Venezuela: O golpe contra revolucionário de abril de 2002.
Um olhar a partir do movimento operário. | laclase.info, tradução neide solimões
Por: Orlando Chirino*
e Miguel Ángel Hernández** (PSL)
Nota dos autores: O presente texto, que apresentamos ao completar uma década dos eventos de abril de 2002, constitui um extrato de um livro cuja publicação estamos preparando para a segunda metade deste ano, intitulado "A classe trabalhadora e o chavismo".
Quinze meses de vertigem.
Entre dezembro de 2001 e fevereiro de 2003, Venezuela viveu uma das crises políticas mais longas de sua história. Foram quinze meses de vertigem, durante os quais as forças políticas que ansiavam voltar aos seus trilhos e liquidar o processo de mobilização popular que se aprofundou a partir de 1989, se tensionaram ao máximo para reverter as reformas políticas iniciadas no país com o triunfo do candidato Hugo Chávez nas eleições presidenciais de 1998, continuadas com as decisões da Assembléia Nacional Constituinte e com as Leis Habilitantes do ano 2000.
Temos advertido que a nova Carta Constitucional, as leis habilitantes e as primeiras decisões políticas postas em prática pelo governo do presidente Chávez, não ameaçavam produzir uma mudança transcendental ou revolucionária nas tradições políticas do país, impostas pelo binômio partidário AD-Copei desde 1958, já que muitas das instituições do regime político e seu controle, seguiam impunemente em mãos dos velhos governantes do país.
Nesse sentido, estava por se ver quais seriam os procedimentos a se estabelecer para tomar-lhes esse controle e qual seria o desenlace final da disputa pelas principais instituições do Estado, que estava dividida entre governo e os representantes da velha nomenclatura, organizada agora como oposição política. O aparato administrativo de justiça, as Forças Armadas, PDVSA e outras empresas do Estado, as estruturas sindicais, o sistema educativo superior, os meios de comunicação de propriedade estatal e até a diplomacia internacional, só para mencionar algumas parcelas, ocupavam primeiríssimos lugares na agenda dessa batalha política.
Porém, assim como afirmamos que não existia uma mudança revolucionária no esquema de dominação política do país, não se pode desdenhar um fato de grande importância, de que os dois bastiões partidários fundamentais do regime precedente, Acción Democrática e Copei, haviam sido retirados da direção do aparato político do Estado, fato incômodo e insuportável para essa velha máquina política, para as organizações patronais, para a Igreja Católica, para as multinacionais e principalmente para o governo dos Estados Unidos, os quais aumentavam sua inquietação ao corroborar que Hugo Chávez, primeiro como insurreto, em seguida como candidato e depois como Presidente da nação, não seguia disciplinadamente as diretrizes emanadas de Washington, do FMI e do Banco Mundial.
Esse fato em si mesmo, em um contexto de mobilização e crescentes exigências econômicas e democráticas da população, envolvia a possibilidade de uma mudança dramática na forma de exercer o poder político na Venezuela. Para os partidos tradicionais uma coisa era aceitar uma sucessão presidencial após um processo eleitoral, porém outra muito diferente era constatar e ter que aceitar que o novo governo não se inscrevia na linha da alternabilidade consensuada e a repartição da bolsa estatal. Principalmente quando não se tratava de simples pressentimentos, senão de uma realidade que lhes esbofeteava diariamente com os inclementes discursos de Chávez que os acusava de corruptos, assassinos, responsáveis por hipotecar os bens e os recursos naturais da nação e curvados ante as imposições das potências estrangeiras.
Para amortecer os perigos que representava o governo do Presidente Chávez que os denunciava e confrontava, os velhos partidos se esforçaram por dar a batalha, porém a cada passo que deram saíram derrotados no terreno em que eram experts, os processos eleitorais. Nas urnas, a maioria da população lhes cobrava cada vez com mais contundência os desatinos de sua obra de governo durante quarenta anos.
Fracassada essa via, tinham que recorrer a outros mecanismos, pouco compatíveis com sua forma regular de atuação como utilizar o descontentamento político e econômico das classes médias e altas da população, apoiando-se na imprensa privada e nas organizações patronais para aumentar os protestos e dirigi-las contra o governo.
Se voltaram sobre os setores da classe média, avivando-lhe recônditos e miseráveis sentimentos racistas e de ódio contra os estratos mais baixos da população. Alimentaram o terror com a possibilidade de perder privilégios econômicos, sociais e políticos. Ressucitaram o fantasma do comunismo e de maneira inescrupulosa associaram umas tímidas reformas dentro do marco capitalista com o pesadelo totalitário do estalinismo, ou com o tipo de medidas tomadas nos primeiros anos da revolução cubana, nos que foram expulsas as transnacionais e se expropriou a burguesia. A verdade é que Fidel Castro não só havia renunciado décadas atrás a promover a revolução na América Latina, mas também que aberta e publicamente recomendou a Chávez não seguir o exemplo de Cuba, em um discurso pronunciado na Universidade Central de Venezuela, em fevereiro de 1999. Porém os fatos eram irrelevantes para campanha suja da oposição patronal, condenada a alimentar um movimento com rasgos fascistas, propagando o terror sobre um futuro próximo em que se, se mantivesse Chávez no governo, a classe média perderia suas casas, veículos, fazendas, seriam proibidos de viajar ou emigrar, e até teriam confiscadas suas poupanças. Nesta ignóbil campanha, os meios de comunicação em mãos do grande capital jogaram um papel de estrela.
Outro tanto sucedeu sobre a classe trabalhadora, que se propuseram acrescentar seu descontentamento pelas péssimas condições de trabalho que padeciam. Assim, da noite para o dia, a velha direção sindical adeca e copeyana que antes se negava a convocar mobilizações e greves contra os governos de seus partidos, agora se convertia no máximo campeão do protesto e a permanente ameaça da greve. Exigências como melhores salários, emprego digno, direto à negociação de contratos coletivos, liberdade sindical, seguridade e higiene no trabalho e seguridade social, passaram a converter-se em pedra angular da burocracia sindical. Com a fortuna, para eles, de que a política anti-operária e anti-sindical do governo lhes facilitava a tarefa.
O triunfo da burocracia sindical e de seus partidos nas eleições sindicais da CTV em outubro de 2001, marcou uma mudança na conjuntura política nacional, agora favorável para a burguesia opositora e o imperialismo. Depois de três anos de forte ofensiva do presidente Chávez, a oposição patronal logrou conter sua situação de retrocesso, alcançando um primeiro triunfo, potenciando o descontentamento social e canalizando-o em contra do governo e suas medidas.
