O início do trotskismo morenista no Brasil (PARTE I)

50 anos da Liga Operária: o início do trotskismo morenista no Brasil (PARTE I)

Michel Oliveira, Coordenação Nacional da CST.

 

O ano é 1974. O general Geisel assumia como novo ditador. O carrasco Emílio Garrastazu Médici terminava seu “mandato” num dos mais terríveis períodos da ditadura militar. Os grupos guerrilheiros estavam destroçados. Marighella e Lamarca fuzilados. A UNE na ilegalidade. Lideranças como Wladimir Palmeira no exílio e Honestino Guimarães assassinado[i]. Os sindicatos sob intervenção. Dirigentes das greves de Contagem e Osasco[ii], como Ênio Seabra e José Ibrahim, foram presos ou estavam no exílio. Os jornais e artistas sob vigilância policial. Havia tortura e assassinatos de opositores.

Nada disso aparecia no Jornal Nacional, cuja audiência era de milhões. Não por acaso, Chico Buarque, quase impedido de compor pela censura, lançava o álbum “Sinal fechado”. Nas rádios, Roberto Carlos retornava com um novo sucesso, cujo refrão girava nas vitrolas sem parar “eu voltei, agora pra ficar”. E foi o momento de um outro retorno…

Em 1974, um núcleo de jovens revolucionários brasileiros retorna clandestinamente ao Brasil. Era o início da Liga Operária no Brasil, uma organização trotskista ligada à corrente internacional liderada por Nahuel Moreno. Foi a culminância de um processo marcado pelo golpe militar no Brasil e no Chile, além da vinculação aos debates da IV Internacional. É o início da corrente morenista no Brasil.

 

1- As origens da Liga Operária

Após o golpe militar que derrubou o governo João Goulart, vários militantes partiram para o exílio. Alguns foram para o Chile, governado pela Unidade Popular de Salvador Allende. Ali surge uma organização denominada Ponto de Partida, fundada por militantes que realizaram uma profunda crítica às concepções foquistas e vanguardistas presentes tanto nas organizações de esquerda nas quais haviam militado[iii] quanto em outras organizações, como o MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de outubro), ANL (Ação Libertadora Nacional) e VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), que ganharam visibilidade com o sequestro de embaixadores de países imperialistas.

No documento “A propósito de um sequestro”[iv], eles afirmam:

“A essência do foquismo é sua visão voluntarista da história. Acreditam só nos resultados de suas ações vanguardistas. Estão convencidos de que sem os sequestros, os revolucionários presos no Brasil estão condenados a sofrerem vinte ou trinta anos de prisão. Os marxistas revolucionários, sabendo interpretar a realidade mundial e tendo confiança nas massas, afirmam, sem o menor medo de errar, que a história, em nossa época, avança muito depressa para que se possa crer em duas outras décadas de ausência de liberdades no Brasil. A justificativa usada pelos vanguardistas denota uma certa dose de fatalismo, que pode ser traduzida também por desprezo em relação às massas. São incapazes de apoiar-se na confiança de que as massas participarão em futuras jornadas de luta, que passarão, inevitavelmente, pela exigência de liberdades para todos os presos políticos. Então sim, teremos a certeza de que a ditadura terá que soltar todos e não só quinze em troca de duzentos“.

Após essas e outras reflexões, o Ponto de Partida aponta para um retorno ao caminho do marxismo revolucionário e do bolchevismo. No Chile, a organização Ponto de Partida, se vincula a IV Internacional, organização marxista revolucionária internacional fundada por Leon Trotsky em 1938 para manter vivo o legado de Marx, Engels, Lenin e do Partido Bolchevique. Na ocasião, em 1974, a IV Internacional estava atravessada por um debate acerca da adesão da organização ao “guerrilheirismo”. Sua ala majoritária, cuja referência eram Ernest Mandel e Livio Maitan, aplicava essas concepções. E havia um setor minoritário – que agrupava o SWP estadunidense, cujo dirigente era Josep Hansen, e o PST Argentino, liderado por Nahuel Moreno – que criticava essa estratégia da maioria. Esse setor se agrupa como TLT (Tendência Leninista Trotskista) e depois como FLT (Fração Leninista Trotskista). Os jovens revolucionários brasileiros, recém integrados aos debates da IV Internacional, aderem às teses da ala minoritária. Refletiam sua própria experiência com as concepções vanguardistas das organizações guerrilheiras no Brasil.

