Lenin por Nahuel Moreno

Por Imprensa UIT-QI

Este artigo (Quatro conselhos de Lenin) foi escrito por Nahuel Moreno em 1986 para a revista da juventude do partido argentino. Refere-se a três aspectos centrais da experiência histórica e das características dos partidos leninistas. E o desenvolve em polêmica com as lamentações e supostas “autocríticas” do então secretário-geral do Partido Comunista Argentino, Athos Fava. E, num quarto ponto, aborda o significado das políticas anti-operárias e anti-revolucionárias dos PCs nos diferentes países, defendendo os interesses políticos da burocracia do aparelho central do Kremlin e dos seus próprios aparelhos.

O artigo procura contrastar o leninismo autêntico com as mentiras do aparato stalinista que, desde a década de 1920, se apoderou falsamente das bandeiras revolucionárias defendidas por Lenin até sua morte, em 1924, e por Leon Trotsky e os trotskistas, que continuaram tal defesa. Uma das mentiras mais colossais difundidas durante um século entre os trabalhadores, os lutadores, a esquerda e todo o mundo foi de que o stalinismo era uma continuidade do leninismo. Muito pelo contrário. Desde a década de 1920, os partidos comunistas encarnaram uma perversão, uma degeneração burocrática do marxismo revolucionário e do leninismo. Foram aparatos de funcionários inimigos da revolução socialista em cada país e no mundo. Promoveram políticas e métodos opostos aos do Partido Bolchevique, que tomou o poder com os sovietes democráticos de operários e camponeses na Rússia em 1917. E também opostos aos dos primeiros anos do PCUS (Partido Comunista da União Soviética) e da Terceira Internacional Comunista dirigida por Lenin e Trotsky. Tais aparatos mantiveram o nome “comunista”, mas defenderam os interesses econômicos, políticos e sociais de uma casta privilegiada, de uma elite anti-operária que capitulou ao domínio mundial do capitalismo imperialista. Um exemplo com longa história foi o PC argentino, que a partir dos anos 30 e durante muitas décadas foi uma importante organização política. Foi um aparelho burocrático, fantoche das “ordens” de Moscou, pró-imperialista, gorila [direitista] e um longo etc. Faz anos que o PC argentino praticamente desapareceu, dissolvendo finalmente as suas escassas forças no apoio ao peronismo e na aliança eleitoral Unidos por la Patria.

Segue abaixo o artigo completo.

Quatro conselhos de Lenin

Mais uma vez, o Partido Comunista Argentino (PCA) publicou uma intervenção do seu secretário-geral, Athos Fava, referindo-se aos problemas que afligem aquela organização. E novamente vemos uma autocrítica que toca em problemas de grande profundidade, de grande significado.

Fava – no seu discurso perante o Comitê Central do PCA, publicado por Qué Pasa, nº 287, em 10 de Setembro de 1986 – salienta que “o exercício da direção política é em si mesmo um grande problema, mas nos últimos meses surgiram com força preocupações que se acumularam ao longo de décadas.” Fava explica que agora “começaram a ser expostos os nossos velhos defeitos de formação, as violações do centralismo democrático e a persistência de resquícios de culto à personalidade, em diferentes níveis, o que é, em última análise, uma das origens daquilo que chamamos de critério de ‘infalibilidade’, de arrogância e de mecanismos de autocrítica ‘‘para baixo’’, ou seja, para os subordinados. E isso causou muitos danos ao Partido.”

E o dirigente do PCA continua dizendo: “Carregamos, e são essas as preocupações que surgem no debate, um elevado grau de administrativismo, com uma parte do partido virada para dentro, com dirigentes desligados das massas e dos problemas dos filiados; mais como administradores do que como revolucionários.”

“Há também uma rejeição da maior parte do partido ao que se chama de ‘aparatismo’, ou seja, aparatos superdimensionados, que geram a sua própria política, com um certo grau de burocracia, que estamos redirecionando para despejar toda essa força em política de concentração.”