A nova situação política do país foi subestimada pelo Governo, que quis acelerar o passo para tomar as rédeas da Pdvsa, sem ter em conta que havia sofrido uma importante derrota em uma batalha em que havia centrado suas expectativas estratégicas para obter o controle dos trabalhadores e suas organizações sindicais, após alocar uma forte quantidade de recursos econômicos e políticos.
Por sua parte, a oposição triunfante sobre valorizou o triunfo e a nova conjuntura política, que se entendeu como a oportunidade propícia para lançar-se à batalha final contra do governo, que lhe permitiria desandar o caminho de reforma política vivida durante três anos, e esmagar o movimento obreiro e popular.
Nestas condições, a polarização se acentuou no país, reacomodou e delimitou aos diversos atores sociais e políticos, e criou o ambiente para uma longa confrontação, que duraria 15 meses, com saldo final a favor do governo do Presidente Chávez, porém muito mais que isso, significou um extraordinário triunfo popular, que subverteu pela via revolucionária e não reformista, os caducos cimentos do regime nascido do pacto de Punto Fijo.
A paralisação de dezembro de 2001. A primeira escaramuça
Em 13 de novembro de 2001, o Presidente Chávez, correndo em frente após a derrota nas eleições sindicais, pressionou o acelerador, anunciando 49 leis aprovadas no marco dos poderes habilitantes outorgados pela Assembléia Nacional. A reação da oposição patronal não se fez esperar e encabezado pela Fedecâmaras, convocou a realização de uma paralisação nacional, de caráter empresarial, supostamente contra a decadência econômica que produziriam as medidas adotadas pelo governo. O presidente da Fedecâmaras, Pedro Carmona Estanga, havia advertido em declarações públicas que não se tolerariam leis ou medidas "de corte esquerdista".
Com a experiência desenvolvida ao longo do último ano, os setores convocantes da paralisação patronal estavam lado a lado dos excelentes resultados que proporcionava utilizar a grave situação econômica que agoniava a milhões de venezuelanos. Falar de desemprego, inflação, pobreza e inseguridade eram cartas fortes para arrastar a maioria da população a protestar contra o governo.
Curiosamente, no repertório de Fedecâmaras, da CTV e dos partidos da oposição burguesa não aparecia com muita força o rechaço às medidas que eles consideravam mais ameaçantes contra o modelo econômico imperante no país. Bem sabiam que defender a propriedade e ociosidade de terrenos superiores a 5.000 hectares não mobilizaria o campesinato pobre nem o conjunto da população, como tampouco poderiam obter bons resultados entre os pescadores artesanais, se chamassem a se oporem à lei de pesca e alimentação. E ficariam ao descoberto como agentes das multinacionais petroleiras em caso de explicar publicamente sua oposição à Lei Orgânica de Hidrocarbonetos, que elevava os impostos por direitos autorais a uns 30%. Por tais motivos preferiam não converter em bandeiras os reais objetivos da paralisação, porém mais bem camuflá-los sob as reivindicações sentidas de verdade pela população empobrecida.
Uma excelente descrição do momento político que se vivia o momento da convocatória da paralisação empresarial, foi realizada pelos setores sindicais classistas e combativos agrupados na Corrente “La Chispa” em Valência, que em um boletim distribuído profusamente entre os trabalhadores em 5 de dezembro de 2001, manifestavam:
Companheiros trabalhadores:
Os empresários, banqueiros e grandes donos de terras, apoiados pelos partidos políticos que representam seus interesses e pela burocracia sindical que segue encasteladas na CTV, estão chamando a uma Paralisação Nacional para o dia 10 de dezembro de 2001. Exploradores e burocratas dizem que a paralisação é porque se opõem ao desemprego, à pobreza e à inseguridade e para que o Presidente Chávez os escute. Dizem, portanto, que é uma ação a favor dos interesses do país.
Nós que não somos parte nem apoiamos este governo, estamos contra esta paralisação e dizemos a todos os trabalhadores que são falsos e hipócritas os argumentos dos empresários, dos politiqueiros e dos sindicaleiros para a convocação da Paralisação do dia 10.
Fedecâmaras convoca a paralisação porque sente que com a apresentação de algumas leis, que se estão discutindo e aprovando na Assembléia Nacional, em meio à Lei Habilitante, se prejudica seus interesses de classe. Os burocratas políticos e sindicais apoiam a paralisação porque são aliados aos patrões e porque têm a intenção de pressionar a Chávez, buscando recuperar seus privilégios anteriores, administrando este estado burguês.
As verdadeiras razões da paralisação nacional do dia 10 são:
Porque com a "Lei de Terras e Desenvolvimento Agrário" e Instituto Nacional de Terras ( o governo), pode avaliar quais são as terras produtivas as que não são, suas donos têm até dois anos para colocá-las a produzir porque senão, pode ser declaradas de utilidade pública, tendo que pagar um imposto por terras improdutivas e até podem ser "sofrer intervenção ou expropriadas". Isso incomoda aos grandes donos de terras, porque se acostumaram por anos, a possuir enormes quantidades de hectares, muitas delas obtidas de maneiras mal havidas, mantendo-as ociosas y engordando-as para depois querer especular com elas.
Porque com a "Lei de Pesca e Agricultura" as grandes empresas pesqueiras de arrastão e de atum, não podem pescar a menos de 10 milhas náuticas das costas e só os camaroneiros artesanais poderão pescar em baías e lagoas. Isso está estabelecido na maioria dos países, porém aquí, como os tubarões industriais pesqueiros se acostumaram a pescar aonde seja e como seja, então se incomodam porque agora essa Lei, busca proteger o meio ambiente e trata de cobrir os pequenos pescadores artesanais.
Porque com a "Lei Orgânica de Hidrocarbonetos", independentemente que agora os empresários se podem meter em negócios de refinar o petróleo e, dá caráter orgânico à abertura petroleira, coisa que a Lei anterior não permitia, os que querem entrar na exploração da produção e exploração petroleira, já que estes são o lombinho e a ponta traseira da "carne da vaca petroleira"
Os patrões, banqueiros e fazendeiros estão em levante por causa dessas leis, assim como pelos projetos de Lei de Reformas da Lei Geral de Bancos e outras Instituições Financeiras; a Lei de Empresas de Seguros e Resseguros; a Lei de Contratos de Seguro; porque nestas se prevê maior vigilância e controle por parte do estado. Que querem estes usurários e fraudadores, depois de recém-passado de quebra de bancos e seguros? Eles querem seguir fazendo e desfazendo com o dinheiro dos poupadores e do estado sem que ninguém nem nada lhes ponha controle e um ponto final.