Mas nem só desse debate vivia o Ponto de Partida. Surge uma polêmica acerca da orientação da organização, ou seja, sobre onde se deveria militar e a qual setor se dirigir, o que acaba dividindo seus integrantes em dois grupos, cada qual defendendo uma dessas orientações (os grupos Ponto de Partida e Ponto de Partida – Tendência Socialista). Uns defendendo a intervenção e construção partidária diretamente na luta de classes do Chile e outros a atuação e militância na colônia de exilados brasileiros. Para alguém não familiarizado com a vida interna de uma organização política e da sua equipe diretiva, pode parecer que se trata de um tema menor. Mas não é. Para um grupo pequeno, o debate sobre onde e como se vai atuar, é importante. Mas de todo modo esse processo de debates não pôde continuar. Após o golpe sanguinário de Pinochet esse núcleo de jovens revolucionários não pode prosseguir os debates e nem na sua construção. Tiveram que dar o fora do Chile.  Um de seus camaradas, Túlio Quintiliano, não conseguiu sair e foi assassinado após ser detido no Estádio Nacional do Chile[v].

Da rica experiência chilena e da tragédia que se abateu com Pinochet o grupo extrai lições profundas sobre o significado da frente popular, do governo de colaboração de classes da Unidade Popular de Salvador Allende, do Partido Socialista e Comunista, e sobre a chamada via pacífica ao socialismo[vi]. Ao mesmo tempo se confirmam as experiências negativas com o guerrilheirismo e o vanguardismo. Por um lado, porque o Partido Comunista Cubano respaldou a linha reformista da Unidade Popular e de Allende, ajudando nessa tragédia. Em 1971 o próprio Fidel Castro viajou para o Chile, desfilou em carro oficial, participou de comícios e reuniões, dando total apoio ao projeto reformista de Allende e da Unidade Popular. E por outro lado, as posições guerrilheiristas e foquista do MIR (Movimento de Esquerda Revolucionária) do Chile.

Essas reflexões estão contidas no artigo “o fim da via pacífica”. A conclusão é que:

“A tragédia chilena mostra claramente como o reformismo trai a classe trabalhadora e a leva ao massacre. A experiência chilena, historicamente, não é a primeira derrota do proletariado sofrida por causa dos mercadores da “transição pacífica” e da “revolução por etapas”. A derrota chilena também mostra como o ultraesquerdismo – embora reflita a ascensão das massas – assume posições vanguardistas, isolando-se do proletariado ou, por falta de uma política clara de massas, acaba capitulando ao reformismo. Após seis anos de ascensão contínua da luta de classes no Chile, o proletariado e suas lideranças foram esmagados. Por que isso aconteceu? A culpa é dos partidos reformistas e, até certo ponto, também do MIR, que não preparou e mobilizou a classe trabalhadora para a conquista do poder. Mas acreditamos que este não é o momento de lamentar nossos mortos. Nossa principal obrigação é entender as razões da derrota, para que possamos estabelecer as bases para uma vitória futura”.

