“Não há conteúdo revolucionário que sobreviva à liquidação numa aliança eleitoral com a burguesia”
O jornal Combate Socialista desde dezembro do ano passado vem batalhado por uma frente de esquerda independente e uma reunião conjunta das forças que não estão no governo Lula/Alckmin. Nesse sentido dialogamos com Rojú Soares, Graduando em Ciências do Estado pela UFMG, militante ecossocialista, e comunicador politico.
Combate Socialista: Qual sua visão do primeiro ano de mandato da frente ampla de Lula/Alckmin?
Roju Soares: O governo Lula-Alckmin representa uma gestão que dá continuidade às políticas neoliberais implementadas nos últimos anos, inclusive às políticas marcadas pelos governos de Temer e Bolsonaro. Não houve por parte desse governo ruptura com as medidas que marcaram o golpe institucional de 2016: a contrarreforma Trabalhista e da Previdência, o Teto de Gastos. Ao contrário, a roupagem do governo é a de normalização do regime burguês, mas assumindo para si a imagem de um neoliberalismo progressista, pois ainda repercute políticas de assistência social para a população em que pese a manutenção e sofisticação da política econômica neoliberal. Vemos isso com o Arcabouço Fiscal, que aprofunda os ataques aos serviços públicos desde o Teto de Gastos. Além disso, políticas como o Novo Ensino Médio e o projeto de privatizações dos presídios demonstram o compromisso prioritário do governo com a agenda dos milionários e com a precarização das condições de vida da população mais empobrecida e racializada. Na ordem socioambiental, os retrocessos oriundos de um governo que não enfrenta o patronato e as políticas neoliberais como o atual não nos coloca numa zona de conforto, muito pelo contrário. Retrocedemos e muito por meio de medidas como a entrada do Brasil na Opep+ (Organização dos Países Exportadores de Petróleo); o “Leilão do Fim do Mundo”, que vendeu para exploração de petróleo e gás naturais 602 áreas do país, incluindo unidades de conservação que colocam em risco não apenas biomas e ecossistemas, como também constitui uma ameaça para comunidades indígenas e quilombolas; sem contar a ameaça cada vez mais iminente do Marco Temporal, um dos maiores ataques ao reconhecimento dos direitos originários dos povos indígenas e que não procede com uma resistência e oposição contundente do governo.
CS: Qual o impacto dessa linha de colaboração de classes nas lutas contra a extrema-direita?
RS: Por meio da colaboração do governo Lula-Alckmin para com as classes dominantes no Brasil, a esquerda adesista ao lulismo se encontra estagnada num processo de desmobilização. Concomitantemente, ocorre um adestramento dos movimentos sociais ao reivindicarem melhorias nas condições de vida, o que também rebaixa nossas expectativas de construir alternativas, ou mesmo nas condições que podemos alcançar ao enfrentarmos os agentes do capital e atuarmos com independência dos governos que são situação da ordem. Tudo isso justificado com um discurso de que o risco do golpe está à espreita e qualquer passo que seja dado no sentido de crítica e oposição ao governo e sua linha política de alinhamento à ordem capitalista fortalece as manobras da direita, e isso basicamente paralisou a esquerda de um modo geral. Se de um lado temos uma extrema-direita que se fortalece e radicaliza suas táticas repressivas, suas alianças com o militarismo, o fundamentalismo religioso e com políticas fiscais cada vez mais brutais contra as classes oprimidas mundo afora; temos uma esquerda cada vez mais resignada e sem disposição a apresentar qualquer perspectiva de alternativa capaz de estimular nossas possibilidades e condições de vida, bem como enfrentar os setores capitalistas com organização e mobilização, de modo a deixá-los acuados em aplicar suas medidas antipopulares. Agora restou a defesa das instituições burguesas e liberais. Restou a defesa do status quo, a defesa daquilo que já se demonstrou falido em vários processos da história recente.
CS: Qual sua opinião sobre a frente ampla nas eleições municipais de 2024?
