TEXTO 1: A declaração dos velhos bolcheviques
Henrique Lignani, CST RJ
A tomada do poder por parte da classe trabalhadora russa, liderada pelo Partido Bolchevique de Lenin e Trotsky, foi seguida por um período de muitas dificuldades. De imediato, o novo Estado operário teve que enfrentar uma guerra civil contra exércitos da burguesia russa e dos principais países imperialistas. Após 5 anos de duro confronto, a guerra civil jogou a URSS em uma situação de crise, o que exigiu medidas extraordinárias dentro do partido e do governo.
No plano econômico, em 1921, foi adotada a Nova Política Econômica (NEP). Em resumo, se tratava de um recuo tático, incentivando a produção agrícola de proprietários privados (chamados de kulaks) com o objetivo de retomar o dinamismo da economia. Inicialmente, os resultados foram positivos, com o crescimento da produção agrícola e industrial. Já em 1923, porém, a NEP havia se esgotado e a situação se agravava com o aumento dos preços dos produtos industriais. A necessidade de aumentar a produtividade da indústria levou também à piora das condições de vida dos trabalhadores e à eclosão de greves de operários fabris.
Em meio a esse cenário, o isolamento da URSS no contexto internacional foi um fator que agravou a situação. A derrota da revolução na Alemanha, em 1923, fruto dos erros da direção do Partido Comunista da Alemanha, frustraram a possibilidade de construção de um Estado operário no coração da Europa, algo que teria fortalecido o proletariado na URSS.
O conjunto desses fatos fazia com que, dentro do Partido Bolchevique e do Estado soviético, se solidificasse cada vez mais o comando por parte de uma burocracia. Era esse o contexto às vésperas do XII Congresso do Partido Bolchevique, em que emerge a batalha que daria origem à Oposição de Esquerda.
O combate de Lenin à burocracia
As críticas à burocratização do partido e do governo soviético começaram, na verdade, com o próprio Lenin. O último período de sua vida política, entre 1922 e 1923, foi dedicado a combater esse problema. Por exemplo, Lenin apontou que ocorria uma substituição das massas trabalhadoras pelas suas “camadas mais avançadas” na administração dos sovietes [1]. Além disso, em seu Testamento Político, documento em que recomenda o afastamento de Stalin do cargo de Secretário-geral do partido, Lenin também defendia reformas para melhorar o aparato do Estado, que herdava características do velho regime monarquista [2].
No início de 1923, porém, Lenin, que já vinha com a saúde debilitada, sofreu um novo derrame. Esse fato o impediu de prosseguir o enfrentamento à questão burocrática no XII Congresso do Partido Bolchevique, ficando essa tarefa a cargo de outros antigos dirigentes.
Trotsky continua a batalha contra a Troika
Trotsky foi um dos principais continuadores da política desenvolvida por Lenin no fim de sua vida. Como dito acima, os dois problemas fundamentais enfrentados naquele momento eram as questões da economia e da burocracia. Do ponto de vista econômico, Trotsky identificou o problema em seu informe no XII Congresso, apontando o que ficaria conhecido como “crise das tesouras”: enquanto o preço dos produtos industriais crescia cada vez mais, o preço dos produtos agrícolas caía na mesma proporção. Afirmava, portanto, a necessidade de reformular a NEP, acabando com o incentivo aos kulaks e adotando uma política de desenvolvimento industrial.
A questão relativa ao crescimento do peso do aparato do partido também foi apontada por Trotsky naquele período, quando o velho militante já afirmava que era necessária uma “correção da direção geral do Partido, bem como de seu regime interno”. Nesse sentido, Trotsky escreve uma carta ao Comitê Central do partido, na qual afirma que “a burocratização do aparato do partido se desenvolveu em proporções inauditas graças ao método de seleção que leva a cabo o secretariado. Criou-se uma ampla camada de militantes que, ao introduzir-se no aparato governamental do partido, renunciam por completo às suas próprias opiniões dentro da organização ou, ao menos, à sua manifestação pública, como se a hierarquia burocrática fosse o ente encarregado de fabricar a opinião do partido e suas decisões” [3]. Portanto, o método de direção da Troika encontrava-se cada vez mais distante de uma democracia dos trabalhadores.
O Manifesto dos 46
Trotsky não foi o único a levar à frente essas críticas à direção de Stalin e seus aliados. Naquele mesmo momento, ainda no ano de 1923, 46 dirigentes do Partido Bolchevique elaboraram um documento direcionado ao Comitê Central que ia no mesmo sentido, afirmando que “a continuidade da política adotada pela maioria do Politburo ameaçava levar o partido a lamentáveis reveses”.
O “Manifesto dos 46”, como ficou conhecido o documento, seguia denunciando a ausência cada vez maior de democracia interna no Partido, levando a uma separação entre a base e a direção. Segundo o documento, “como consequência de uma liderança distorcida […], o partido deixa de ser em grande parte essa coletividade independente, viva e sensível à realidade porque é ligada a ela por mil fios. Em seu lugar, observamos a divisão crescente, agora apenas dissimulada, entre uma hierarquia secretarial e as ‘pessoas comuns’, entre os funcionários profissionais do partido indicados a partir de cima e a massa geral do partido que não participa na vida comum” [4].
Ao contrário do que esperavam os 46 dirigentes bolcheviques, o seu texto não foi publicizado ao restante do Partido. Ao contrário, os militantes responsáveis pelo documento foram ameaçados de sanções pelo Comitê Central, com a alegação de que estariam formando uma fração.
A Oposição de Esquerda
A coincidência das críticas de Trotsky e de outros importantes dirigentes bolcheviques fez com que levassem essa batalha em conjunto, formando o que ficou conhecida como Oposição de Esquerda. É importante ressaltar que o enfrentamento que faziam a Stalin e à Troika resgatava críticas formuladas por Lenin. Da mesma forma, a atuação policial da direção stalinista, silenciando as críticas e evitando o seu conhecimento por parte da base do partido, foi direcionada contra dirigentes bolcheviques, militantes revolucionários que lutavam por uma correção de curso na política do partido. É essa luta que buscamos resgatar, agora, em seu centenário.
Notas:
[1] Lenin. Relatório sobre o programa do partido, 19/03/1919. VIII Congresso do PCR(b). https://www.marxists.org/portugues/lenin/1919/03/23.htm
[2] Lenin. Carta ao Congresso (Testamento político de Lenin), 22/12/1922-04/01/1923. https://www.marxists.org/portugues/lenin/1923/01/04.htm
[3] Retirado de “O Partido Bolchevique”, de Pierre Broué. https://www.marxists.org/espanol/broue/1962/partido_bolchevique.htm#ftnref222
[4] “Manifesto dos 46”. https://www.marxists.org/portugues/preobrazhensky/1923/10/15.pdf