As derrotas, na versão stalinista e social-democrata, bem como a incapacidade do vanguardismo, reforçam o caminho em direção ao marxismo revolucionário. Vai consolidando o caminho da atuação no interior da IV Internacional, em sua ala minoritária, a FLT. Vejamos o que nos diz Maria José Lourenço, conhecida como Zezé, uma das principais lideranças da organização sobre sua vinculação ao trotskismo. E, especial o ingresso na corrente liderada por Nahuel Moreno. Ela relata que conheceu Moreno no seguinte contexto:

“em 1972, ainda no Chile, quando nós, alguns brasileiros, nos aproximamos da Internacional, do trotskismo. Era o 9º Congresso da Internacional e havia uma discussão entre aqueles que defendiam a linha da guerrilha e os que defendiam a construção de um partido internacional com influência de massas. Nós que vínhamos da guerrilha e tínhamos feito uma experiência desastrosa com a guerrilha brasileira, nos identificamos com os que defendiam a construção de partidos com influência de massas e fomos apresentados, através dos norte-americanos que passaram pelo Chile, pra visitar o Mário Pedrosa[vii], e fomos apresentados ao Moreno. E ele começou uma discussão conosco de que, se nós nos aproximávamos teoricamente da proposta de que a saída para a revolução e o socialismo era a construção de partidos revolucionários com influência de massas, teríamos que nos dedicar a esta tarefa. A partir daí desenvolvemos uma relação importante com ele… Ele nos levou para uma escola de quadros, de quase 20 dias, na Argentina, que começava com Feuerbach, Hegel, as leis da dialética, a lei do desenvolvimento desigual e combinado, revolução permanente, para concluir com estudos sobre o partido teoria leninista de organização e a concepção de partido”[viii].

O que se nota, nos antecedentes da fundação da Liga Operária, é um processo de construção político, teórico e programático marcado pelo golpe militar brasileiro de 1964 e pelo golpe de Pinochet no Chile em 1973.  Além da vinculação aos debates da IV Internacional. Vejamos isso mais de perto.

1.1-            O fracasso do nacionalismo, stalinismo, guerrilheirismo e reformismo

 O golpe militar em abril de 1964 mostrou, por um lado, o fracasso do nacionalismo burguês de Goulart. Por outro, o absurdo da tese do PCB acerca de uma suposta burguesia nacional progressista e do etapismo stalinista. O PCB propunha abertamente a aliança com a burguesia pois “o objetivo consiste em isolar o inimigo principal da nação brasileira e derrotar a sua política… não tem por fim isolar a burguesia nem romper a aliança com ela, mas visa defender os interesses específicos do proletariado e das vastas massas, simultaneamente ganhando a própria burguesia e as demais forças para aumentar a coesão da frente única”. Além da defesa do caminho pacífico “Os comunistas consideram que existe hoje em nosso país a possibilidade real de conduzir, por formas e meios pacíficos, a revolução antiimperialista e antifeudal. Nestas condições, este caminho é o que convém à classe operária e a toda a nação…”[ix]. Diferente do que dizia o PCB não havia a tal burguesia anti-imperialista com que fazer a fase “nacional libertadora” da revolução brasileira. Diferente dos discursos de Luiz Carlos Prestes, o lendário secretário geral do PCB, não havia a burguesia nacionalista e democrática que resistiria ao golpe e “cortaria a cabeça” do fascismo. Na espera da burguesia “progressista” o PCB não fez nada para resistir ao golpe de 1964 e deixou à deriva os setores que resistiram[x].

A Liga Operária, elaborou um documento histórico denominado “10 anos depois: rumo um bonapartismo clássico?” avaliando os acontecimentos assim:

“As causas principais da derrota do movimento operário brasileiro foram: por um lado, o fracasso histórico da ideologia e da política das direções nacionalistas burguesas, estabelecidas no governo desde Vargas em diante, e, por outro lado, a política reformista do Partido Comunista, que jamais ofereceu às massas uma alternativa independente da direção burguesa pela qual eram arrastadas. O Partido Comunista amarrou o movimento popular à burguesia nacional, o fez confiar em seu nacionalismo, nos “militares patriotas”, e freou a mobilização e a iniciativa da classe operária, impedindo que ela se alçasse como uma alternativa clara e sólida frente às classes médias, que optaram, então, entre duas direções burguesas: a vacilante e incapaz direção nacionalista, fracassada no governo, e a direção golpista, reacionária e diretamente pró-imperialista, porém cheia de promessas e planos enganosos de um ‘futuro melhor’. O Partido Comunista jamais deu à classe trabalhadora uma orientação política clara contra o golpe de Estado que se aproximava. O Partido Comunista jamais foi, então, a direção da qual necessitava o movimento de massas para frear a reação”.

