Do nasserismo ao islamismo político
Do nasserismo ao islamismo político
Por Miguel Sorans
(originalmente publicado na Correspondência Internacional n°35, Dezembro de 2014 – UIT-QI)
A história do Oriente Médio e do Norte da África é a história de heroicas lutas, de choques entre revolução e contrarrevolução. Imensos processos contra o imperialismo e o sionismo. O conflito não encontra uma saída e se agrava. A causa de fundo desta falta de solução está na combinação do fracasso histórico das diversas direções burguesas árabes e islâmicas e o não surgimento de uma direção revolucionária.
Os povos árabes, islâmicos e do Oriente Médio lutam há 100 anos, resistindo aos diversos imperialismos. Batalhando para sobreviver, não serem saqueados e não terem suas culturas destruídas e nem seus direitos como povos e nações. Enfrentando Israel, um enclave imperialista. Com os atuais conflitos e guerras cresce a confusão frente às contradições de seus protagonistas. Cresce a divisão entre os povos do Oriente Médio com aparentes conflitos sectários e religiosos. Enquanto os regimes árabes e islâmicos atacam seus povos, nunca passou por suas cabeças unirem-se para apoiar o povo palestino e derrotar Israel. Somente o papel do imperialismo e a longa história de traições das distintas direções burguesas da região explica o surgimento de grupos ultra reacionários como o ISIS.
O fracasso do nacionalismo burguês árabe
A instalação do estado de Israel em 1948, a resistência à presença inglesa e francesa no Norte da África e a tentativa de penetração dos norte-americanos no Oriente Médio, produziu uma onda revolucionária que desembocou no triunfo de diversos regimes nacionalistas burgueses na região.
A figura central desse período (1948-1967) foi Gamal Nasser, um coronel que representava a burguesia nacionalista do Egito, que chegou à presidência em 1952 dando um golpe militar que derrubou ao pró-britânico rei Faruk, liquidando a monarquia e conseguindo a retirada das tropas britânicas, além de iniciar uma reforma agrária. Em sua etapa de ascenso nacionalizou o canal de Suez (1956) e ajudou à guerrilha da FLN – Frente de Libertação Nacional -, na Argélia, para que o povo argelino se tornasse independente da França (1962). Da mesma forma enfrentou a monarquia pró-ianque da Arábia Saudita no Iêmen do Norte, onde havia começado uma revolução antimonárquica. Com algumas diferenças, o nasserismo teve pontos de contato com o peronismo argentino ou o movimento encabeçado por Lázaro Cárdenas no México, com a diferença de que Nasser se converteu em um líder de toda a região. Lançou a doutrina que se chamou o “pan-arabismo”, que afirmava que todo o mundo árabe era uma só nação desmembrada pelo imperialismo.
Outros países seguiram o caminho do nasserismo e alcançaram sua independência. Partidos e líderes nacionalistas burgueses triunfaram na Síria (com quem o Egito se uniu por um breve tempo formando a República Árabe Unida), no Iraque e os que depois triunfaram na Argélia com Bem Bella, na Líbia com Kadaffi ou na Tunísia com Bourdiga, que em 1956 se tornou independente da França. Saddam Hussein, no Iraque, assim como o atual regime de Bashar Al Assad, surgiram destes movimentos nacionalistas que também tinham a característica de correntes políticas laicas (não religiosas).
Em 1967, Israel, avalizado pelos EUA, lançou um ataque demolidor contra o Egito, com a chamada “Guerra dos 6 dias”, que golpeou duramente Nasser, que faleceu três anos depois. Seu sucessor, Sadat, seguiu um curso abertamente capitulador ao imperialismo e abriu o país aos investimentos estrangeiros.
Em 1978, Sadat concretizou a grande traição assinando com Israel o Acordo de Camp David. Chamou-se assim porque foi assinado na residência de campo do presidente dos EUA, que era então Carter. O acordo significou o reconhecimento diplomático do estado de Israel pelo Egito. Até então nenhum governo árabe o havia reconhecido. A capitulação foi de tal magnitude que a mesma Liga Árabe, com Arábia Saudita à frente, expulsou o Egito de suas fileiras. Sadat morreu em 1981 crivado de balas por disparos de oficiais islâmicos de seu exercito. Mubarak foi seu sucessor.