“Um desvio metodológico não menos importante é o formalismo, que desnaturaliza a política de quadros ao encorajar o personalismo e a promoção dos camaradas pela sua aceitação da ‘‘ordem e comando’’ e não pela sua capacidade, independência de julgamento, audácia e criatividade. É uma atitude que, ao mesmo tempo, desumaniza a vida partidária, rebaixa a moral comunista e cobre tudo com uma fachada de ordem aparente, com números que escondem a realidade e a deformam com informações falsas, ufanistas, não científicas, tanto de cima para baixo quanto de baixo para cima.”

Em todos os partidos, mesmo nos revolucionários, existe burocracia

Os problemas apontados hoje por Fava – que ele próprio afirma serem provenientes de décadas de deformações dentro do PCA – não são novos para os marxistas.

Em todos os partidos – mesmo nos mais revolucionários, inclusive o Partido Bolchevique de Lenin – sempre houve burocracia. Sempre existiram e continuarão a existir funcionários, profissionais do partido, que cuidam de tarefas organizativas e administrativas. E necessariamente o partido tem que dar um salário a esses funcionários, para que possam viver.

Nós, revolucionários marxistas, sempre levamos tal questão em consideração. Lenin, que lançou as bases teóricas para a construção do partido revolucionário, sempre deu grande importância à questão da burocracia.

A grande preocupação de Lenin era como evitar que os funcionários, a burocracia, assumissem a direção do partido, como garantir o controle dos militantes sobre a burocracia.

O salário dos funcionários

Em primeiro lugar, Lenin disse: “A remuneração dos funcionários (…) não deve exceder o salário médio de um trabalhador qualificado.” [1]

No Partido Bolchevique, todos os empregados, todos os dirigentes, tinham uma remuneração que não era superior ao salário médio de um operário qualificado. E a mesma coisa aconteceu quando os bolcheviques tomaram o poder: funcionários e dirigentes ganhavam salários nunca superiores ao salário médio de um operário qualificado.

A mesma coisa acontece hoje no Movimento ao Socialismo. Em nosso partido, desde os mais altos dirigentes até os funcionários administrativos ganham o mesmo salário, que é definido com base na média do que ganham os operários qualificados na Argentina.

O que acontece no Partido Comunista Argentino? O que acontece na União Soviética, em Cuba e nos outros Estados operários? Os dirigentes do PCA, Gorbachov e Castro vivem com um salário igual ao salário médio de um operário qualificado? A primeira norma leninista para funcionários é cumprida nos partidos comunistas e nos Estados operários?

Todo militante que quer construir um partido para fazer a revolução tem que saber que, se na sua organização existem funcionários privilegiados, com rendimentos muito superiores ao salário médio de um operário qualificado, tais funcionários serão o germe da burocracia, do surgimento de uma casta privilegiada, com interesses diferentes dos interesses dos trabalhadores. E que tais funcionários privilegiados tentarão inevitavelmente usar o aparelho partidário para defender os seus privilégios, passando por cima das necessidades dos trabalhadores.

Foi por isso que Lenin insistiu que os funcionários deveriam ter salários que não excedessem o salário médio de um operário qualificado; que os funcionários do partido (ou, com a tomada do poder, do Estado) deveriam viver nas mesmas condições que os trabalhadores comuns e ter as mesmas necessidades que os trabalhadores comuns, sem privilégios especiais.

O controle das bases sobre os dirigentes do partido

A segunda norma-chave definida por Lenin para evitar que a burocracia se imponha no partido foi o controle das bases sobre os dirigentes e funcionários.