Enquanto os burgueses choram e se sublevam contra essas leis, não dizem nada sobre as que abertamente saem favorecidos, como a Lei de Pequena e Media Indústria e outras 10 leis mais. Os patrões são insaciáveis. Já conseguiram que a discussão do Projeto de Lei Orgânica de Seguridade Social fosse postergada para o próximo ano, buscando eliminar assim os artigos que a eles não agradaram. Querem que reformem as leis aprovadas a seu favor. Por suposição, há muitos patrões que também querem a saída já de Chávez para colocar um Presidente que lhes seja inteiramente dócil e cordeiro. Por essas razões convocam a Paralisação e por essas mesmas razões os traidores Carlos Ortega, Presidente da CTV e Omar Escalante, Presidente de FETRACARABOBO, também apoiam a paralisação nacional do dia 10. Estes burocratas Adecos, querem que saia Chávez para voltar sem obstáculos, a suas velhas práticas de não fazer eleições sindicais, de vender-se e servir aos multimilionários. Este governo é burguês e também é incapaz.
Assim como desmascaramos as farsantes declarações dos patrões quando dizem que a paralisação que promovem é porque se opõem à pobreza e ao desemprego, porque se isso fosse verdade, não despediriam massivamente, deveriam cortar suas taxas de lucros e trazer os milhões de dólares que têm no estrangeiro para investi-lo no país, na produção de bens e serviços, nós queremos desmascarar a este governo. Denunciamos também que é verdade, que são alarmantes os índices de desemprego, que segue crescendo a pobreza e os níveis de inseguridade pública porque este governo burguês tem sido incapaz de lutar contra estes problemas que afetam a maioria da população.
Se há diferenças entre este governo e a maioria dos setores tradicionais da burguesia é porque alguns destes setores sentem que não são consultados, como se fazia antes, na hora de promulgar leis e fazer política econômica. Sem dúvidas, isso não quer dizer que o governo de Chávez é um governo anticapitalista ou anti-imperialista, ainda quando possa ter com eles em alguns pontos de fricção. Tampouco cremos que este seja um governo revolucionário, dos trabalhadores e do povo ou socialista. Se agora não se consulta a todos os setores burgueses como se fazia no passado, é porque Chávez está impondo um novo regime capitalista, fortemente estatista, respaldado por alguns setores burgueses como o de telecomunicações. Este regime busca o surgimento de novos grupos de capitalistas aonde apoiar-se, com a dificuldade que em meio a esta etapa do capitalismo globalizado, estes setores não quebram mas se impõem os grandes monopólios como o grupo Polar, os Cisneros e os das transnacionais, os que buscam minimizar o controle do estado.
Chávez, tratando de impor seu novo regime faz populismo com os setores populares que o levaram ao poder e declara irreverente contra quem o critica e se lhe opõe. Não obstante, na hora das definições Chávez governa para a burguesia e imediatamente que é crítico ao imperialismo, se retrata. Como Presidente essa tem sido sua conduta. Em meio de 53 projetos de leis que acabou de apresentar, incluiu uma Lei do Estatuto dos Funcionários Públicos que corta direitos dos trabalhadores, porém foi incapaz de incluir, na Lei de Reforma a Lei Orgânica do Trabalho para devolver a Retroatividade das Prestações Sociais, depois do roubo que fizeram o governo anterior, os patrões e a CTV. Reivindicação social que prometeu resgatar quando estava em campanha eleitoral.
Aos 3 anos de governo de Chávez, apesar de todo o apoio popular e de contar desde o princípio com enormes recursos econômicos, graças ao preço do petróleo, sua obra de governo tem sido uma fraude. Cresce o desemprego, a quebra de empresas, as futilidades, a insegurança pessoal, a fuga de divisas e a corrupção. Segue proliferando os trâmites burocráticos até para resolver-se a mudança de uma cédula ou placa de veículo. Já milhares de honestos homens e mulheres que o apoiaram entusiasticamente tem começado a dar-se conta que Chávez fala muito a favor do soberano porém, faz pouca política econômica e social para resolver os problemas dos trabalhadores e do povo. Por essa razão tem diminuído a popularidade de Chávez e começa a crescer o desespero de imensa quantidade de venezuelanos.
Em meio dessa situação é que os poderosos setores econômicos políticos que eram donos do regime anterior, tem se animado para tratar de recuperar as tetas do estado na qual tanto mamaram. Para gerar mais crises e provocar a saída de Chávez, conta para isso com o apoio do governo ultradireitista de Bush. Motivo pelo qual chamamos aos trabalhadores e aos setores populares a não deixarem se manipular por esses setores. Há muita razão para criticar ao governo e estar contra ele, porém não há nem uma razão para estar com os patrões, o imperialismo e os setores políticos que administraram conviveram com o regime anterior.
Cremos que há que se mobilizar e se organizar para reclamar os direitos dos trabalhadores e do povo, até com greve geral, contra este e contra qualquer governo, porém, não se pode ser ao lado dos responsáveis pela atual situação econômica tal como são: Fedecâmaras, CTV, AD, Copei e os novos partidos e personagens que tem surgido destes.
Nós não cremos que Chávez, com este regime militarista, estatista e burguês, possa resolver os problemas fundamentais que vivem os trabalhadores e o povo. Menos os resolverão os que não os resolveram governando durante mais de 40 anos. Os problemas dos trabalhadores e do povo, os resolverão os mesmos trabalhadores e setores populares, tomando o poder governando para benefício deles.
Alcance e caráter da Paralisação de 10 de dezembro de 2001
É difícil pensar que a oposição e o empresariado agrupado na Fedecâmaras aspiravam quebrar o governo com esta primeira ação. A data escolhida, e as vacilações de alguns setores do comércio e da pequena e média indústria em coquetel com o governo que na última hora decidiram não participar da paralisação, diminuíram as forças da paralisação. Porém, eram mais além dos nulos resultados práticos no propósito de fazer retroceder ao governo, a paralisação produziu, sim, o início do colapso da equipe de governo, sustentado na dupla Hugo Chávez-Luis Miquilena.
A paralisação de 10 de dezembro de 2001 contra as leis sociais aprovadas no marco da Lei Habilitante outorgada ao Presidente pela Assembléia Nacional, constitui por força dos acontecimentos, um ponto de inflexão no processo político venezuelano. Desde 1999 até esse momento, se havia produzido uma confrontação eleitoral midiática, basicamente de caráter discursivo e retórico através dos meios de comunicação social, enquanto que a convulsão social e a polarização a favor e contra o governo, avançava subterrâneamente. Com a paralisação de 10 de dezembro, se produziu uma quebra nesta primeira etapa do processo político venezuelano, abrindo-se uma nova fase de agudização dos conflitos sociais que significou um salto qualitativo na organização dos setores da oposição patronal para sua batalha contra o governo.