RS: Eu venho de uma tradição política que acumula balanços sobre as frentes amplas. Elas tendem a levar às traições das direções, às suas respectivas capitulações ao projeto liberal de gestão do Estado e fortalecem as burocratizações de quadros políticos, organizações, partidos e até mesmo de Estados. Para além disso, precisamos entender que a frente ampla implica uma política de concessões e alianças para com as burguesias nacionais. Nesse aspecto, o programa político que prevalece é sempre daquela classe que detém a hegemonia na ordem política, social e econômica. Não há conteúdo revolucionário que sobreviva à liquidação numa aliança eleitoral com a burguesia, ainda mais no contexto da periferia do capitalismo. Não há burguesia progressista, mas burguesias ainda mais reacionárias e conservadoras, para além de subservientes ao capitalismo estrangeiro, imperial e monopolista. Nesse sentido, o custo de se embarcar numa política como essa pode ser irreversível e nos inclina à desmoralização, além de produzir sobre as classes oprimidas pelo regime um desencantamento, uma frustração e uma consequente ruptura com os setores da esquerda como um todo, sobretudo quando aquelas se deparam com os direitos sociais e liberdades democráticas sendo rifadas pelos representantes da esquerda a fim de agradar aos interesses dos patrões e dos grandes milionários. No frigir dos ovos, a frente ampla que se pretende ser uma possível resposta da esquerda reformista e liberal para lidar com a atual crise de consenso com a Nova República e o presidencialismo de coalizão, acaba a acentuando em alguma medida, mais cedo ou mais tarde, e fortalece os setores da burguesia – agronegócio, latifúndio, fundamentalistas, militares, banqueiros – para que avancem no terreno da política, explorando inclusive as fraquezas dos setores da esquerda que se curvam aos seus interesses.
CS: O que avalia sobre a ideia de uma frente eleitoral envolvendo UP, PCB, PCB-RR, PSTU e outras organizações?
RS: Eu venho acompanhando propostas que a CST tem feito com relação a uma Frente Eleitoral da Esquerda Independente, bem como da organização Socialismo ou Barbárie que lançou uma carta recentemente em defesa de um Movimento Pela Esquerda Socialista Revolucionária, com um potencial de também intervir nas eleições, de modo que ambas as propostas ao meu ver são dialógicas e complementares. Considero que representam uma tática correta para a esquerda radical se lançar nesse período. Eu respeito profundamente a concepção de tática eleitoral que utiliza das eleições como um momento para que organizações políticas divulguem e defendam o seu programa, e qualquer organização que queira se utilizar desse período para levar e defender o seu projeto próprio, ainda que sem alianças com outras dentro de um campo comum, está exercendo um direito democrático e deve ser respeitada por isso. Apesar disso, nossa esquerda radical tem estado cada vez mais fragmentada e com pouca precisão para conseguir superar as barreiras da própria democracia liberal, de tal maneira que consiga, se ancorando nas brechas do sistema, apresentar o seu programa por meio dos espaços de debate e nos meios de comunicação. Sendo assim, candidaturas isoladas tendem a pulverizar ainda mais o debate e saírem prejudicadas e cada vez mais invisibilizadas como um todo, não logrando êxito no seu objetivo de conseguir apresentar de maneira minimamente democrática os seus projetos para a população. Por isso, uma candidatura ao executivo unificada poderia obter mais sucesso nas condições de participar de debates exibidos nacionalmente, de mobilizar movimentos e setores sociais em torno uma campanha mais popular e massificada, bem como de ampliar a visibilidade das candidaturas parlamentares, independente de quais partidos estejam filiadas. Além disso, em meio a uma conjuntura onde enfrentamos uma ofensiva fundamentalista religiosa, ultraliberal e fascista no Brasil, devemos ter uma atuação estratégica em todas as esferas onde se possa disputar a consciência das pessoas. Não podemos ignorar a importância da disputa eleitoral nesse processo, inclusive visando eleger mandatos efetivamente socialistas. Se prezamos por uma intervenção no pleito eleitoral com um programa pautado pela independência política e de classe, devemos para tanto construir uma aliança em torno de pautas e princípios comuns que harmonizem as organizações que não estarão dispostas a negociar o princípio da nossa independência política e de classe. Por isso, organizações como o PSTU, PCB, PCB-RR, UP, CST, MRT, SoB, dentre outras possuem a oportunidade de debater um projeto eleitoral com pautas que elevem as demandas da classe trabalhadora (redução da jornada de trabalho, a defesa dos biomas e da Amazônia, políticas de adaptação e mitigação à mudança climática, transição da matriz energética fóssil para fontes de energia renováveis e limpas, o fim dos regimes de concessão e privatização das empresas estatais, a revogação imediata das contrarreformas trabalhista, previdência e do arcabouço fiscal, o fim do NEM, a defesa das populações originárias, bem como o compromisso no enfrentamento à todas as formas de opressão) tendo como base a nossa independência da conciliação de classes e das burguesias nacionais. Para além disso, é igualmente importante realizarmos um chamado à rebeldia às organizações de esquerda radical do PSOL que possuem uma avaliação de que a frente ampla não é a saída para responder à crise política que enfrentamos. Essas organizações não devem acatar as decisões capituladoras do campo majoritário do PSOL. Estas devem procurar estabelecer diálogos e vínculos com os setores da esquerda radical que buscam enfrentar a extrema-direita pelos métodos da luta de classes. Por isso, o apoio e adesão de organizações como a Rebelião Ecossocialista, Revolução Socialista, APS, MES, LSR, entre outras, pode fortalecer ainda mais essa investida.