Texto 7 – Os manifestos de janeiro de 1948 e agosto de 1950 – o governo democrático e popular

Por João Santiago, Coordenação da CST do Pará

Introdução

A 7 de maio de 1947 o PCB teve seu registro cassado no Tribunal Superior Eleitoral por 3 votos a 2 e consequentemente a perda de todos os seus mandatos em 12 de janeiro de 1948, por conta da Lei aprovada no Congresso Nacional. Luis Carlos Prestes como senador pelo DF-RJ e os 14 deputados federais foram cassados. Inaugurava-se uma nova fase de ilegalidade do partido orquestrada pela ditadura de Dutra e Gois Monteiro, os mesmos que derrubaram Getúlio Vargas em 29 de outubro de 1945.

Jogado na ilegalidade (depois de uma defesa exaustiva da “democracia” liberal-burguesa no discurso de Luis Carlos Prestes de 1945) e com uma nova conjuntura internacional favorável vindo do leste da Ásia, com a vitória da Revolução Chinesa liderada por Mao-Tse-Tung, o PCB vai entrar em uma nova fase, que historiadores oriundos do PCB, como João Quartim de Moraes chamam de “guinada à esquerda” ou de “radicalização revolucionária”, no caso de Daniel Aarão Reis a partir dos manifestos de janeiro de 1948 e agosto de 1950.

Segundo Quartim “foi esse o contexto em que se operou a guinada à esquerda do PCB, programaticamente assumida no Manifesto de janeiro de 1948 e levada ao extremo no de agosto de 1950, ambos assinados por Prestes”[1]. Também Daniel Aarão Reis, localiza essa “radicalização” política da seguinte forma: “De volta aos subterrâneos da sociedade, os comunistas reagiram com a radicalização revolucionária. Dois textos políticos…exprimiram de modo mais completo o novo curso político adotado: o manifesto de janeiro de 1948 e, principalmente, o de agosto de 1950”[2]. O que ele chamou de “retórica catastrófica revolucionária” teve suas causas também na radicalização da Guerra fria desde 1947, a partir da Guerra da Coréia e pelo triunfo da Revolução Chinesa em outubro de 1949 (idem, p. 78).

Aparentemente, para quem estivesse conhecendo Prestes e o PCB pela primeira vez e nunca tivesse conhecido a fase anterior do partido, das frentes com o burguesia dita “progressista”, da “União Nacional”, do apoio ao ex-ditador Getúlio Vargas quando da luta contra o nazi-fascismo, o envio de soldados para a guerra e a redemocratização por cima em 1945, se poderia concordar com as afirmações de Quartim e de outros historiadores como Daniel Aarão Reis. Entretanto, mesmo quando analisamos os Manifestos de 1948 e 1950, e o informe político de maio de 1949, todos assinados por Prestes, vemos que as coisas não são bem assim, e que a velha fórmula stalinista das frentes populares e conciliação com a burguesia nacional progressista estão presentes, principalmente ao insistirem na caracterização da sociedade brasileira como “semifeudal e semicolonial”, na proposta de uma Frente Democrática de Libertação nacional e em um “governo democrático e popular” de todas as classes e camadas sociais[3].

De fato, quando se compara toda a história anterior do PCB de antes do período de 1948-1954, tem-se a impressão de que houve uma refundação das estratégias e táticas do PCB; os documentos e manifestos produzidos pareciam que colocavam o partido às portas da tomada do poder político, quando atacavam impiedosamente as classes dominantes e os governos “traidores”, como Dutra e o próprio Getúlio Vargas no seu segundo período. Ledo engano. E é isso que tentaremos demonstrar aqui.

Manifesto de 1948: Autocrítica pela traição às lutas e viragem “esquerdista”

O Manifesto de 1948 assinado por Prestes traz “a necessidade de uma viragem” na linha política do PCB, e é interessante como os elementos da Autocrítica feita pelo partido contém algumas das críticas que a Oposição de Esquerda(trotskysta) fazia há anos: tendências oportunistas, espontaneísmo, o reformismo, a falta de um espírito crítico mais agudo, a incapacidade de levar mais a fundo o estudo da realidade; foi tudo isso junto que não permitiu ao partido perceber e assinalar as grandes mudanças que houveram na situação nacional e internacional desde o início de 1946, principalmente o caráter reacionário da situação brasileira a partir da deposição de Vargas em outubro de 1945, e consequentemente da eleição e da posse de Dutra.

As consequências para a classe operária e para o povo se fizeram logo sentir, com a proibição da campanha contra a Carta Fascista de 37 (de Vargas e do Estado Novo), a proibição das manifestações do 1º de maio a chacina do Largo da Carioca, no RJ, onde dois trabalhadores(Joaquim Coelho e Altair Figueira)[4] foram mortos a metralhadas no dia 23 de maio de 1946; cerca de 1.500 trabalhadores paulistas que haviam feito greve estavam sendo processados pela Lei de Segurança Nacional, com o aval do governo de Ademar de Barros, o mesmo que o PCB ajudou a eleger. O “silêncio criminoso” do partido diante das atrocidades de Ademar de Barros em SP e a “contenção da luta das massas proletárias em nome da colaboração operário-patronal e da aliança com a ‘burguesia progressista[5], é a tendência direitista da qual fala o Manifesto de 1948.