Vale a pena esclarecer, o equívoco conceitual cometido pelos defensores do governo do Presidente Chávez, os quais identificam esta primeira paralisação patronal como contra revolucionário. Consequentes com sua análise de que a Venezuela assistia a uma revolução pacífica, lograda através do triunfo de Hugo Chávez nas eleições presidenciais de 1998 e ratificada com a aprovação por parte da Assembléia Nacional Constituinte de um suposto marco constitucional revolucionário, os apologistas não têm mais remédio que insistir no caráter contra revolucionário da ação patronal de 10 de dezembro.
O abuso das categorias políticas é uma constante nos ideólogos do chavismo, refletindo sua pobreza analítica, uma vez que colocam em evidência sua tendência a aumentar os fatos. Para eles, o sucedido em Venezuela não tem paralelo na história recente da humanidade, o mesmo que seu “máximo líder”, que segundo esta confraria é a melhor estratégia revolucionária dos últimos séculos. Por isso é bom insistir em que a Venezuela estava imersa em um processo de transformações de caráter reformista. A revolução nem sequer se assomava a nível governamental onde os personagens das classes sociais dominantes haviam sido substituídos em quase 90%, com a chegada de Chávez a Miraflores. Muito menos pode-se dizer do corpo político-institucional estatal. Assim como outras coisas, a paralisação de 10 de dezembro não deixou de ser mais que um primeiro ensaio político de caráter reacionário dos oligarcas do país, os quais apoiados em setores da classe média e em menor medida em trabalhadores descontentes com sua situação, tentavam forçar o governo a modificar as leis aprovadas no marco da Lei Habilitante.
Os contendores miram na cabeça
A partir da paralisação de 10 de dezembro, os clarins da guerra soaram e cada contendor fez seus primeiros movimentos tentando atacar os flancos débeis do oponente. A oposição logrou arrastar atrás de si as organizações provenientes da esquerda tradicional, como o MAS, LCR, Bandera Roja e as correntes sindicais que estas representavam, enquanto isso o governo fez o mesmo com algumas cabeças visíveis do médio e pequeno empresariado, assim como figuras chaves do setor financeiro, a quem neutralizou para que não participassem nesta primeira escaramuça.
Passadas as festas de dezembro e iniciado o ano 2002, os contendores se dispuseram a dar continuidade à confrontação, estando claro em ambos os lados que agora teriam que apontar mais acima, diretamente na cabeça do oponente.
As limitações políticas e programáticas do Presidente Chávez haviam ficado em evidência na designação das equipes de direção de entidades chaves como a Pdvsa. Em sua inconsequência, na hora de recuperar o controle estatal do principal recurso do nosso país, o Presidente estava convencido de que atribuindo caráter orgânico à abertura petroleira que se vinha desenvolvendo por trás dos bastidores nos governos anteriores, e se deixava a porta entreaberta para que as multinacionais seguissem intervindo na esfera da refinação do petróleo, poderia sem nenhum sobressalto nomear as pessoas encarregadas de dirigir o complexo negócio petroleiro.
Desgraçadamente para o país e para sua soberania, o presidente Chávez longe estava de compreender que a indústria petroleira é o músculo, nervo e alma do Estado capitalista rentista venezuelano e muito menos estava disposto a dar uma batalha crucial para impedir que os estruturadores do velho regime do pacto de Punto Fijo seguissem controlando-a.
Só que a realidade, muito mais teimosa que os torpes dirigentes do chavismo, lhes bateu na cara e demonstrou através de muitos sinais, que na batalha com a velha ordem política e institucional, o controle da Pdvsa, para os devidos fins, era fundamental. Por essa razão o governo do Presidente Chávez terminou apontando na direção da Pdvsa, finalmente reconhecendo que teria que controlá-la, sob pena de fracassar na gestão de seu projeto político, econômico, social e militar.
Por sua parte, a oposição se fez mais calculadora, unificando suas forças e definindo que os representantes da Fedecâmaras e a CTV seriam seus porta-vozes, tal como foi acordado com o auspício da cúpula da Igreja Católica, em 5 de março de 2002 na reunião desenvolvida na Quinta da Esmeralda. Do mesmo modo identificou com clareza meridiana o significado da Pdvsa e a importância de entricheirar-se em sua direção, recrutando um importante número de gerentes, tecnocratas, empregados e trabalhadores de base, os quais haviam sido ganhos política e ideológicamente, para resguardar-se ante a eventualidade de que o governo quisesse desfazer-se da burocracia "meritocrática" que controlava a indústria.
Porém, também teve a clareza sobre outro aspecto de suma importância, de que o governo em sua ingenuidade política, contornava: de que lado estava a lealdade da cúpula das forças armadas? O Presidente Chávez acreditava tê-las controladas pela via discursiva e se sentia seguro disso por seu passado militar. Não era assim e a oposição sabia que contava com a fidelidade de boa parte da alta hierarquia do aparato repressivo do Estado, à qual poderia recorrer em qualquer momento, para seus fins estratégicos de deixar o Presidente Chávez e aplacar as exigências econômicas e políticas da população pela via repressiva.
O período Janeiro-abril, esteve então caracterizado por enfrentamentos cada vez menos discursivos, e por uma escalada cada vez mais violenta. O governo apostou em controlar a Pdvsa, enquanto que a oposição de direita se jogou a mobilizar a tecnocracia e suas hostes, a classe média e a burocracia sindical para defender-se, ao mesmo tempo que contra atacava lançando-se à procura do controle da cúpula militar para colocar a balança a seu favor. Logo após o primeiro pronunciamento militar contra o governo, realizado por um oficial da aviação em 6 de fevereiro, vários militares formados na Escola das Américas e vinculados aos partidos políticos da direita se declararam publicamente contra o governo, agitando a seus companheiros de armas para que apoiassem uma saída golpista.
O governo, com sua reinterada forma burocrática de atuar, se lançou a decapitar a gerência tecnocrática sem apoiar-se nos trabalhadores da indústria petroleira, e inclusive acompanhando seus atos administrativos com provocações verbais à direção direitista, logrando como resultado uma reação em cadeia de rechaço que foi utilizada pela oposição empresarial para mobilizar a milhares de pessoas da classe média, empregados da administração pública e estudantes, atacando o governo e preparando as condições para um golpe reacionário.
A paralisação de 9 e 10 de abril de 2002
Sobre essas definições globais, Pedro Carmona Estanga da Fedecâmaras, com o respaldo de Carlos Ortega da CTV, se lançou a convocar uma paralisação de 48 horas para os dias 9 e 10 de abril, que precipitaria a luta corpo a corpo pelo controle do aparato do Estado.
