS, serviria para “isolar ainda mais a resistência palestina em Gaza e na Cisjordânia”. Por enquanto, o Hamas celebrou a queda do ditador e a Frente Popular Palestina, que também deu as costas à revolução síria, agora também mudou sua visão e comemorou sua queda. Al-Assad era uma garantia de estabilidade da fronteira norte de Israel. Sua queda é um novo “7 de outubro” que reativa a luta de classes na região, que longe de isolar a resistência palestina, abre uma nova oportunidade. Uma oportunidade em que todos os povos da região terão mais uma vez a esperança de uma mudança revolucionária, que possa derrotar os regimes do Egito, Jordânia e Irã, todos eles traidores da causa palestina e opressores de seus povos.
Depois do “7 de outubro”, a frente liderada pelo Hamas em Gaza chamou a um renascimento da luta contra Israel. Nem o Hezbollah, nem o Irã, muito menos a Síria, responderam adequadamente. O futuro do povo palestino não está em jogo no balcão geoestratégico do OJS. Se fosse neste tabuleiro de xadrez, a luta palestina estaria perdida. Os interesses geoestratégicos e as tensões entre o imperialismo norte-americano e o imperialismo russo ou chinês, que existem, estão subordinados à luta de classes, ao confronto em cada Estado e em escala internacional entre a classe trabalhadora e os setores populares contra a burguesia, e na dinâmica entre povos e setores sociais de oprimidos e opressores.
A vitória da oposição abre uma nova possibilidade, como a liderança curda também reconhece. E é por isso que não preocupa só a Turquia, que quer a destruição do Curdistão, mas também preocupa a Rússia, que vê em perigo às suas bases estratégicas, ou o Irã, que está a perder um aliado na região. A vitória rebelde preocupa os EUA e seu aliado Israel, o que explica esses ataques não vistos nos últimos 50 anos. Porque todos temem um processo popular que nasceu de uma revolução de massas nas ruas sírias, que levantou comitês populares em todos os lugares e que pode fazê-lo novamente.
A queda do regime do ditador é uma oportunidade para o povo sírio, protagonista ausente da análise do OJS. Como em qualquer processo político, o futuro não está escrito. Mas nós, revolucionários, não nos envolvemos em especulações, assim como não o fazemos sobre quais são as possibilidades para o povo palestino. Enquanto o povo resiste, estamos com todas as nossas forças do seu lado. Ninguém pode dizer com certeza como isso vai acabar, mas ninguém pode questionar sua legitimidade. Trabalhamos com a esquerda síria que esteve com a revolução de 2011, fazemos isso com a resistência do povo palestino e libanês apesar de termos importantes divergências com suas lideranças, também apoiamos a resistência do povo curdo contra a agressão turca, seja no Estado turco ou na Síria. A solidariedade internacionalista é essencial porque não são apenas as armas que decidem os conflitos, mas também os povos.
Lenin já advertiu em uma carta comovente à classe trabalhadora americana em 1918:
“Quem quer que ‘admita’ a revolução proletária apenas ‘sob a condição’ de que ela se desenvolva clara e claramente (…) que há uma garantia prévia de vitória, que o caminho da revolução é largo, reto e livre de obstáculos, que para vencer não é necessário passar às vezes pelos sacrifícios mais dolorosos, para “resistir em uma fortaleza sitiada” ou para abrir caminho pelos caminhos de montanha mais tortuosos, estreitos, impraticáveis e perigosos, este não é um revolucionário, nem se libertou do pedantismo intelectual burguês”.
17/12/2024.