É significativo na “autocrítica” presente no  Manifesto a sinceridade com que Prestes fala da traição às lutas operárias e de como os comunistas “fugiam” das mesmas: “caímos no exagero de ver em qualquer greve ou movimento de massas espontâneo uma provocação perigosa e sempre contrária aos interesses do proletariado(…)mas, como no caso do “quebra-bonde” em São Paulo ou do comício de 18 de setembro de 1947, também em São Paulo, quando as massas espontaneamente se lançavam à luta, eram os comunistas que delas fugiam ou se afastavam da luta em nome da ordem, para evitar ‘provocações’…”[6].

É por isso que em sua última parte “Iniciativa nas lutas pelas reivindicações mais sentidas e imediatas das grandes massas”, o PCB conclama uma tática ousada para as lutas sindicais, a ponto inclusive, de propor que se criem “novas organizações profissionais nos próprios locais de trabalho”, no caso de ser impossível fazer as lutas dentro das organizações sindicais existentes. É dever sempre dos comunistas, agora, “tomar a iniciativa e não poupar nenhum esforço para organizar as massas trabalhadoras”. Além disso um pequeno programa de seis pontos é proposto para organizar um amplo movimento de oposição ao governo Dutra, como a defesa da independência nacional contra a intervenção imperialista, a defesa do petróleo contra as concessões aos monopólios norte-americanos(1); defesa das liberdades populares(2), do nível de vida das massas trabalhadoras, defesa do salário contra a carestia de vida(3), defesa dos interesses dos camponeses(4), defesa da indústria nacional(5) e a defesa contra a injustiça, a desigualdade crescente, a corrupção (6)[7].

Quanto ao “objetivo estratégico” presente no Manifesto repete a velha fórmula stalinista de “instauração no país de um governo popular, democrático e progressista”, único capaz de salvar o país da miséria, do aniquilamento, da perda total da soberania. Essa questão aprofundaremos mais adiante.

Manifesto de 1950: chamado à luta revolucionária pelo poder e radicalização das táticas

Às vésperas das eleições presidenciais de dezembro de 1950, é lançado em agosto o segundo Manifesto do PCB, que trouxe uma radicalização maior das táticas do partido e com uma proposta mais ousada da solução dos problemas brasileiros (ausente no manifesto de 1948), que pregava o “caminho revolucionário” através de uma Frente de Libertação nacional.

Essa foi a grande novidade deste Manifesto, embora mantenha as mesmas caracterizações do Manifesto de 1948, do Informe político de maio de 1949 – e que inclusive permanecerão no Documento aprovado no IV Congresso de 1954[8] – de que o Brasil sofria o risco iminente de ser uma nação colonizada, em uma relação de completa submissão ao imperialismo norte-americano, de uma militarização acelerada, onde o país seria arrastado para uma nova guerra mundial incentivada pelos Estados Unidos, e onde todos os governos eram governos de “traição nacional”(inclusive Vargas), “governos de latifundiários e grandes capitalistas” ou governos de “traidores e assassinos”.

Com essa caracterização, complementada com a execração pública de Vargas que disputa a eleição de dezembro, taxando-o como “velho tirano” e “latifundiário”, “pai dos tubarões dos lucros extraordinários”, o Manifesto abre o caminho para uma tática eleitoral inédita, que nunca antes o PCB havia executado: o chamado ao voto em branco nas eleições presidenciais. ”Sob o jugo imperialista, como nos encontramos, nem eleições nem golpes de Estado ‘salvadores’ poderão modificar a situação”[9].

Qual seria a saída então? O “caminho da luta e da ação”, “o caminho da revolução”. Há um apelo muito claro no Manifesto pela saída revolucionária, visto que as eleições de dezembro não resolverão os problemas das massas: “…diante dos perigos que ameaçam os destinos da nação, apresentamos a única solução viável e progressista dos problemas brasileiros – a solução revolucionária – que pode e há de ser realizada pela ação unida do próprio povo com a classe operária à frente”[10].

