Francisco foi o Papa dos pobres?
Por José Castillo, dirigente da Izquierda Socialista/FIT Unidad
Jorge Bergoglio assumiu seu pontificado como Francisco em 2013, no contexto de uma Igreja Católica mergulhada em profunda crise e descrédito. Depois de doze anos no poder, a Igreja mudou? Ele foi realmente “o Papa dos pobres”?
Faleceu na segunda-feira, 21, o primeiro (e até agora único) Papa argentino. Milhões de pessoas em nosso país e ao redor do mundo estão profundamente comovidas. Nós respeitamos profundamente sua dor. Ao mesmo tempo, tendo em vista que ele foi uma das figuras políticas mais influentes do mundo, gostaríamos de compartilhar nossas reflexões e avaliações sobre seus doze anos de pontificado.
Por que Bergoglio foi eleito Papa?
“Eles tiveram que buscar um Papa no fim do mundo.” Foram palavras do próprio Francisco num de seus primeiros discursos. Vamos lembrar. O ano era 2013. A Igreja Católica estava mais desacreditada do que nunca. O Papa Bento XVI (o alemão Joseph Ratzinger, que chegou a ser acusado de ter pertencido à Juventude Hitlerista) estava pressionado por inúmeras denúncias de pedofilia e abuso sexual em praticamente todas as dioceses do planeta. Somavam-se a isso os escândalos financeiros do Vaticano. A Igreja estava perdendo milhões de fiéis, especialmente na América Latina, para as Igrejas Evangélicas. Tudo isso acontecia no contexto de um capitalismo imperialista mergulhado na mais profunda crise econômica da história, iniciada em 2008 e que mobilizava milhões de trabalhadores e setores populares contra as políticas de austeridade. Por tudo isso, Ratzinger foi forçado a renunciar, algo sem precedentes em mais de 600 anos.
A nomeação de Francisco foi uma tentativa de “mudança de rumo”. Foi por isso que o conclave (o grupo de cardeais eleitores de cada Papa) elegeu um latino-americano, região em que vive mais da metade dos 1,2 bilhão de católicos do planeta. Eram os tempos em que os chamados governos “progressistas” da região estavam fortes: Cristina Fernández estava no poder na Argentina, Dilma Rousseff (sucessora de Lula) no Brasil, Chávez tinha acabado de morrer na Venezuela e Maduro estava começando seu mandato como seu sucessor, Evo Morales era o presidente da Bolívia e Correa era o presidente do Equador. O novo Papa rapidamente procurou se mostrar próximo dos setores populares (“Quero uma Igreja com pastores que cheirem a ovelhas”), dos jovens (“façam alarde”, disse ele num de seus encontros) e até fez alguns acenos à comunidade LGBTIQ (“quem sou eu para julgá-los”, afirmou diante de um grupo de jornalistas).
A Igreja Católica e o Vaticano não mudaram
Muitos analistas, baseados nesses e noutros gestos discursivos, começaram a dizer que mudanças importantes haviam ocorrido dentro da Igreja. Acreditamos que não é esse o caso. A grande maioria dos padres pedófilos e abusadores de todos os tipos continua sendo protegida pelas autoridades eclesiásticas. No máximo são “transferidos” para evitar escândalos. A Igreja não coopera. Pelo contrário, dificulta qualquer investigação sobre o assunto. As mulheres ainda são impedidas de exercer o sacerdócio ou qualquer outra posição importante dentro da Igreja. Pessoas divorciadas e as dissidências sexuais continuam sendo severamente discriminadas.
Igrejas católicas em todo o mundo continuam a liderar protestos contra os direitos mais básicos das mulheres, como a legalização do aborto seguro, gratuito e legal (na verdade, essa vitória na Argentina foi obtida apesar de uma campanha de todo o aparato eclesiástico contra ela), e até mesmo se manifestam contra o uso de preservativos ou qualquer outro método contraceptivo. Também se opõe e continuam se opondo à legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Em muitos países, como a Argentina, a Igreja Católica se apega aos recursos econômicos e privilégios concedidos por vários governos, recusando-se a separar Igreja e Estado.
Francisco não foi o Papa dos pobres
Uma parte significativa do descrédito da Igreja advém de sua percepção como defensora e aliada dos poderosos, dos ricos e dos governantes mais reacionários. “O ouro do Vaticano” é apenas uma expressão de tudo isso. Isso é ainda mais escandaloso no contexto de crises econômicas, que aumentam em bilhões o número de pessoas pobres e marginalizadas no planeta.
Ao assumir o cargo, Jorge Bergogli estava ciente disso. Ele sabia que a Igreja não poderia cumprir seu papel histórico de “consolar” os pobres da Terra, com a promessa do paraíso no céu, se a própria instituição fosse vista como um reino de privilégios e corrupção. Foi por isso que ele escolheu “Francisco” como seu nome papal, fazendo referência a São Francisco de Assis. Numa série de gestos, ele procurou mudar a imagem da Igreja, se apresentando como o oposto de seus antecessores: calçando sapatos usados em vez dos aristocráticos “sapatos vermelhos”, morando na relativamente menos luxuosa residência de Santa Marta em vez dos palácios do Vaticano, e até mesmo se apresentando como um torcedor de futebol (um torcedor do San Lorenzo). Viagens a Lampedusa (onde os imigrantes ilegais estavam aglomerados) ou visitas a prisões italianas também faziam parte dessa busca por uma mudança de imagem, por uma igreja “mais próxima dos pobres”.