A revolta contra o imobilismo e reboquismo do PCB stalinista em 1964, lançou uma camada de jovens para as ações vanguardistas via os projetos guerrilheiros. O PCB se fraturou em dezenas de pedaços, dando origens a vários outros partidos stalinistas que adotaram a estratégia guerrilheira[xi]. E outros grupos como setores do nacionalismo também se radicalizaram e muitos aderiram às teses foquistas.

A própria Maria Jose Loureiro, a Zezé, integrou o MNR (Movimento Nacionalista Revolucionário), organização oriunda de militares inspirador por Leonel Brizola que tentaram implantar focos guerrilheiros no Brasil sob a linha Cubana. Uma dessas experiências foi tentada no Rio Grande do Sul e outra realizada na Serra do Caparaó, mas desarticulada em 1967. Após essas e outras experiências frustradas, lideranças do MNR fundam o jornal “O SOL”, em cuja redação se encontrava Maria José Lourenço, então estudante de Jornalismo na UFRJ e integrante do Centro Acadêmico desse curso. O jornal alcançou certa fama no contexto da ditadura, tanto que é citado por Caetano na célebre canção “Alegria, Alegria”. Era um momento em que esse tipo de jornal, da chamada impressa alternativa, estava em alta (vide o “Pasquim” ou posteriormente “Opinião” e “Versus”, nos anos 1970).

Assim como outros jornais, “O SOL”, era uma forma de recrutar novos militantes para um novo “foco guerrilheiro” do MNR. Do mesmo modo como setores do maoísmo utilizaram o jornal “Movimento”, por exemplo. Mas no caso de “O SOL”, vejamos o que nos conta Jorge Pinheiro, também integrante do CA de jornalismo da UFRJ e outro dos fundadores da Liga Operária, acerca do jornal O SOL:

era um projeto do MNR para atrair jovens e organizar uma nova guerrilha, mas muitos dos participantes de O SOL nem sabiam disso. Eu fui recrutado lá dentro. O MNR já tinha feito a primeira guerrilha e estávamos nos organizando para outra… houve grande influência da revolução cubana[xii].

No entanto pouco a pouco os projetos guerrilheiros, de linha Cubana ou Chinesa, mostraram sua incapacidade de derrubar a ditadura, isolando os ativistas mais combativos, radicais e heroicos em ações militaristas afastadas da classe operária. O vanguardismo guerrilheiro, extenuando por assaltos e sequestros, amargando isolamento social e político, também fracassa.

O contato desses jovens revolucionários com a luta de classes latino-americana no Chile, o surgimento do Ponto de Partida, o fracasso da via pacífica ao socialismo de Allende é um novo patamar de consolidação desses quadros. O golpe de Pinochet mostrava a impossibilidade de qualquer avanço pacífico ao socialismo.

As conclusões contidas no texto “A propósito de um sequestro” e de “o fim da via pacífica” não são casuais. São um balanço das estratégias, programas e organizações visando um novo curso. São a avaliação das heranças que se deveria abandonar (o nacionalismo-burguês, o stalinismo[xiii] e o vanguardismo de viés cubano ou chinês, o reformismo social-democrata da Unidade Popular Chilena). Mas, os fundadores da Liga Operária trataram de superar suas concepções vanguardistas, não pela via do reformismo e sim pela via do marxismo revolucionário, do bolchevismo, aderindo ao trotskismo: a revolução permanente mundial, a estratégia transicional e a ditadura revolucionária do proletário. Fizeram um percurso diferente de muitos ex-guerrilheiros que se tornaram social-democratas “verdes” como Gabeira ou Sirkis[xiv]; e diferente de grupos como o MR-8 que passa dos sequestros e assaltos de armas na mão para a inserção pacífica na via institucional do MDB, se diluindo na aliança com burguesia liberal, tendo como referência Orestes Quercia[xv]. Mas nem só de teoria -programa vive uma organização bolchevique-Leninista. Haveria também de avançar em como construir o partido revolucionário.