Gonzalo Gómez, no momento o promotor do espaço político Assembléia Popular Revolucionária, descreveu a situação pré-golpe da seguinte forma:
“Havia uma paralisação patronal e da máfia sindicaleira da CTV, que se prolongava com uma grande marcha dos setores sociais acomodados, da classe média alta e do conjunto da burguesia. Tudo era impulsionado com a mais perversa manipulação midiática por parte dos donos da televisão, rádio e imprensa privada, com táticas de guerra de IV geração, com a teses de que havia no país uma “ditadura fidelista” e havia que recuperar a democracia. Era o álibi, para mascarar um golpe militar com uma mobilização de massas que permitiria mostrar ao mundo a aparência de que Chávez era derrubado pelo povo.
O governo não tinha a orientação de chamar a mobilizar, argumentava que a situação estava "controlada" e dizia que havia que evitar confrontações violentas ou sangrentas. Porém a conspiração vinha também de dentro e ali não percebiam bem o que ia acontecer. Por isso, as pessoas foram desmobilizadas e se inibiu a mais potente ferramenta de combate que podíamos ter: as massas populares nas ruas.
As Forças Armadas estavam nesse momento neutralizadas pelos traidores do controle do processo e o povo era a única salvação. A superestrutura política preferiu confiar no próprio aparato do Estado, que já se encontrava minado, e esse foi um erro fatal.
E mais adiante registra da seguinte maneira a atitude do governo frente ao evento que estava por desenvolver-se em 11 de abril:
A Assembléia Popular Revolucionaria (APR) vinha se reunindo no Pátio dos Leões da Prefeitura de Caracas, no Salão Andrés Eloy Blanco, em frente à Praça Bolívar de Caracas. Se realizavam intensas jornadas de discussão e atividades para manter o movimento popular em estado de alerta em zonas chaves.
Houve desesperados contatos para persuadir o governo a que colocasse todos seus recursos a serviço da mobilização do povo em defesa do presidente Chávez, porém o critério governamental era que devíamos mantermo-nos calmos e deixar as coisas em suas mãos. Na noite anterior ao golpe, o próprio Ministro de Defesa, José Vicente Rangel, insistia em que permanecêssemos em nossas casas, que não caíssemos em provocações, que tudo estava “normal”, enquanto tinha os golpistas pisando-lhes os calcanhares. (destaque nosso).
Essa mesma noite, a APR se manteve em vigília, movendo-se ativamente com suas comissões de trabalho, eleitas nas sessões da Assembléia. Na madrugada do dia 11, com o golpe em cima, os coletivos integrantes da APR distribuímos cerca de 100 mil panfletos nos bairros e se chamou por todas as vias possíveis a que o povo se concentrasse em Miraflores, com o objetivo de interpor um “tampão popular” que impedisse o assalto à sede do governo pela marcha opositora.
Em uma equação política aonde o governo era irresponsavelmente inconsciente da situação em que estava metido e a maioria da população se encontrava completamente desorientada, a única resultante possível era a potenciação da ofensiva da oposição de direita, já com uma clara agenda golpista. Dalí à coroação do triunfo contra revolucionário era só uma questão de horas.
E, efetivamente sucedeu por duas ações escrupulosamente pré-definidas pela oposição política assessorada pelo governo norte americano desde sua embaixada em Caracas. A primeira foi golpear o sitio mais vulnerável do governo, que era seu débil respaldo entre a alta oficialidade das forças armadas. E em segundo lugar, entrincheirar-se na Pdvsa ganhando o apoio da gerência e de milhares de empregados e trabalhadores que sentiam temor pela possível perda de seus privilégios ou simplesmente de sua fonte de trabalho.
Há que se admitir então que a política golpista da oposição foi muito mais consistente que a do governo, que em meio de grandes vacilações, naufragou em um sem fim de orientações políticas sem sentido, descoordenadas, e sobretudo contrárias à mobilização popular. Caso contrário a da oposição que quebrou a lealdade na cúpula das Forças Armadas e mediante a convocatória a uma nova paralisação empresarial, se sustentou na mobilização de milhares de pessoas, as quais instigou para marchar até Miraflores na perspectiva de levantar as velhas insígnias da Quarta República e fechar o ciclo histórico aberto com o Caracazo em 1989.
Em 11 de abril se produziu um golpe contra revolucionário
Aos cruentos enfrentamentos na manhã e tarde do dia 11 de abril que deixaram dezenas de vítimas, se seguiram quase 8 horas de incerteza provocada em grande parte pelo silêncio dos porta-vozes mais importantes do chavismo. Dois ou três personagens incomodados da tendência política do governo pouco ou nada puderam dizer ante os meios de comunicação, minimizando a crise e a gravidade dos fatos, com ele gerando mais confusão na população que respaldava o Presidente Chávez. Deixava a nu a profunda incapacidade política desses supostos líderes revolucionários de alinhavar uma orientação política em uma situação extrema.
Os militares golpistas tomaram o controle de Forte Tiuna, o aeroporto de La Carlota, e outras instalações militares. O ministro da Defesa, General Lucas Rincón Romero, anunciou em horas da madrugada de 12 de abril que “os membros de Alto Mando Militar da República Bolivariana de Venezuela deploram os lamentáveis acontecimentos sucedidos na cidade- capital no dia de ontem. Ante tais fatos, se solicitou ao senhor Presidente da República a renúncia de seu cargo, o qual aceitou. Os integrantes de Alto Mando põem seus cargos à disposição, os quais entregaremos aos oficiais que sejam designados pelas novas autoridades”.
Sem tentar fazer uma mobilização de resistência por sua conta, o Presidente Chávez e suas figuras mais próximas, renunciaram a dar uma batalha consequente para manter-se de pé. Ao confiar unicamente no aparato militar, sem apostar nada na mobilização, foram incapazes de fazer uma publicação chamando um levante popular para resistir ao golpe, muito menos estiveram dispostos a entregar armas aos milhares de lutadores e populares dos bairros urbanos que estavam dispostos a defendê-los. Nesse sentido, em 12 de abril ficará registrado na história, como o momento em que Chávez e a cúpula de seu movimento político como condutores políticos das amplas maiorias do país, não sobrepassaram a prova dos acontecimentos, se curvaram e docilmente cederam o governo à oposição sem dar a batalha contra os golpistas nativos e seus assessores internacionais entrincheirados na embaixada dos Estados Unidos em Caracas. Chávez chegou ao extremo de negociar com os golpistas a entrega do poder em troca da garantia de seu traslado à Cuba, tal e qual escreve o jornalista Ernesto Villegas em seu livro “Abril, golpe adentro”.