No entanto, seus discursos sempre deixaram a porta aberta para a duplicidade, para a equiparação entre opressores e oprimidos. Assim, sempre que ele se referia ao povo palestino ou pedia um cessar-fogo em Gaza, ele imediatamente pedia orações por Israel. O mesmo aconteceu quando ele se referiu à Ucrânia, pedindo paz, igualando responsabilidades entre ucranianos e o invasor russo. Sob o pretexto do diálogo, ele se encontrou com os líderes mais reacionários do planeta, que aproveitaram a visita para limpar suas imagens. O símbolo de tudo isso foi que o último visitante recebido pelo Papa foi ninguém menos que o vice-presidente de extrema-direita dos Estados Unidos, James David Vance.
Em suma, nenhum dos discursos ou gestos simbólicos do Papa Francisco mudou o papel tradicional da Igreja Católica. O Vaticano continuou a “consolar os pobres”, enquanto se reunia e negociava com os ricos. Em outras palavras, seguiu cumprindo o papel histórico que Leão XIII já havia definido em 1891, na encíclica Rerum Novarum, em que, diante do auge das lutas operárias e da popularidade do socialismo, se manifestou contra este último e a favor da “conciliação de classes”. O lugar de estepe ideológico do capitalismo imperialista, convencendo as massas de que elas não devem lutar e consolando-as, defendendo a resignação ao seu destino.
No caso de Francisco, como argentino, isso coincidiu com sua visão próxima ao peronismo, que propõe a conciliação entre capital e trabalho, algo que, se nunca foi viável, é menos ainda no mundo atual, mergulhado na maior crise da história. Vamos ilustrar isso com um exemplo. Logo após a posse do governo peronista de Alberto e Cristina, o próprio Francisco se ofereceu para garantir um novo acordo com o FMI, convidando Alberto Fernández e seu novo ministro da Economia, Martín Guzmán, para se reunirem com Kristalina Georgieva, a quem ele apresentou como a nova e “progressista” chefe do FMI, que supostamente havia “mudado” e estaria mais receptivo às necessidades populares. Tudo isso terminou com o ajuste, que o próprio FMI obrigou nosso país a implementar ao assinar o acordo em 2022.
Globalmente, a pregação de “ouvir e estender a mão aos pobres” obviamente não teve impacto sobre os poderosos do mundo, que continuaram a exigir que o povo pagasse pela crise, enquanto continuavam a aumentar suas fortunas multibilionárias.
No caso argentino, o relacionamento com Milei foi conflituoso desde o início (Milei o chamou de “enviado do maligno”), embora Francisco mais tarde o tenha acolhido e abraçado, algo que agora permite que o presidente argentino de extrema-direita também busque surfar na onda de elogios após a morte do Papa.
Nós, da Izquierda Socialista, temos uma posição distinta tanto em relação aos elogios e caracterizações de Bergoglio como o “Papa dos pobres”, praticados pelo peronismo em todas as suas formas, quanto das abordagens reacionárias (e agora também oportunistas) do ultra-direitista La Libertad Avanza. Nós, socialistas revolucionários, acreditamos firmemente que a justiça social, a dignidade para bilhões de pessoas pobres e marginalizadas do mundo, e até mesmo o cuidado com o planeta, também abordado pelo Papa, só podem ser alcançados através da luta, em vez da resignação, contra a toda e qualquer injustiça, lutando contra a exploração em todos os lugares e, finalmente, derrubando o desumano sistema capitalista e construindo outro: o socialismo com democracia plena para o povo trabalhador. Criando, assim, um mundo em que todos são socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres.
A Igreja Católica e seu papel histórico
Nós, socialistas, respeitamos todas as crenças religiosas e o direito irrestrito de professar qualquer uma delas ou de não ter nenhuma. Acreditamos que isso é algo que pertence à esfera privada de cada indivíduo, que deve ser estritamente separado de qualquer intervenção estatal.
É por isso que fazemos a diferenciação entre as distintas religiões (o cristianismo, neste caso) e as igrejas que afirmam representá-las. Assim, sustentamos que a Igreja Católica, como instituição, ao longo de seus quase 2.000 anos de história, desempenhou um papel violento e absolutamente reacionário. Ela foi responsável e executou os massacres de muçulmanos e judeus na Idade Média, durante as Cruzadas, o genocídio dos povos indígenas da América e a execução na fogueira de milhares de mulheres acusadas de “heresia” e bruxaria. A Igreja Católica abençoou os reis, opôs-se ferozmente à Revolução Francesa e à independência dos povos latino-americanos. Mais recentemente, Pio XII foi colaborador do nazismo, e a liderança eclesiástica argentina foi cúmplice da ditadura genocida.
Tudo isso sem esquecer que, é claro, na base da Igreja houve – e há – padres que defenderam o povo trabalhador, denunciaram injustiças e lutaram contra ditaduras. Foi o caso do bispo Romero, assassinado pela ditadura salvadorenha, ou de Angelelli e os padres palotinos, no caso da ditadura argentina. Contudo, reafirmando seu papel histórico, mesmo esses mártires da própria Igreja foram ignorados na época pela liderança eclesiástica e até pelo próprio Papa. O próprio Jorge Bergoglio, como chefe dos jesuítas argentinos, repudiou e abandonou os padres da favela Jalic e Yorio à própria sorte, facilitando seu sequestro pelas forças da ditadura, fato pelo qual ele teve que prestar contas num dos julgamentos contra os genocidas.