1.2 – A construção do partido revolucionário

Para construir um partido revolucionário além de teoria-programa, da ação na luta de classes, é preciso um método Leninista e uma organização bolchevique internacional.

Os debates no interior da IV internacional abordavam esse tema. Os documentos da Tendência Leninista Trotskista (posteriormente Fração Leninista Trotskista), ao qual os brasileiros se vincularam, tinham esse aspecto em sua plataforma. O debate se arrastava de antes do contato dos brasileiros com a ala minoritária (FLT). Nahuel Moreno um dos mais importantes dirigentes dessa ala resume o tema no contexto do triunfo da revolução cubana e do impacto que ela causou na IV internacional, destacando que foi positivo o apoio da maioria da IV para esta revolução. Porém alerta que Mandel, assim como já havia feito em outras ocasiões, “começou a capitular” e “aceitar toda concepção guerrilheira” o que

“culminou no nono congresso da internacional no ano de 1969, originando uma categórica divisão, ao redor do problema do guevarismo e da guerrilha na américa latina (…) o SWP, o Partido Socialista dos Trabalhadores (PST) argentino – antecessor do atual Movimento ao Socialismo (MAS) – e alguns companheiros sul-americanos lideramos uma corrente que se opôs a essa análise e orientação do foco guerrilheiro. Assinalamos que em princípio não estávamos contra a guerrilha, sempre que estivesse apoiada no movimento de massas. Porém a teoria do foco era justamente o oposto. Era uma linha elitista”.

Um documento importante do setor minoritário na IV internacional foi apresentado no CEI (Comitê Executivo Internacional) de dezembro de 1972, denominado “Argentina e Bolívia: um balanço”, assinado por Hugo Blanco, Peter Camejo, Joseph Hansen, Ernesto Gonzales e Nahuel Moreno. Neste documento se explicita a diferenças com a maioria (liderada por Mandel) afirmando que estava ligada ao problema de “como fazer para construir partidos revolucionários de massas no contexto da situação atual na qual se encontra a Quarta Internacional”. E defendem manter a linha “proposta pela Quarta Internacional desde sua fundação em 1938, de tratar de ligar-se as massas através da aplicação consequente do método exposto no programa de transição[xv].

Para o grupo fundacional da Liga Operária estes debates foram centrais. Em uma luta política como essa, as concepções em choque se expressam abertamente. São muitos os casos em que as divergências ajudam a compreender melhor as posições. São muitos os veteranos da corrente que contam que Moreno aproveitava debates e divergências para educar novos quadros. E na luta política da IV isso também ocorreu. Sem dúvida para a Liga Operária foi de fundamental importância um texto escrito por Nahuel Moreno nessa época. Trata-se de “Um documento escandaloso (em resposta a ‘em defesa do leninismo, em defesa da Quarta Internacional, de Ernest Germain)”, editado posteriormente como “O Partido e a Revolução: Teoria, programa e política – Polêmica com Ernest Mandel”. Tal documento foi apelidado pelos veteranos da corrente como “o Morenaço” tal o impacto dele para a construção da corrente, justamente do núcleo fundador da Liga Operária. Uma das partes centrais é o capítulo VI “Partido mandelista ou partido leninista” que tratou em profundidade a diferença com Mandel afirmando que “a origem das diferenças que temos com a maioria em todos os terrenos – teórico, programático, estratégico e tático – nasce de um fundamental: a que mantemos respeito ao método de construção de nossas seções[xvi].