Sadat e, em seguida, Mubarak, foram a expressão clara do fracasso do nacionalismo burguês árabe e sua transformação em agente do imperialismo, aplicando ajustes e reprimindo seus povos.
Este foi também o destino dos movimentos nacionalistas da Argélia, Tunísia, Líbia e Síria. Novamente o nacionalismo burguês mostrou seus limites e que não é saída para os povos na medida em que não rompe com o capitalismo. O sonho de Nasser de uma “unidade árabe” anti-imperialista e contra Israel fracassou, porque cada burguesia se dedicou a defender seus interesses como burguesias locais. Nunca quiseram a unidade de seus povos para enfrentar Israel e o imperialismo. Muitos destes regimes e líderes (Kadaffi, Mubarak, Bem Ali), odiados por seus povos, terminaram sendo derrubados nas revoluções de 2011. Bashar al Assad é parte deste mesmo processo.
A revolução iraniana e o auge das corrente islâmicas
Frente ao fracasso das direções nacionalistas árabes, o triunfo da revolução iraniana em 1979 causou um grande impacto nas massas árabes e islâmicas da região. Diante do desprestigio das direções tradicionais da região, a República Islâmica do Irã apareceu como uma alternativa para a luta contra o imperialismo e Israel. Enquanto em 1979 Sadat assinava o reconhecimento de Israel, o regime que derrubou o Xá aparecia como radical, contra os EUA e Israel. A partir de então cresceria a influência dos movimentos islâmicos no Norte da África e Oriente Médio, como o Hezbollah no Líbano e o Hamas entre os palestinos, entre outros.
A nova República Islâmica, encabeçada pelo aiatolá Komeini, era fruto não somente do choque da burguesia comercial xiita de Bazar com o velho regime monárquico pró-ianque, como também das grandes mobilizações de massas que tiveram como protagonista destacada a classe trabalhadora iraniana. Surgiram órgãos de duplo poder como os shoras que foram uma versão iraniana de conselhos operários unidos à juventude revolucionária iraniana.
A direção burguesa e reacionária, baseada no fundamentalismo religioso do regime dos aiatolás, manteve durante décadas certa independência política do imperialismo. Mas, ao mesmo tempo foi lançando uma ofensiva reacionária em seu país que foi liquidando o duplo poder dos shoras e eliminando a ala democrática e revolucionária do processo. Manteve uma dura repressão ao povo trabalhador, à esquerda, às mulheres, às minorias nacionais (curdos, árabes, etc.), cortando as liberdades. A isto se somou seu papel cada vez mais traidor contra os povos árabes. Como no caso de seu apoio ao regime invasor no Iraque (2003), avalizando os colaboradores iraquianos xiitas do invasor ianque. Desta forma ganhou o ódio de milhões de iraquianos sunitas e de outros povos da região. Enquanto os EUA o qualificavam como o “eixo do mal”, eles pactuavam secretamente com o imperialismo para dar a benção a repressores como o primeiro ministro, o xiita Maliki, que recém renunciou em 2014 em meio à derrocada do Iraque.
Isto explica que finalmente, no final de 2013, tornaram-se públicas as negociações e o acordo EUA-Irã. Um novo acordo contrarrevolucionário que serviu para aumentar o isolamento da revolução síria, já que o Irã é, com a Rússia, a ponta de lança de Bashar al Assad, a ponto de o pró-iraniano Hezbollah do Líbano passar a apoiar militarmente, com seus milicianos, o ditador sírio.
Tudo isto foi fazendo com que a direção burguesa islâmica xiita do Irã deixasse de ser um polo de atração para os povos e lutadores da região. Até amplos setores dos trabalhadores e a juventude iraniana foram se rebelando contra este regime, como ocorreu nas mobilizações massivas de 2008-09.
O ódio ao imperialismo e às suas agressões criminosas (apoio a Israel, Afeganistão, Iraque, Somália, etc) combinado com as reiteradas traições das direções burguesas árabes e islâmicas, o papel nefasto do stalinismo e a ausência de uma esquerda revolucionária forte, tem sido o caldo de cultura para que fossem crescendo, desde os anos 90, as mais variadas frações islâmicas reacionárias, muitas delas de ação terrorista. Movimentos teocráticos e reacionários das mais variadas formas (desde os talibãs do Afeganistão até o atual ISIS, passando pelo Al Qaeda ou a Frente Al Nusra da Síria) que aplicam métodos aberrantes contra seus próprios povos, seus opositores e às mulheres, gerando maior divisão e confusão nas massas do mundo em luta contra o imperialismo e contra os regimes reacionários da região e o sionismo.
