Comunidade terapêutica é manicômio e proibicionismo!
O governo Lula/Alckmin foi recebido com muitas expectativas pelos movimentos que defendem o SUS e ativistas do movimento antimanicomial. Não era para menos, devido aos estragos causados pela extrema direita bolsonarista que aplicou políticas ultrarreacionárias e muito conservadoras nessa área, contra as quais lutamos muito. Mas, infelizmente, o governo Lula/Alckmin está indo na contramão dessa expectativa.
O governo Lula fortalece as Comunidades Terapêuticas
No início de seu mandato, em 2023, o presidente Lula atendeu a demanda dos parlamentares da Frente Parlamentar em Defesa das Comunidades Terapêuticas e fortaleceu essas “entidades“ no MDS (Ministério de Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome). Posteriormente, baixou a Portaria 907, que incluía no Planejamento do MDS a contratação de comunidades terapêuticas disfarçadas pelo nome de “Entidades de Apoio e Acolhimento Atuantes em Álcool e Drogas contratadas pelo Governo Federal”, para “Realizar estudos e pesquisas com foco na avaliação da política de acolhimento de pessoas dependentes de álcool e outras drogas”. No dia 20/01/24 essa linha foi oficializada através do decreto 11.392.
No dia 28 de fevereiro foi aprovado na Comissão de Assuntos Sociais do Senado Federal o PL 3945/2023, tendo como relator do projeto o senador Paulo Paim, do PT, que votou favoravelmente. Tal projeto institui o dia nacional das comunidades terapêuticas. E em 22/02 foi criada uma portaria (nº 962) que estabelece procedimentos relativos à certificação de entidades beneficentes atuantes na redução de demanda de drogas, no âmbito do MDS, considerando “entidades que atuam na redução da demanda de drogas” as comunidades terapêuticas.
Desse modo, se nota que no governo Lula/Alckmin as comunidades terapêuticas continuam recebendo estímulos, reconhecimento, recursos públicos, sendo, inclusive, levadas a um departamento específico dentro do governo.
O que são essas Comunidades Terapêuticas?
Comunidades terapêuticas são instituições privadas destinadas ao “tratamento” abstêmio de uso e/ou abuso de álcool e outras drogas, frequentemente ligadas ao modelo espiritual-religioso, principalmente de orientação evangélica. Essas comunidades retomam a lógica asilar de tratamento e, hoje, também são conhecidas por uma série de violações, como a internação compulsória, abusos físicos e psicológicos e falta de assistência médica e psicológica. Em sua matriz está toda a velha concepção dos manicômios, camufladas de entidades “sociais”. Essas comunidades seguem recebendo grandes montantes de verbas públicas mesmo não possuindo qualquer ligação com o SUS, sendo, portanto, um escoadouro das verbas públicas; e, por trás delas, há fortes figuras extremamente reacionárias, como Silas Malafaia e Edir Macedo e suas igrejas.
Há farta documentação do Conselho Federal de Psicologia e da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal que comprova práticas de privação de liberdade, trabalhos forçados e sem remuneração, violação à liberdade religiosa e diversidade sexual e aplicação de castigos, entre os quais muitos foram qualificados como crimes de tortura. No ano passado, já no governo Lula/Alckmin, o governo recebeu uma denúncia oficial através do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), que solicitou a suspensão dos repasses públicos à Comunidade Terapêutica “Salve a Si”, que funciona no DF. Não é por falta de aviso, portanto, que estamos vivendo esse retrocesso.
Fortalecer o SUS: mais investimentos para a RAPS (Rede de Atenção Psicossocial)
O intenso desmonte do SUS nas últimas décadas explica a dificuldade atual que se vivencia na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Trata-se de um problema muito profundo, pois o subfinanciamento resulta em falta de verbas, profissionais e insumos. Há um sucateamento e desinvestimento geral que afeta muito os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), além das Unidades de Acolhimento. É por isso que muitas vezes não se encontra a possibilidade de acolhimento a pessoas com sofrimento mental e com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas. Então, diante desse projeto de destruição do que é público e estatal, temos o espaço onde viceja intencionalmente as Comunidade Terapêuticas. E o que é pior: com dinheiro estatal que falta ao SUS, à RAPS e especificamente aos CAPS. O descaso explica, portanto, por que nem todos os municípios possuem esse tipo de atendimento, e existem barreiras e escalas variando com o número de habitantes das cidades. Esse sucateamento precisa acabar, reforçando o sistema público e estatal.
O modelo do SUS gira em torno de outra lógica, em que o indivíduo deve tratar-se próximo à família, amigos e trabalho; em que se busca que esse indivíduo mantenha uma vida social e obtenha condições materiais de melhora. O CAPS AD, por exemplo, é o CAPS destinado ao tratamento específico do uso abusivo de álcool e drogas, um serviço público e gratuito, que preconiza essas lógicas já citadas, opostas às das comunidades terapêuticas. Existem, portanto, alternativas, o que é necessário é que o dinheiro vá para esses serviços!