Sobre esse aspecto, o da construção partidária, as lições relatadas por Zezé sobre sua vinculação ao PST Argentino e a liderança de Moreno são as seguintes:

“A primeira, que eu acho que foi muito importante a concepção de que deveríamos militar onde a gente estava e que a construção do partido era mais do que a construção de um partido nacional. Tanto que havia uma polêmica no Chile, entre a militância, entre os exilados: um setor defendia militar apenas para o seu próprio país e outro defendia entrar para o Partido Socialista, para o PC, fazer qualquer coisa para a revolução. E ele dizia, vocês têm que construir o partido trotskista, enquanto estiverem no Chile, no Chile; e depois que saírem do Chile onde for necessário. A segunda era a vinculação com o movimento de massas, eliminando qualquer ranço ou resquício que nós ainda tivéssemos da concepção aparelhista, guerrilheira, de substituição das massas por ações exemplares, que era o que mais a experiência guerrilheira tinha no passado. Essa vinculação com o movimento de massas era necessária onde quer que o movimento estivesse acontecendo[xvii].

 Em relação vinculação ao movimento de massas e a construção na classe operária Zezé relata as seguintes sugestões de Nahuel Moreno para os jovens militantes da Liga Operária:

Ele dizia: A classe revolucionária é a classe operária, mas há momentos em que em vez de ir à classe operária, você tem que ir ao movimento estudantil, porque o importante é que, a partir da inserção no movimento de massas você pode estabelecer o diálogo para poder se aproximar da classe operária. Esta lição nos ajudou muito, porque quando voltamos ao Brasil, apesar de que nosso objetivo era nos construirmos na classe operária, nos metemos todos no movimento estudantil, onde a luta contra a ditadura estava se dando de forma mais forte e onde era possível construir um acúmulo inicial de quadros. Em um ano de construção do grupo nós conquistamos o 100º militante, que pra nós, naquela época da ditadura, era muito difícil. Captávamos um a um, discutindo quatro, cinco documentos antes de que eles entrassem, com um monte de teoria. Depois de um ano, pudemos juntar um pouquinho destes cem para começar um trabalho de inserção nas fábricas (idem).

 Construir um partido, captar trabalhadores ou jovens, é uma das tarefas mais difíceis e crucial para o desenvolvimento de uma organização revolucionária. Segundo Zezé está orientação foi central para a construção da Liga Operária pois:

Se a gente não tivesse ido para o movimento estudantil, muito possivelmente nós levaríamos, desde 1974, quando nós chegamos aqui, até o grande ascenso da classe operária, já depois de 1978/79, sem conseguir chegar nem sei se em 20 militantes. Talvez muito menos. Mas, seguindo a orientação de Moreno, chegamos em 100 militantes em um ano, um ano e meio. Teve até festa, comemoração. Este centésimo militante foi um militante que depois entrou na Mercedes Benz, pra fazer o trabalho operário. Foi o Celso Brambilla, que foi militante do partido durante muitos anos, depois preso, muito torturado, inclusive. Ele deixou a universidade de São Carlos para trabalhar como operário na Mercedes. E lá, distribuindo panfletos sobre o 1º de Maio, ele foi preso. O que provocou uma mobilização. Nós levamos operários para a USP o que permitiu uma forte mobilização estudantil que avançou muito na luta contra a ditadura(idem)[xviii].

 Nota-se que a priorização do trabalho no setor estudantil estava ligada ao início da construção do partido e a necessidade de um acúmulo inicial de militantes para formar quadros. E com esses quadros preparar o giro ao movimento operário, a estruturação nas fábricas, se implantar nas grandes indústrias e na classe trabalhadora. E isso deu certo. Realmente a Liga se implantou no movimento estudantil, inicialmente na USP, PUC, UFF, depois outras universidades como a UNICAMP e UFSCAR, e desde aí preparou a intervenção no ascenso posterior no ABC e da fundação da CUT. A Liga Operária crescia, penetrava nas fábricas, e virou alvo da ditadura militar.