As revoluções de 2011 e o problema da direção
As revoluções triunfantes do Norte da África e Oriente Médio abriram um novo período revolucionário na região. Iniciaram-se na Tunísia (janeiro) e se alastraram como um pavio de pólvora ao Egito, Líbia e logo à Síria. Ecoaram no Iêmen e no Barein, mas, terminaram por não se concretizar. Foram triunfos de revoluções democráticas contra velhos regimes ditatoriais que aplicavam os planos das multinacionais e do FMI. Foi o que popularmente se conheceu como a “primavera árabe”. As mobilizações revolucionárias das massas derrubaram as velhas ditaduras dos ex-movimentos nacionalistas burgueses e de líderes como Kadaffi, que com o tempo passaram a ser agentes do imperialismo, fechando este ciclo. Mas, também colocou em evidência que, tampouco o islamismo político, que crescera com a revolução iraniana, foi uma alternativa. Pelo contrario, esses setores islâmicos burgueses não apoiaram o início das revoluções árabes. Por exemplo, a Irmandade Mulçumana (IM), no Egito, não a apoiava. Passaram a apoiá-la ao ver que suas bases se somavam à Praça Tahir e era inevitável a queda de Mubarak. O mesmo ocorreu com os islâmicos tunisianos. O Irã nunca expressou seu apoio e, de fato, se opôs, já que temia que essa revolução chegasse às suas fronteiras. Até o Hamas chegou a reprimir as marchas de apoio do povo palestino à revolução do povo egípcio.
Tratou-se de uma revolução que surgiu pela base, dos trabalhadores, da juventude e dos setores populares. Teve um alto grau de espontaneidade. Se fez contra os regimes e todas as velhas direções burguesas laicas ou religiosas.
Por falta de uma direção socialista revolucionária não tiveram continuidade até uma revolução socialista. Trataram-se de revoluções inacabadas. Essa ausência de direção também permitiu que grupos políticos das burguesias islâmicas (a IM no Egito e o Ennahda na Tunísia) se apossassem do poder, dirigindo as revoluções para congelá-las ou desvia-las.
Há quase quatro anos, com todas suas desigualdades, estes processos se debatem entre a continuidade da revolução ou a contrarrevolução. Novamente, como ao largo de toda a história dos povos árabes e do Oriente Médio, o grande problema é o da direção. Neste caso, a ausência de uma direção socialista revolucionária que enfrente e derrote a contrarrevolução.
Existe uma contraofensiva contrarrevolucionária em curso. Iniciada pela ditadura de Bashar al Assad com sua tentativa de genocídio em massa. No entanto, depois de três anos de guerra civil e de massacres, o regime não conseguiu terminar com a revolução síria. Somou-se o Egito com o golpe militar de 2013, que aproveitou o ódio das massas contra o governo de Mursi da IM, para instalar um governo civil-militar repressor e aliado dos EUA e Israel.
Nesta contraofensiva se unem os mais diversos protagonistas que temem as massas e as novas revoluções. O imperialismo ianque, a UE, Israel, Arábia Saudita, Qatar, Turquia e Egito, com seus diversos interesses em jogo. Rússia, Irã e Venezuela apoiando a ditadura síria. Obama pactuando com o Irã e avalizando o governo cível-militar do general Sissi no Egito, que reprime o seu povo e boicota a resistência palestina. Irã que avaliza os bombardeios no Iraque porque quer terminar com as rebeliões e evitar que chegue uma “primavera” em seu país. Pela mesma razão, mas aparentemente por outro caminho, Arábia Saudita e Qatar com suas monarquias sunitas deixam correr a oposição síria para aparentar imparcialidade no conflito.
Apesar desta contraofensiva imperialista e de seus aliados, e dos golpes que já produziram, ainda assim o processo revolucionário não tem sido derrotado. Os povos e os trabalhadores seguem lutando. Na Síria seguem combatendo a Bashar; no Egito, em que pese o golpe militar, tem ocorrido novas greves e mobilizações e na Tunísia, que foi o berço da revolução, o movimento operário tunisiano segue intacto e os setores mais reacionários não conseguiram gerar um só golpe como o do Egito nem um caos como na Líbia.