Entretanto, essa fraseologia revolucionária do PCB traz junto consigo a velha fórmula stalinista de um governo “democrático e popular”. Colocar abaixo a ditadura de latifundiários e grandes capitalistas, substituir o governo da traição, da guerra e do terror, só pode ser pela via do “governo efetivamente democrático e popular”, onde caberia todos os democratas e patriotas através de uma Frente Democrática de Libertação Nacional. Esse governo teria a tarefa de liquidar as bases econômicas da reação, confiscando as empresas imperialistas e os grandes monopólios estrangeiros e nacionais, a nacionalização dos bancos, dos serviços públicos, das minas, das quedas d’água, assim como o confisco das grandes propriedades latifundiárias, sem indenização, que devem “passar gratuitamente para as mãos dos que nelas vivem e trabalham, os camponeses pobres. Na composição desse governo “democrático e popular” caberiam “todas as classes e camadas sociais que lutem efetivamente pela libertação nacional, sob a direção do proletariado”. Além de operários e camponeses, intelectuais pobres, pequenos funcionários, cabe também “comerciantes e industriais”, soldados e marinheiros, oficiais das forças armadas. Essa seria a composição da Frente Democrática de Libertação nacional. Nos nove pontos programáticos apresentados no final do Manifesto, a hierarquia número 1 é para o governo “democrático popular”, depois a questão da paz e contra a guerra imperialista, onde entra a defesa da União Soviética, da China e dos governos de democracia popular do Leste Europeu, a libertação do jugo imperialista, principalmente com a anulação da dívida externa do Estado, a entrega da terra para quem nela trabalha, desenvolvimento da economia nacional, liberdades democráticas para o povo, melhoria das condições de vida das massas trabalhadoras, instrução e cultura para o povo e a conformação de um Exército Popular de Libertação Nacional.

Conclusão

A falada “guinada à esquerda” ou a dita “radicalização revolucionária” do PCB, como diziam os historiadores do PCB, não poderia durar muito tempo. E de fato não durou. Não fazia parte da linha política de Prestes e da maioria da direção do PCB uma “ação revolucionária” contra os latifundiários e o imperialismo e contra os governos de “traição nacional”. O atrelamento à linha do stalinismo mundial através da ex-URSS, da paz mundial, da coexistência pacífica com o imperialismo, colocavam limites à linha traçada nos Manifestos de 1948 e 1950. Esses seis anos de “esquerdismo”, de “radicalização”, foram um ponto fora da reta. Antes mesmo do IV Congresso se realizar, em 1954,  o PCB já havia mudado sua tática sindical, de fundar “sindicatos vermelhos”, voltando à unidade e às frentes com os velho sindicalismo do PTB de Vargas. Bastou o suicídio de Vargas para que o PCB retomasse toda sua linha anterior a 1948, com as frentes populares e o apoio às “burguesias progressistas”, apoiando Juscelino Kubtchesk nas eleições presidenciais de 1956 e João Goulart na eleição seguinte, com as suas “reformas de Base”.  Na verdade, os dirigentes do PCB voltaram ao ponto de onde nunca deveriam ter saído, na opinião de velhos quadros e dirigentes do partido, como Moisés Vinhas, que nunca aceitaram a fase de radicalização do PCB[11].

NOTAS

[1] . João Quartim de Moraes. Concepções Comunistas do Brasil Democrático, Esperanças e Crispações (1944-1954). In: João Quartim de Moraes (org.). História do Marxismo no Brasil. Vol. 3 Teorias, Interpretações. 2ª ed.Campinas/SP: Editora da Unicamp, 2007; pág. 220.

[2] . Daniel Aarão Reis. Entre Reforma e Revolução: a trajetória do Partido Comunista do brasil entre 1943 e 1964. In: Ridenti, Marcelo e Reis Filho, Daniel Aarão. História do marxismo no Brasil, Vol. V (partidos e organizações dos anos 20 aos 60). Campinas: SP: Editora da Unicamp, 2002, p. 76.

[3] . Edgar Carone. O PCB (1943-1964), volume II. São Paulo: Difel, 1982, pág. 109.

[4] . Voz Operária, Rio, 13/05/50, pág. 5.

[5] . Edgar Carone,  obra citada, p. 81.

[6] . Edgar Carone, obra citada, p.83.

[7] . Edgar Carone, obra citada, pp.88-89,

[8] . “Arrastar o Brasil à guerra, vendê-lo aos imperialistas norte-americanos a fim de conservar o latifúndio e as sobrevivências feudais e escravistas na agricultura — eis o objetivo de toda a política do governo de latifundiários e grandes capitalistas”. O Programa do Partido Comunista do Brasil. In; https://www.marxists.org/portugues/tematica/rev_prob/64/programa.htm. Acesso em: 16/12/22.

[9] . Voz Operária, Rio de Janeiro, 5 de agosto de 1950. In: PCB: Manifesto de 1950. Nova Cultura.info, 14 de agosto de 2020. Acesso em: 16/12/22.

[10] . In: PCB: Manifesto de 1950. Nova Cultura.info, 14 de agosto de 2020, p. 6. Acesso em: 16/12/22.

[11] . Ede Ricardo Soares. Do Manifesto de Janeiro de 1948 à Declaração de Março de 1958 e além: a insubordinação das bases do PCB frente às orientações dos Manifestos de Janeiro de 1948 e agosto de 1950. In: SENA JÚNIOR, C.Z., ed. Capítulos de história dos comunistas no Brasil [online]. Salvador: EDUFBA, 2016, pp. 197-213. ISBN: 978-85-232-1873-7.https://doi.org/10.7476/9788523218737.0011.

 

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