Confira a segunda parte desse artigo: A Liga Operária retorna clandestinamente no Brasil (PARTE II)


 

[i] Wladimir Palmeira, dirigente da União Metropolitana dos Estudantes, foi o dirigente da passeata do 100 mil, após o assassinato do estudante paraense Edson Luiz no restaurante Calabouço no RJ. Honestino Guimaraes, estudante da UnB, foi presidente da UNE, preso pela Marinha e assassinado em 1973.

 

[ii] Em 1968 ocorrem duas importantes greves operárias em SP (Osasco) e MG (Contagem). Em Contagem a greve foi fruto do trabalho das comissões de base e teve como eixo as fábricas da Mannesman e a Belgo-Mineira. Em Osasco a greve foi organizada pela direção Sindical e teve como eixo a fábrica Cobrasma. Nessas greves atuaram grupos que já estavam em preparação para a guerrilha e ações armadas isoladas do movimento operário, o que desaproveitou a força dessas greves. Ibrahin afirmaria “Nossa concepção era de guerrilha rural. A maioria de nós tinha a ambição de sair do movimento operário para fazer guerrilha no campo. Minha vontade, por exemplo, era partir para formas mais avançadas de luta. Nós éramos lideranças do movimento de massas, que tinha apoio das massas, mas que estava sendo absorvida pelas concepções partilhadas por amplos setores da esquerda”. Ver do próprio Jose Ibrahin “O que todo cidadão precisa saber sobre Comissões de Fábrica” – Caderno de Educação Política, 1986.

[iii] Alguns haviam atuado no MNR (Movimento Nacionalista Revolucionário), uma organização nacionalista com origem no Brizolismo, por exemplo Maria José Lourenço (a Zezé) e Jorge Pinheiro. Outros eram oriundos do PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário), racha do PCB impulsionado por Mario Alves e Apolônio de Carvalho em 1968, como Tulio Quintiliano. E por fim alguns tinha origem na AP (Ação Popular) uma organização católica, surgida da juventude universitária da Igreja, que se radicaliza no ascenso de 1968, caso de Enio Bucchioni. Posteriormente a AP se fraciona com uma ala tornando-se Maoista (AP-Marxista-Leninista) e se unifica com o PCdoB.

[iv] Ver em nosso site o artigo A propósito de um sequestro do grupo Ponto de Partida. O texto foi escrito no contexto dos sequestros de embaixadores. A mais espetacular dessas ações foi o sequestro do embaixador estadunidense. A ação comandada pela Dissidência da Guanabara – que adotou o nome de MR8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro) – e a ALN (Ação Libertadora Nacional Libertadora) libertou várias lideranças que amargavam o calabouço da ditadura, como as lideranças estudantis Vladimir Palmeira, Luís Travassos, José Dirceu, o histórico dirigente do PCB Gregório Bezerra, o líder da greve de Osasco de 1968 Jose Ibraim, Ricardo Zarattini do PCR, dentre outros. A ação causou simpatia imensa na colônia de exilados brasileiros e não era simples lançar uma crítica ao guerrilheirismo. Ver https://www.cstuit.com/home/2022/05/17/a-proposito-de-um-sequestro-grupo-ponto-de-partida/

 

[v] O camarada Tulio Quintiliano, ex-militante do PCBR, aderiu ao trotskismo no Chile e foi assassinado por Pinochet. Ver https://www.cstuit.com/home/2023/10/10/tulio-quintiliano-trotskista-brasileiro-assassinado-por-pinochet/

[vi] Ver o extenso artigo “o fim da via pacifica” publicado originalmente na revista da América a traduzido ao português brasileiro por nosso site ver https://www.cstuit.com/home/2023/09/14/chile-fim-da-via-

pacifica-antenor-alexandre-revista-da-america-1973/

[vii] Mario Pedrosa e Livio Xavier, juntamente com Aristides Lobo, Joao Costa Pimenta, Rodolfo Coutinho, Raquel de Queiroz e Mary Huston, integram o núcleo fundador do trotskismo no brasil nos anos 30. Ver https://www.cstuit.com/home/2021/08/17/90-anos-da-liga-comunista-do-brasil/

 