Na Tunísia a esquerda tunisiana e setores sindicais independentes possuem muito peso. A UGTT segue sendo uma central operária, com uma direção majoritariamente reformista, mas que permanece uma organização de referencia. No Egito, o Movimento 6 de Abril, protagonista destacado da queda de Mubarak, não apoia a ditadura do general Sissi, e é perseguido por ele, existem setores de esquerda trotskista e sindicatos independentes. O setor dos heroicos rebeldes da Síria que não estão com o reacionário ISIS e os combatem e, junto a eles, existem milhares de lutadores que são a base para seguir dando a batalha estratégica de construir uma direção revolucionária que possa encabeçar a combatividade histórica dos povos árabes e do Oriente Médio.
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Países artificiais (box)
A situação no Oriente Médio e no Norte de África de guerras civis, intervenções imperialistas, miséria ou destruição social e cultural só pode ser explicada pelo papel predatório dos vários imperialismos e do capitalismo. O que se conhece como mundo árabe e islâmico foi dividido ao capricho das várias potências imperialistas ao longo da história para se apropriarem das suas riquezas, especialmente do petróleo. “Dividir para governar” tem sido o lema.
No século XV, os turcos conquistaram parte da região e estabeleceram o Império Otomano. Já no século XIX os franceses invadiram a Argélia, a Tunísia e o Marrocos. A Itália tomou a Líbia. Os Ingleses o Egito e e o Sudão. Durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), antes da queda do império liderado pelos turcos, aliados à Alemanha, os imperialistas europeus e norte-americanos dedicaram-se à divisão. A Grã-Bretanha e a França assinaram o acordo secreto Sykes-Picot, pelo qual os ingleses ficaram com o Iraque, a Jordânia e a Palestina; e a França com a Síria e o Líbano. É preciso lembrar que o famoso Lawrence da Arábia foi um oficial britânico que liderou uma rebelião árabe contra os turcos, a fim de favorecer a coroa inglesa. Em 1917, as tropas inglesas tomaram Bagdá e Jerusalém.
Os bandidos imperialistas traçaram fronteiras ditadas pelos seus interesses e criaram países, muitos artificiais, ou protectorados para controlar o petróleo. Principalmente a criação da Arábia Saudita, do Kuwait, do Catar e dos Emirados Árabes. A Arábia Saudita só foi “fundada” como país em 1932 pelo guerreiro Ibn Saud, que lhe deu o seu nome, apoiado pela Standard Oil da Califórnia, que derrotou os hachemitas que controlavam a região desde a década de 1920, apoiados pelos ingleses. Desde então, rege a unidade saudita, Standart Oil e Texaco.
Em 1926 a França invadiu a Síria e dividiu o seu território, criando a “república independente” do Líbano, fazendo um acordo com a burguesia da minoria cristã maronita, os drusos, xiitas e sunitas.
As fronteiras artificiais fizeram com que muitos povos ficassem sem terras e oprimidos em vários países. Um caso claro é o dos palestinos cujo território foi usurpado desde 1948 por Israel. Outro caso é o dos curdos, que nunca foram autorizados a formar um país. Só as massas populares e os trabalhadores poderão liderar a luta pela unidade e independência dos povos do Norte de África e do Médio Oriente.
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Arafat e a OLP (box)
Como parte do processo de luta contra o imperialismo e Israel foi o surgimento da OLP em 1964. Mas se tratou de uma liderança política que foi capitulando e aprofundando a crise de direção dos Palestinos e do Oriente Médio.
Sob a liderança de Arafat, na década de 1970, a OLP tornou-se a organização nacional, laica e não racista do povo palestino desterritorializado. Surgiu como um movimento de combatente de massa que lutarvam a partir dos campos onde estavam refugiados, na Jordânia e depois no Líbano. Os combatentes da OLP tornaram-se a liderança não só dos palestinianos, mas também das massas desses países.
Devido à sua grande influência tiveram a oportunidade na década de 70, no meio de uma onda de lutas, à frente daquele povo, de tomar o poder, substituindo os governos pró-imperialistas do rei Hussein da Jordânia e do Líbano.
Mas a liderança de Arafat opôs-se a isto, para não romper com as burguesias árabes, que subsidiaram a OLP. O que levou a duras derrotas quando os combatentes foram expulsos da Jordânia e do Líbano por tropas dos governos árabes apoiados por Israel. Neste quadro cresceram métodos terroristas urbanos, com ações equivocadas e desesperadas, que não ajudaram em nada a causa palestina e foram utilizadas pelo sionismo.