Retomar a luta antimanicomial e a reforma psiquiátrica
A luta antimanicomial e a reforma psiquiátrica brasileira foram e são lutas contra a violência e desumanização de pessoas com intenso sofrimento mental e que utilizam de tratamentos psiquiátricos/psicológicos; preconizam o cuidado em liberdade, a redução de danos, o fim dos manicômios e das lógicas manicomiais, serviços substitutivos (como os CAPS – Centro de Atenção Psicossocial) que respeitem os direitos humanos, o cuidado e tratamento territorializados, laicos, públicos, gratuitos. Tais serviços estão dentro da RAPS, Rede de Atenção Psicossocial, que corresponde a um conjunto articulado de pontos de atenção à saúde, instituída para acolher pessoas com sofrimento mental e com necessidades decorrentes do uso abusivo de álcool e outras drogas. Tais lutas são fruto de uma intensa luta popular, das e dos usuárias/os dos antigos manicômios, seus familiares, das e dos trabalhadoras/es da saúde e todos que acreditam na saúde pública, gratuita, de qualidade, no tratamento humanizado, com objetivos de autonomia, emancipação e diversidade.
Somos contra as comunidades terapêuticas e o proibicionismo
Nos posicionamos veementemente contra toda e qualquer política que abra brechas, financie e/ou incentive essas instituições asilares que atacam frontalmente a luta antimanicomial e a reforma psiquiátrica. Reiteramos que as comunidades terapêuticas fazem parte da lógica e política racista e higienista de drogas, que criminaliza usuários, segrega e isola; superencarcera e promove o genocídio da população pobre e negra.
As comunidades terapêuticas abandonam toda e qualquer política de Redução de Danos e implementam um modelo conservador e fracassado baseado na abstinência, na transformação das comunidades em espaços de “tratamento”.
A Redução de Danos foi uma política implementada, no Brasil, na década de 90 e, desde então, tem sido uma importante estratégia de cuidado que compreende o uso de drogas e seus efeitos a partir de uma lógica biopsicossocial. Ao minimizar os danos relacionados ao uso de drogas, para aqueles sujeitos que não querem ou não conseguem interromper o uso em um primeiro momento, a Redução de Danos estimula a autonomia, a inclusão social e o respeito à cidadania.
A guerra a droga extermina o povo negro nas favelas
Ao contrário da Redução de Danos, o modelo de abstinência também envolve uma concepção moralista e de criminalização das drogas, que se desenvolve na política de (in)segurança pública da guerra às drogas. E sabemos exatamente o que a guerra às drogas tem produzido.
As favelas e periferias são o alvo das ações policiais que, em um Estado racista e genocida, só veem um suspeito: o negro. Não à toa, a maior parte dos presos e assassinados pelo Estado são jovens negros, pobres e das periferias e favelas. Acabar com a repressão, o genocídio militar nas favelas, pôr fim à PM e suas operações e legalizar as drogas fazem parte de uma política urgente para enfrentar o encarceramento e o genocídio da população pobre e negra.
Mobilizar contra as comunidades terapêuticas
O Governo Lula Alckmin ou se compromete em financiar o cuidado humanizado que respeita a autonomia, cidadania e os direitos humanos dos usuários da saúde mental pelo SUS ou estará admitindo que rifou os direitos dessas pessoas para os reacionários e golpistas que são donos das comunidades terapêuticas, financiando violações de direitos e seus adversários políticos de extrema direita, que ganham com esses estabelecimentos. Mesmo que não admita, os fatos falam por si só. Percebemos, então, que, infelizmente, o Governo Lula/Alckmin apresenta políticas equivocadas e totalmente atrasadas nesse setor. Ao invés de financiar e investir no SUS, na RAPS e nos serviços públicos e substitutivos ao manicômio, ele reforça as comunidades terapêuticas. Em nome de governabilidade conservadora, dão dinheiro público a instituições privadas, racistas, LGBTfóbicas, machistas, que negam a ciência e o cuidado humanizado em nome dos lucros dos reacionários que são donos das comunidades terapêuticas, que constantemente são denunciadas por inúmeras e sistemáticas violações de direitos.
É necessário que os movimentos ligados ao SUS e à luta antimanicomial organizem um forte movimento nas ruas contra essas políticas atrasadas. Exigimos do governo Lula a revogação dessas portarias, decretos, leis e o fim do financiamento público para comunidades terapêuticas. Mais investimento no SUS e na RAPS, fortalecimento e ampliação de mais dispositivos públicos e estatais, como CAPS AD, em todas as cidades e funcionando 24h (CAPS AD III).
Exigimos a separação efetiva da igreja e do Estado e o fim das comunidades terapêuticas; o fim da guerra às drogas e do encarceramento em massa; revogação da lei de drogas e a legalização das drogas. Verbas públicas para fortalecer as políticas estatais via o não pagamento da dívida aos banqueiros, a taxação dos bilionários e a taxação de lucros das indústrias multinacionais do tabaco, bebidas, químicas e farmacêuticas. Só assim conseguiremos combater as violações de direitos, a tortura e seguiremos rumando ao cuidado em liberdade, sem moralismos e conservadorismo, visando autonomia, dignidade e direitos.
Nenhum passo atrás! Manicômio nunca mais!