Sudão: guerra civil, multinacionais e 9 milhões de deslocados
Por Miguel Lamas, dirigente da UIT-QI
20/04/2024. Passou-se um ano, em 15 de abril, da luta armada entre os dois grupos militares que disputam o Sudão e suas riquezas, principalmente o ouro. Ambos os lados lutam entre si, mas reprimem selvagemente a maioria do povo trabalhador do Sudão.
O conflito – que opõe as Forças Armadas Sudanesas (FAS), chefiadas pelo general Abdelfatah al Burhan, ao grupo paramilitar Forças de Apoio Rápido (FAR), liderado pelo general Mohamed Hamdan Dagalo, conhecido como Hemedti – produziu mais de 9 milhões de deslocados e inúmeros civis mortos ou gravemente feridos.
Na realidade, a maior parte dos deslocamentos e da fome que sofre metade da população de 45 milhões de habitantes do Sudão é, em grande medida, causada pela repressão brutal da população civil por ambos os grupos militares. A grande maioria não está envolvida no conflito, mas é expulsa por soldados – que invadem suas casas, roubam os seus pertences e violam as mulheres – ou sofre com bombardeios aéreos.
Como diz uma nota publicada no jornal espanhol El Salto: “O confronto entre o exército e as milícias no Sudão implica numa guerra contra a população, que se levantou por democracia e que agora luta pela sobrevivência”.
A rebelião popular de 2019 e a contrarrevolução
Em 2019, houve uma revolta popular no Sudão, que pôs fim ao regime militar islâmico de 30 anos do ditador Omar Al Bashir. Houve promessas de democracia e eleições livres. Porém, em 2021 houve outro golpe militar e foi desencadeada a repressão contra a população. E, desde abril de 2023, o caos deixou grande parte da população sem alimentos, devido à paralisação das colheitas, sem quaisquer cuidados sanitários e quase sem nenhuma escola ou universidade funcionando. Milhares de trabalhadores da saúde e da educação foram demitidos, porque foram a vanguarda, junto com os jovens dos “comitês revolucionários de resistência”, das grandes lutas contra a ditadura.
Os “comitês revolucionários de resistência” existiram durante todos esses anos e ainda existem. Eles conseguiram – junto com organizações populares de base nos bairros, que também lideraram a rebelião de 2019 – derrubar a ditadura de 30 anos. Hoje persistem em grande parte do país como redes locais de sobrevivência e de ajuda mútua, canalizando esforços para a arrecadação de alimentos, dinheiro e medicamentos para ajudar aqueles que mais necessitam. Tais comitês são atacados e perseguidos igualmente pelas duas facções militares, FAS e FAR, nos territórios dominados por cada uma.
Mineração de ouro e pilhagem imperialista
O desastre social enfrentado pelo Sudão, um país de origem e língua árabes como a Palestina, não é uma exclusividade. Muitos países africanos, que foram colônias europeias até a década de 1950 e que historicamente foram pilhados pelos colonizadores, estão passando pela mesma situação. Agora, todos eles sofrem uma semi-colonização por parte de empresas estrangeiras e imperialistas, que se apoderam das suas riquezas através de organizações locais associadas, subordinadas e armadas. Além das potências européias, há a penetração de empresas ianques, israelenses, árabes, chinesas e russas, que disputam as riquezas naturais do Sudão.
O Sudão é um país árabe, que foi colônia britânica até 1956. Em 2011, a sua região sul tornou-se independente, com uma população diversificada, com etnias e línguas semelhantes às das populações do sul e do centro da África, e cerca de 11 milhões de habitantes. A maior parte da produção de petróleo, que era a principal riqueza do Sudão, concentrava-se no sul independente. Porém, na região norte, que hoje é o Sudão, foi descoberta a riqueza do ouro há cerca de 20 anos.
Apesar dos números divergentes e de não existir um controle estatal sobre a extração de ouro, fala-se em 233 toneladas de ouro exportadas no último ano. Isso coloca o Sudão entre os principais produtores e exportadores de ouro do mundo. Porém, resta pouco ou nada dessa riqueza para a sua população.
O ouro está sendo levado, em grande parte, por empresas como o grupo paramilitar russo Wagner, agora convertido em African Corps, através da empresa M-Invest, que pertencia ao seu líder, Yevgeni Preghozin, falecido na Rússia, aparentemente assassinado por Putin. Essa empresa continua tendo um papel muito importante na extração do ouro do Sudão, levando-o para a Rússia. Os paramilitares das FAR, que dominam os territórios com as principais jazidas de ouro, são aliados da empresa russa. As empresas dos Emirados Árabes também têm aliança com as FAR. Entretanto, o governo da FAS, que domina outras áreas do país, é aliado de Israel e dos Estados Unidos.
Além da repressão antipopular e dos confrontos bélicos entre setores militares, a mineração de ouro, com uso massivo de mercúrio, está destruindo a agricultura e levando 25 milhões de pessoas, mais de metade da população do Sudão, à fome. Antes de tudo, os 9 milhões de deslocados, devido à invasão de uma das facções militares às suas casas, saíram quase todos sem nada: dinheiro, comida e trabalho. Os deslocados chegam muitas vezes aos locais de refúgio, seja nos países vizinhos ou no próprio Sudão, apenas com a roupa do corpo. E quase não recebem ajuda, porque são acolhidos por populações muito pobres.
A necessidade de solidariedade internacional com o povo do Sudão
A grande experiência de luta do levante popular de 2019 a 2021 mostrou, por um lado, a enorme força do povo trabalhador quando esse se organiza, se une e se mobiliza, mas também que os partidos burgueses e as facções militares procuram fazer acordos com os imperialismos europeus, árabes ou russos para preservar a ordem capitalista e a pilhagem do país, da qual também são beneficiários. As promessas de democratização são repetidamente desprezadas. Esse capitalismo semicolonial – que está destruindo o país e causando uma terrível miséria e fome –, com um povo muito pobre, está hoje em grande parte assentado no ouro. Face à crise histórica crônica do país, as reivindicações econômicas populares e uma verdadeira solução democrática tornam necessária uma alternativa de direção do povo trabalhador e da juventude, reorganizando os comitês revolucionários de resistência, para conseguir no futuro derrotar as duas facetas da ditadura militar; expulsar as transnacionais mineiras russas, europeias, sionistas ou árabes, que estão pilhando o país; e conquistar uma saída e um governo dos trabalhadores, da juventude e das mulheres do povo.
Nós, da Unidade Internacional de Trabalhadoras e Trabalhadores – Quarta Internacional (UIT-QI), apelamos à solidariedade internacional com a luta atual do povo sudanês pela sobrevivência. Isso ao mesmo tempo em que apoiamos a luta dos trabalhadores e jovens árabes e africanos para acabar com o capitalismo imperialista, os governos patronais e as ditaduras da África, bem como com o colonialismo sionista genocida de Israel no Oriente Médio. Desde as suas origens, o capitalismo imperialista, com o escravismo e o colonialismo, conduziu o continente africano, incluindo o norte árabe, ao pior quadro de pobreza, pilhagem e opressão do mundo.