Essa foi a causa fundamental pela qual a oposição patronal obteve o triunfo político na madrugada de 12 de abril, na qual aperfeiçoariam dezesseis horas mais tarde ao juramentar a Pedro Carmona como novo Presidente da República, apoiado pelo grande empresariado local e internacional, a Igreja Católica, os poderosos meios de comunicação e a burocracia sindical da CTV, guiados politicamente pela embaixada norte americana que em todo momento lhes assessorou na execução do plano preconcebido.
Sem dúvidas, a unidade de mando dos triunfadores não estava garantida, tanto que os interesses particulares e os vorazes apetites políticos econômicos de muitos dos participantes, os impediram fazer um acordo global para encaminhar o retorno planejado do país pelo velho modelo político bipartidista do pacto de Punto Fijo.
Pedro Carmona e seu setor terminou impondo as condições e seguros de seu triunfo não duvidaram em desconhecer de um golpe na Constituição e as leis promulgadas em três anos e meio de gestão. Tão convencidos estavam de seu triunfo e de sua legitimidade que não lhes tremeu o pulso para dissolver a Assembléia Nacional, o Supremo Tribunal de Justiça, o Conselho Nacional Eleitoral, governadores, prefeitos e conselheiros, a remoção do Fiscal Geral, do Controlador, e do Defensor Público, os embaixadores, cônsules e vice-cônsules como também das Missões Permanentes Diplomáticas, assim como a eliminação das 48 leis habilitantes, e a mudança da Constituição, restituindo o nome de República de Venezuela.
Em rigor, o setor mais reacionário da oposição terminou impondo-se mediante um autêntico golpe contra-revolucionário no campo político. Dizemos contra-revolucionário não só porque emitiu um decreto que liquidou a institucionalidade que se vinha erigindo e articulando a partir das decisões da Assembléia Nacional Constituinte e os decretos ditados pelo Presidente Chávez sob o amparo da Lei Habilitante concedida pela Assembléia Nacional, senão porque em seu interesse de retroceder o país às condições políticas, jurídicas e institucionais anteriores a 1998, estabeleceram um novo regime político que se sustentava na eliminação das liberdades democráticas, a proscrição do partido que até esse momento estava no governo, assim como o mais desenfreado ataque aos ativistas e lutadores populares que se mostraram solidários com o governo do Presidente Chávez. Desta fanática política totalitária não se salvou nem a embaixada de Cuba em Caracas nem seus funcionários, sitiados e ameaçados pelos grupos de choque do golpismo.
Um ano depois, a hierarquia do Supremo Tribunal de Justiça fieis a um Luis Miquilena somado ao golpismo, e amparados nas incapacidades, incongruências e cumplicidades políticas das cabeças visíveis do chavismo como Lucas Rincón, José Vicente Rangel e Diosdado Cabello, terminaram eximindo a vários dos responsáveis político-militares do golpe e até lhes atribuíram supostas boas intenções de contribuir em fechar a situação de vazio de poder gerada pela renúncia do presidente Chávez anunciada por seu ministro de Defesa. Uma aberração jurídica monstruosa. O governo, por sua parte, desenvolveu a orientação de pactuar e desmobilizar ditada por aquele Chávez que em gesto suplicante pediu perdão aos golpistas com um crucifixo entre as mãos, naquela madrugada de 14 de abril. Ele explica que o governo deixara que Carmona Estanga e outros chefes do golpe se asilassem em embaixadas estrangeiras e obtivessem salvo condutos para sair do país. Nunca houve vontade política para castigar os crímes do golpe: Após o assassinato do fiscal Danilo Anderson por meio de um atentado com bomba, as causas judiciais relacionadas com o golpe foram congeladas, e finalmente em dezembro de 2007, o próprio presidente Chávez selou a impunidade ao decretar uma anistia que beneficiou a grande maioría dos criminosos que atentaram contra os direitos democráticos da população. Também ficaram na impunidade praticamente todas as mortes violentas dos dias 11, 12, 13 e 14 de abril.
13 de abril: uma revolução contra os golpistas e o imperialismo
Tudo foi vertiginoso. Em menos de 72 horas os golpistas coroaram com êxito seu trabalho, derrubando Chávez e instaurando a ditadura de Pedro Carmona. Porém com maior velocidade e decisão, uma insurreição de profundo conteúdo popular que preencheu as ruas das principais cidades do país, acompanhada de uma rebelião da oficialidade média e a tropa, derrotou aos golpistas e aos governos das potências econômicas internacionais que os apoiavam, restituindo as liberdades democráticas pisoteadas pela breve ditadura e permitindo o retorno de Chávez a seu cargo de Presidente da República.
Bem disse Chávez na madrugada de 14 de abril de 2002, que muito havia que escrever para rever este gesto heroico do povo venezuelano, que em menos de 48 horas passou de uma situação de contra revolução a outra que ele mesmo qualificou de contra-contra revolução. Ou mais simplificadamente para nós, de revolução democrática triunfante; ainda que de todas as maneiras, o triunfo popular não significou uma derrota esmagadora dos golpistas, devido às políticas conciliadoras de Chávez, que se jogou a desmobilizar o povo que derrotou o golpe, e permitiu aos golpistas se reorganizar e prosseguir sua atuação conspiradora.
Uma revolução democrática triunfante
De maneira contrária a como atuou o governo do presidente Chávez, os setores mais empobrecidos da sociedade e grandes setores da classe trabalhadora que não estavam manietados pela direção da CTV nem pelos partidos políticos da direita ou pela Igreja Católica, saíram dos populosos bairros e baixaram das serras de Caracas, fazendo por sua conta e risco o que lhes correspondia. Nesta insurreição popular se destacaram as novas organizações surgidas ao calor dos primeiros avanços democráticos de caráter reformista liderados pelo governo do presidente Chávez, entre eles as Assembléias Populares Revolucionárias que aglutinavam os ativistas e militantes das organizações políticas de vanguarda, assim como os Círculos Bolivarianos, organismos de base criados pelo governo para discutir os problemas de sua comunidade e canalizá-los através dos organismos competentes para buscar-lhes pronta solução.
Outro tanto devemos dizer da oficialidade média e a tropa de várias guarnições, como a dos Paraquedistas de Maracay e um pequeno núcleo da cúpula militar, que passaram da paralisia inicial a realocar-se contra o golpe ao calor da mobilização que tomou as principais cidades do país. Não só se alarmaram ante os primeiros atos brutais do governo de fato e perceberam a precariedade e as divisões na ditadura carmonista, mas que sobretudo muitos militares dos estratos médios cederam à pressão da mobilização popular e tomaram posição contra o golpe, chegando a constituir-se em um importante baluarte da rebelião anti-golpista.