Arafat e a liderança da OLP acabaram por abandonar a consigna histórica de um Estado Palestino laico, democrático e não racista e pelo fim de Israel. Finalmente, em Setembro de 1993, a OLP assinou o Acordo de Oslo com o primeiro-ministro israelita Rabin e os EUA, reconhecendo Israel e a autonomia palestina parcial em Gaza e na Cisjordânia.
Toda este giro foi enfraquecendo e fazendo com que a OLP entrasse em crise. O que levou, no calor da Intifada de 1987, ao surgimento de um movimento de oposição palestina como o Hamas, uma corrente islâmica, que lhe tomou parte da sua base, controlando Gaza. O Hamas nasceu opondo-se aos acordos de Oslo e exigindo o fim do Estado de Israel. Embora nos últimos anos esta afirmação tenha sido relativizada. Ao contrário do slogan de uma Palestina secular, o Hamas reivindica erradamente a instalação de um Estado islâmico teocrático e religioso.
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O papel da ex-URSS (Box)
Em todo este processo, a política da burocracia do Partido Comunista da ex-URSS desempenhou um papel contra-revolucionário. Em 1948 votou a favor da criação do Estado de Israel. Depois seu apoio económico e militar ao nasserismo, como os regimes da Líbia, da Síria ou do Iraque, foi na verdade um apoio aos seus governos burgueses enquanto eles amarravam as massas às suas ditaduras. Neste quadro, a política do stalinismo levou os partidos comunistas locais a seguirem as lideranças burguesas, nacionalistas e religiosas.
Em 1979, quando ocorreu a revolução iraniana, o governo da URSS não só se opôs, mas procurou neutralizá-la invadindo o Afeganistão para tentar conter a rebelião muçulmana que ameaçava invadir as suas repúblicas do sul. O que gerou uma resistência afegã liderada por uma guerrilha islâmica, os “mujahideen”, financiada pela CIA. Uma mistura de fanáticos religiosos e anticomunistas. Em 1989 conseguiram expulsar o exército soviético. Desse processo surgiria o Talibã. Agora surge o paradoxo de que esta monstruosidade reacionária, que abrigou a Al Qaeda e que na época era incentivada pelos Estados Unidos, acabou sendo a força popular que combate os “fuzileiros navais” invasores.
Os atuais seguidores da burocracia soviética, a liderança do PC de Cuba e do PSUV da Venezuela, não apoiaram as revoluções de 2011 e defenderam ditadores como Kadaffi ou Bashar Al Assad como “anti-imperialistas”. Enquanto, o chefe do regime capitalista russo, o antigo membro do KGB, Vladimir Putin, é o apoio económico e militar do genocida Bashar al Assad.
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Arábia Saudita e as monarquias petroleiras (Box)
Arábia Saudita conta com uma população de mais de 29 milhões de habitantes. É o primeiro produtor de petróleo do mundo. Tem um regime ultrarreacionário, agente dos EUA e sócio das multinacionais. Trata-se de uma monarquia com poderes absolutos que aplica a Sharia, a lei islâmica, onde, por exemplo, as mulheres têm seu direito ao trabalho restringido, não podem sair sozinhas de suas casas, não podem conduzir veículos, só passaram a poder votar a partir de 2011 e se reprime toda forma de oposição política.
Qatar é outra monarquia absoluta. Foi um minúsculo protetorado britânico até que pactuou sua independência em 1971. Possui uma população de aproximadamente 2 milhões, mas somente 250.000 destes são qataris, a maior parte de seus habitantes são estrangeiros que trabalham e vivem ali explorados com salários de miséria. São em grande parte operários da construção civil que fazem os estádios para a Copa do Mundo de 2022. Qatar possui a terceira maior reserva mundial de gás natural. Seus xeiques são uma oligarquia ultra milionária que investem em construção de estádios com ar condicionado porque as temperaturas chegam a 50º C. E investem, por exemplo, milhões de euros, associando-se a clubes como Barcelona e Paris Saint Germain, entre outros.