[viii] Ver “Estava faltando uma homenagem a Moreno, que fosse realmente unitária”, entrevista de Zezé ao Opinião Socialista após ato unitário em homenagem a Nahuel Moreno em 2007, realizado em São Paulo. Na ocasião discursou no evento Miguel Sorans, pela UIT-QI, e Babá pela CST, dentre outras lideranças. O jornal Opinião Socialista entrevistou vários dirigentes presentes. Dentre eles a Zezé, Ernesto Gonzales e Mercedes Petit (da Esquerda Socialista e UIT-QI) e Miguel Sorans (da Esquerda Socialista e UIT-QI).

[ix] Disponível em https://www.marxists.org/portugues/tematica/1958/03/pcb.htm

 

[x] Ver https://www.cstuit.com/home/2023/12/31/texto-9-o-pcb-e-a-ditadura-militar-no-brasil-a-politica-da-frente-patriotica/

[xi] Ver https://www.cstuit.com/home/2023/12/31/texto-11-a-ruptura-maoista-no-pcb-programa-e-estrategia-do-pcdob-e-pcr/  e https://www.cstuit.com/home/2023/12/31/texto-10-as-rupturas-do-pcb-nos-anos-60-pc-do-b-aln-pcbr-mr-8/

[xii] Entrevista em 1990 a Bernardo Kucinski.

[xiii] Ver https://www.cstuit.com/home/2022/09/23/9790/

 

[xiv] A esse respeito leia os livros “O que é isso, companheiro?” de Gabeira ex-MR-8 e “Os Carbonários” de Sirkis, ex-VPR. Renegando sua trajetória para consolidar uma nova via social-democrata e “Verde”. Posteriormente apoiaram projetos do PSDB e MDB no Rio de Janeiro. Outros como José Ibrahin, torna-se liderança da pelega Força Sindical e posteriormente da UGT. Foi dirigente do PSD de Kassab.

[xv] Franklin Martins, um dos militantes do MR8 que participou do sequestro do embaixador Estadunidense, foi uma das lideranças desse giro do MR8 em direção ao MDB. A ideia era “transformar” o MDB num “partido popular” e construir uma “frente popular” em meados dos anos 70. Mesma posição expressa por Ricardo Zaratini, dirigente do PCR que na época estava compondo uma fusão com o MR-8. A linha do MR-8 era “liberar o MDB de toda vacilação, de toda tendência à conciliação com a ditadura”. As aspas são retiradas de declarações de dirigentes do MR8 para a revista Contraponto do Centro de Estudos Noel Nutels, mas outras frases semelhantes podem ser encontradas em edições do jornal Hora do Povo, do MR-8.  Franklin Martins, posteriormente, se tornou jornalista da Rede Globo, no Jornal Nacional, e foi Ministro do governo Lula em 2007. Nos anos 1990 Zaratini foi assessor da bancada de deputados do PDT e depois assessor de Jose Dirceu, então Ministro Chefe da Casa Civil do governo Lula em 2003.

 

[xv] Uma edição recente dessa obra foi realizada por nossos camaradas da Esquerda Socialista, seção da UIT-QI na Argentina.

[xvi] Ver prologo desse importante obra em https://www.cstuit.com/home/2021/12/21/prologo-da-obra-o-partido-e-a-revolucao-teoria-programa-e-politica-polemica-com-ernest-mandel/

[xvii] Entrevista de Zezé 2007, Ver nota IV.

[xviii] Essas prisões e torturas ocorrem mais pra frente, em 1977, quando Celso Brambilla, Marcia Basseto e Jose Maria de Almeida (o Zé Maria, então simpatizante da Liga Operária) realizavam uma panfletagem operária sobre o 1° de maio. Os atos pela libertação dos presos políticos, uma das primeiras manifestações de massa contra a ditadura, podem ser vistas no documentário “Apito na panela de pressão” dos DCE’s da USP e PUC documentário pode ser visto aqui https://www.youtube.com/watch?v=DuGZABQ0L5c

 

 

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