Em defesa das conquistas democráticas logradas com a queda do regime bipartidário adeco-copeyano e postas em grave perigo pela nascente ditadura, o povo se levantou igual que em O Caracazo, sem nenhuma direção política reconhecida a frente. Milhares de venezuelanas e venezuelanos encheram as ruas, enfrentaram os golpistas nos arredores de Miraflores, rodearam os quartéis e motivaram a insubordinação das tropas, retomaram o canal de televisão estatal e puseram em funcionamento rudimentares porém efetivos sistemas de intercomunicação. Além de apelar à solidariedade internacional e denunciando a mão criminosa do governo dos Estados Unidos.
Na tarde de 13 de abril, um setor da cúpula militar golpista, representada pelo general Vásquez Velasco, imaginando o perigo real que representavam as massas mobilizadas e a insubordinação das tropas nos quartéis, tratou de recuar solicitando publicamente a Pedro Carmona que voltasse atrás na medida de dissolução da Assembléia Nacional e que desse continuidade aos programas sociais do governo chavista, porém já era demasiado tarde. As massas populares haviam aberto uma ferida profunda e de morte na recém instalada ditadura, gerando com ela uma crise revolucionária, que combinada com a inexistência de uma direção revolucionária alternativa ao chavismo, só podia ser encerrada com o retorno de Chávez a ocupar seu cargo no Palácio de Miraflores.
Por isso dizemos que foi essencialmente uma poderosa revolução, de caráter democrático (Revoluções do Século XX, pág 20. Nahuel Moreno) que permitiu recuperar as liberdades suprimidas pelos golpistas e restabelecer a ordem institucional inaugurado pelo governo de Chávez. Em coisa de horas a Assembléia Nacional recuperou seu lugar, e seu presidente foi o encarregado de repor na primeira magistratura a Chávez. Os quartéis foram postos sob o controle da oficialidade e da tropa anti-golpista. Os decretos de emergência, reacionários e subordinados aos interesses do governo norte americano que firmou em suas breves horas de ditador Pedro Carmona, foram parar no lixo. Em um abrir e fechar de olhos, o povo mobilizado garantiu que o pesadelo ditatorial finalizara.
Uma revolução com um profundo conteúdo anti-imperialista
É impossível compreender as reais causas que motivaram aos golpistas nativos a empreender sua ação, sem relacioná-los com os interesses que guiam a política exterior do governo norte americano. O golpe ditatorial promovido pelo Fedecâmaras, os generais, a CTV e a cúpula da Igreja Católica se explica em grande medida pelos esforços do governo dos Estados Unidos, nesses momentos presidido por George Bush, por reverter a seu favor uma correlação de forças que a nível internacional lhe era adversa nessa conjuntura. Recordemos que no princípio do Século XXI se agudizava a crítica situação econômica internacional, a qual por sua vez provocava e generalizava explosões sociais em diversos países, especialmente na América Latina, sendo epicentros Argentina e Bolívia. Nesse difícil transe, o governo norte americano necessitava revalidar sua condição de polícia mundial da contra revolução e isso o obrigava a intensificar seus ataques contra os povos que se opuseram a seus planos.
No caso da Venezuela, apesar de que o governo de Chávez se manteria nos marcos do sistema capitalista, cedia aos patrões, continuava pagando a dívida externa e aplicando planos de ajuste ao estilo dos receitados pelo FMI e pelo Banco Mundial, isso não era suficiente para o imperialismo. A Casa Branca e a oligarquia venezuelana não aceitava as meias tintas, necessitavam um governo títere que cumprisse sem objetar suas ordens, como o faziam em seu momento, Fox, Duhalde, Pastrana e a grande maioria dos governos latino americanos.
Nesse sentido seria parcial a análise, se não completarmos a definição do sucedido durante a noite de 13 e a madrugada do día 14 de abril, dizendo que a revolução teve um profundo conteúdo anti imperialista, na medida em que se derrotou aos governos dos Estados Unidos e Espanha, principais instigadores e patrocinadores do golpe, além de serem seus defensores no terreno diplomático. Triunfo que limitou a ingerência política dos Estados Unidos sobre a Venezuela nos anos subsequentes e potencializou o conjunto de lutas que se desenvolveram no continente americano.
Revolução cívico-militar?
Após sua restituição, o Presidente Hugo Chávez e a totalidade dos teóricos de seu movimento insistiram, e ainda seguem fazendo, no caráter "cívico-militar" do levantamento do dia 13, que acabou com a curta ditadura de Carmona. Para Chávez e seu movimento esta definição é de suma importância, porque ela alimenta a tese do suposto caráter revolucionário das forças armadas, o conteúdo patriótico da insurreição do dia 13 de abril e subtraída importância ao papel transcendental da mobilização revolucionária.
Eva Golinger, em seu livro “O Código Chávez”, é quem melhor sintetiza esta visão. De dez linhas dedicados ao episódio de 13 de abril, em dois deles sumariamente assinala que “Milhões de seguidores de Chávez tomaram as ruas em 13 de abril e exigiam sua reinstauração”, enquanto que à ação militar lhe dedica seis linhas, afirmando que “A Guarda Presidencial, junto com outras facções do Exército que haviam se mantido leais a Chávez, detiveram rapidamente a Carmona e seus assessores e devolveram o Palácio aos membros do Gabinete de Chávez, os quais se deram a tarefa de resgatar o seu presidente constitucional”.
Quem lê este parágrafo, pode errôneamente chegar à conclusão de que houve um desenvolvimento simultâneo da mobilização de milhões nas ruas e a insubordinação das tropas leais ao Presidente Chávez. E em segundo lugar, que os militares tiveram a iniciativa de deter Carmona, entregar o Palácio de Miraflores aos ministros chavistas e que estes últimos foram os encarregados de resgatar Chávez.
Não se trata de demérito ao imenso rol progressivo cumprido por uma parte da oficialidade e da tropa em 13 de abril, porém definitivamente não foi assim como se sucederam os fatos. O sucedido no primeiro momento quando aconteceu o golpe, foi a quebra da cúpula militar que se passa para o lado dos promotores do golpe e uma grave situação de indecisão das camadas médias da oficialidade e das tropas, que não sabiam o que fazer e para onde se dirigir. Até personagens como García Carneiro, logo apresentados como heróis pelo governo chavista, se retrataram com os golpistas nas primeiras horas da queda de Chávez. Em termos cronológicos e políticos, o segundo e definitivo fato se constitui na poderosa mobilização de massas que avançaram pelas partes centrais das cidades mais importantes do país e iam às guarnições militares a exigir dessa oficialidade média que desobedecesse à cúpula militar pró-golpista.