Os Emirados Árabes Unidos são compostos por sete emirados: Dubai, Abu Dhabi, entre eles. Foi um protetorado do Reino Unido até 1971. Possui 8.200.000 habitantes. Além de dar-se ao luxo de contratar Maradona, também, por exemplo, compraram o Manchester City, adquirido em 2008 por Mansour Bin Zayed Al-Nahyan, integrante da família real de Abu Dhabi.
Tem-se a certeza que tanto os xeiques da Arábia Saudita como os do reino de Qatar teriam facilitado o financiamento do ISIS. Como é que agora estes mesmos xeiques integram a “coalizão” para combater o ISIS junto aos EUA? Como explicar esta aparente contradição?
Não é nada novo que estas monarquias ultrarreacionárias, em especial a Arábia Saudita, usem seus milionários recursos para financiar diversos grupos ideológicos e usá-los para seus fins, que é sustentar seus clãs familiares burgueses no poder. Mas, nunca mudaram sua essência de estar a serviço do imperialismo e da contrarrevolução.
Os sauditas financiaram em dado momento à OLP de Arafat. Por isso apoiavam os palestinos? Não. Por essa via buscavam controlar a sua direção, condicioná-la e, por sua vez, ficar bem com seu povo que odeia Israel. Nos anos 1980 financiaram o Iraque na guerra contra o Irã, que é outra burguesia petroleira rival e, logo depois, apoiaram a invasão ianque ao Iraque. Financiaram, junto à CIA, a guerrilha islâmica afegã em uma cruzada anticomunista, da qual fez parte Bin Laden, filho de uma das mais ricas famílias sauditas. Agora o fazem com os rebeldes sírios, em especial com o ISIS. Por esta via colocaram uma cunha contrarrevolucionária para dividir e condicionar os rebeldes. Para isto, os sauditas e o Qatar investiram no ISIS.
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Sunitas e Xiitas (Box)
Os dois ramos principais do Islã são os sunitas e os xiitas. Diz-se que a divisão se originou depois da morte de Maomé, no ano de 632, a partir das disputas sobre a sucessão. Hoje em dia os sunitas, que se consideram a ala “ortodoxa”, constituem cerca de 85% dos mulçumanos. Calcula-se que são quase 1500 milhões no mundo.
Existiu sempre, como em outras religiões, uma disputa de caráter religioso, neste caso sobre a interpretação do Corão. Há quem atribua uma origem religiosa aos conflitos armados atuais como as anteriores guerras ou confrontações nacionais. Na realidade, nem o atual conflito no Iraque e na Síria nem as anteriores guerras possuíam origem religiosa. Trata-se de uma disputa política entre distintos setores burgueses do Oriente Médio por seu poder de influencia e o controle do petróleo, do gás e das riquezas naturais para negociar em melhores condições com o imperialismo e as multinacionais. O imperialismo sempre tem usado essas rivalidades e Israel para tratar de exercer seu domínio.
A monarquia da Arábia Saudita tem se mostrado sempre como a cabeça da burguesia sunita da região. A comunidade muçulmana xiita, ainda que minoritária, possui, desde 1979, o peso por governar o Irã, um país com cerca de 80 milhões de habitantes e de grandes reservas de hidrocarbonetos (quarta reserva de petróleo e primeira de gás a nível mundial).
Desde sempre, ambas, potencias petroleiras regionais, se confrontaram pelo petróleo e seus mercados ao calor da influencia do imperialismo. Os choques e as disputas cresceram a partir da revolução iraniana. A República Islâmica do Irã, dominada pelo regime teocrático da burguesia xiita, surgiu como um regime burguês com fortes atritos com o imperialismo norte-americano. Pretendeu se desenvolver como uma burguesia relativamente independente tratando de impor sua influencia em outros países como Iraque ou o Líbano. Arábia Saudita e seu regime ditatorial temeu que uma onda islâmica xiita causasse uma rebelião dentro de suas fronteiras. Por isso, se aliou aos ianques nos anos 1980 para tratar de derrotar o regime iraniano e financiou, por exemplo, o Iraque, quando este lançou uma guerra falida contra o Irã. Por isso agora, financiou, em parte, o ISIS na Síria, para debilitar Bashar Al Assad, um aliado do Irã.
Ainda que tenham essas disputas, agora Irã e Arábia Saudita atuam para tratar de derrotar a onda revolucionária da “primavera árabe”. O que não querem, nem os aiatolás nem os xeiques, é que haja uma “primavera”, uma rebelião popular dentro de suas fronteiras, que leve a questionar seu poder.