Os que tiveram a oportunidade de participar da concentração que dezenas de milhares fizeram na 42ª Brigada Militar de Maracay, podem certificar que o general Raúl Isaías Baduel, um dos poucos que desconheceram o governo usurpador de Pedro Carmona, só atinava a pedir aos manifestantes que mobilizaram a maior quantidade de pessoas para o quartel, de tal forma que se pudesse impactar e ajudar a ganhar a oficialidade média e as tropas para a defesa da institucionalidade. O mesmo sucedeu com a Guarda Presidencial que só atuou quando constatou que milhares rodeavam o Forte Tiuna e os arredores do Palácio do Governo.
Sem dúvida alguma o decisivo foi a mobilização revolucionária do povo e dos trabalhadores, que encurralou a cúpula golpista e pressionou os setores médios e de base das Forças Armadas a oporem-se à ação ditatorial. Os procedimentos de capturar Carmona, recuperar Miraflores e devolver a Caracas o Presidente Chávez, foram trâmites resultantes do triunfo popular.
O papel da classe trabalhadora em 13 de abril
O golpe ditatorial e a revolução triunfante de abril de 2002, encontraram a classe trabalhadora em um estado de divisão e polarização extrema. Em um extremo estava a burocracia sindical da CTV, que desde tempos atrás havia se submetido totalmente à direção empresarial e se havia colocado como vagão de trem de Fedecâmaras, que nessas condições participou da paralisação de 10 de abril, promovido pelos patrões. No outro extremo estavam tanto os trabalhadores que se identificavam politicamente com o chavismo, como aquelas correntes sindicais classistas e independentes, que se vinham consolidando desde o início do governo do Presidente Chávez, e se distinguiam por sua combatividade e defensa da autonomia sindical.
Frente à convocatória da paralisação empresarial para o dia 9 de abril, como era de se esperar, a divisão e polarização nas fileiras da classe trabalhadora se agudizou. Porém, diferente da paralisação de 10 de dezembro de 2001, que contou com uma proporção importante de trabalhadores que não foram a seus postos de trabalho motivados pela promessa de que se lhes reconheceria seu salário; nesta ocasião os trabalhadores organizados sindicalmente perceberam com mais clareza os perigos existentes na convocatória da paralisação e a das mobilizações programadas para esses dias.
O resultado da queda de braço entre a burocracia promotora da paralisação e os trabalhadores que se opunham foi contundente. A paralisação foi um fracasso porque os trabalhadores foram a aos seus postos de trabalho. Nas instalações petroleiras, aonde os golpistas tinham cifradas suas esperanças, estes foram repudiados e viram como os petroleiros e os setores populares se enfrentavam nos arredores das refinarias com os bandos armados financiados pela executiva da Pdvsa que queria a todo custo garantir o lockout patronal.
Não só se tratava de uma resposta de força dos trabalhadores. Também era ideológica, política e programática. Assim o entenderam os meios de comunicação escritos em mãos privadas no Estado Carabobo, que colocaram seu grito no céu e denunciaram como "trotskismo jurássico e desfigurado" o boletim expedido pelo Bloco Sindical Classista e Democrático nesse estado, em que chamavam os trabalhadores a se oporem à paralisação patronal e expropriar as empresas envolvidas.
E no próprio 13 de abril, ainda que sem jogar um papel dirigente, a classe trabalhadora foi parte dos rios humanos que saíram dos bairros para enfrentar o golpe e exigir a restituição do Presidente Chávez. É claro então que o papel cumprido pela classe trabalhadora no triunfo revolucionário de 13 de abril foi definitivo, porque logrou impedir a paralisação da produção, blindar as instalações petroleiras dos ataques das forças opositoras que desenvolveram o script golpista e foi parte da torrente revolucionária que imobilizou e derrotou os golpistas. O papel cumprido pela classe trabalhadora se fez evidente três semanas depois, quando se realizou a jornada comemorativa de Primeiro de Maio. Esse dia centenas de milhares de trabalhadores, provenientes de todas partes do país junto com a população da Grande Caracas, realizaram uma das maiores mobilizações que se recordam na história moderna da Venezuela. Com um trecho percorrido de mais de 15 quilômetros, iniciando no Poliedro e finalizando nas cercanias do Palácio de Miraflores, os participantes exigiram cárcere e castigo aos promotores da paralisação e os responsáveis pelos assassinatos, nenhuma negociação nem concessão aos golpistas, rechaço à ingerência norte americana, reclamaram a nacionalização dos meios de comunicação em mãos privadas, tudo isso apesar de que o governo propunha não realizar a mobilização para evitar provocações e enfrentamentos.
Como culminação, podemos dizer que nitidamente ficou para o sindicalismo venezuelano a tarefa de tirar a direção de Carlos Ortega e seu séquito de burocratas e iniciar o processo de refundação do movimento sindical sobre bases classistas, democráticas, com plena independência e autonomia frente ao governo do Presidente Chávez, por uma central solidária com as lutas e apoiada em métodos de mobilização para defender de forma consequente os direitos dos trabalhadores.
A partir desse momento, as tendências sindicais com assento em Carabobo e Aragua que se identificavam com essas abordagens, aceleraram seu crescimento, ganhando o respeito e o apreço da nova camada de ativistas e lutadores sindicais que fizeram suas primeiras armas neste episódio revolucionário de abril de 2002.
A conclusão que podemos extrair como ensinamento dos acontecimentos abril de 2002, é que não foi suficiente para que os governos de George Bush dos Estados Unidos, Aznar da Espanha e Andrés Pastrana da Colômbia reconhecessem o novo governo de fato. Não conseguiu que a maioria da cúpula militar se passasse para o bando dos golpistas o que os meios de comunicação, cumpriram um eficiente papel de “formadores de opinião” favorável aos golpistas. Como tampouco foi bastante que os empresários e os banqueiros respaldaram e identificaram como sua a ditadura de Carmona. Nenhuma ditadura, por mais forte que ela pareça e apesar de que conte com o apoio de governos estrangeiros, pode subsistir por muito tempo ante a pressão de centenas de milhares nas ruas. Não foram as inconsequências ou os erros cometidos pelo “breve ditador”; como tampouco foram as dúvidas da cúpula militar sobre o papel que devem cumprir as forças armadas nacionais; nem foram alegados problemas circunstanciais, os que definitivamente ocasionaram a queda da ditadura. Ela caiu vítima de uma poderosa mobilização popular que meteu medo na oligarquia, ao empresariado e ao movimento semi-fascista que havia enchido as ruas durante o golpe; uma mobilização que encorajou a insubordinação das tropas e da oficialidade média. Foi essa mobilização de milhões que terminou restituindo a Chávez e recuperando as liberdades democráticas suprimidas pelo decreto ditatorial de Carmona "o Breve".
* Dirigente Nacional do Partido Socialismo e Liberdade (PSL) e da Corrente Classista, Unitária, Revolucionária e Autônoma (C-cura).
** Secretário Geral do Partido Socialismo e Liberdade.