Em 1902, na sua “Carta a um camarada: sobre as nossas tarefas de organização”, Lenin propôs uma forma de evitar os abusos dos maus dirigentes, mesmo na militância mais clandestina, sob o czar, quando por razões de segurança a base não podia conhecer todos os dirigentes e nem votar em todos eles ou tomar conhecimento e votar em muitas questões decisivas. Lenin disse: “O remédio contra isso não se encontra em nenhum estatuto. Somente podem nos fornecer parâmetros ‘críticas fraternas’ começando com resoluções de todos os grupos e subgrupos, seguidas de conclamações ao OC [Organismo Central ou Comitê Executivo, NM] e CC e terminando, ‘na pior das hipóteses’, com a destituição da direção completamente incapaz.” [2]

Ou seja, face às “violações do centralismo democrático e a persistência de resquícios de culto à personalidade”, face à “arrogância” e aos “mecanismos de autocrítica para baixo, ou seja, para os subordinados” de que fala Athos Fava, Lenin propõe um controle estrito dos dirigentes pela base.

Lenin – mesmo nas condições de maior clandestinidade, que exigiam um grande centralismo – encorajou as células (os grupos ou subgrupos) a controlar e criticar os dirigentes e, inclusive, a exigir “a destituição da direção completamente incapaz”.

Estamos orgulhosos de que, seguindo Lenin, no nosso partido encorajamos os militantes a serem rebeldes em todos os sentidos, incluindo em relação à direção. Não é possível sustentar uma atitude revolucionária, de rebelião intransigente contra a burguesia e os seus lacaios, e ao mesmo tempo manter uma atitude submissa, de subordinação, de “culto à personalidade” para com os dirigentes do partido. Estimulamos nossos militantes a serem rebeldes em relação aos dirigentes, criticando-os, controlando-os e exigindo que demonstrem todos os dias sua capacidade, sem aceitar nenhuma autoridade imposta, mas só aquela que surge da competência demonstrada pelos quadros. E que, “na pior das hipóteses”, exijam “a destituição da direção completamente incapaz”.

Diante de tal conselho de Lenin, os militantes comunistas preocupados com os problemas apontados por Athos Fava em relação ao regime da sua organização devem se fazer a seguinte pergunta chave: existe um controle rigoroso das bases sobre os dirigentes e funcionários dentro do PCA?

O direito de tendência ou fração

O Partido Bolchevique de Lenin desenvolveu-se num processo de contínuos debates internos, convergências e rupturas entre diferentes tendências. Mesmo nos piores momentos de repressão sob o czar, o Partido Bolchevique foi palco de polêmicas.

Tal como insistiu na necessidade de centralização política na ação, de uma disciplina férrea para a intervenção do partido na luta de classes, Lenin também defendeu a necessidade de uma discussão livre, ampla e democrática entre todas as tendências que pudessem surgir no interior do partido, como a melhor forma de educar os militantes e desenvolver uma política correta.

Assim, em resposta a um artigo publicado em 1903 no jornal bolchevique Iskra (A Centelha), intitulado “O que não fazer?”, Lenin escreveu uma carta aos editores (25 de novembro de 1903):

“Anatematizar ou expulsar do partido não só os velhos economicistas, mas também os pequenos grupos de social-democratas que sofrem de uma ‘‘certa inconsequência’’, seria absolutamente absurdo…. mas vamos ainda mais longe: quando temos um programa e uma organização partidária, não devemos apenas abrir as páginas do órgão partidário à troca de opiniões, mas também expor sistematicamente as nossas divergências, por menores que sejam esses grupos ou panelinhas, como o autor os chama, que defendem, até cair na incoerência, certos dogmas do revisionismo e que, por uma razão ou outra, insistem no seu particularismo e identidade de grupos.”

“Precisamente para não cairmos em atitudes bruscas…. em relação ao ‘‘individualismo anarquista’’, devemos fazer, em nossa opinião, todo o possível – chegando mesmo a fazer certas concessões que nos afastem do belo dogma do centralismo democrático e da submissão incondicional à disciplina – para deixar tais pequenos grupos livres para se expressarem, dar a todo o partido a possibilidade de medir a profundidade ou a falta de importância das divergências, para poder determinar, concretamente, onde e em quê aspectos definidos a inconsequência se manifesta.” [3]

E, treze anos depois, em 1916, no seu artigo “Tarefas dos Zimmerwaldistas de Esquerda no Partido Social-Democrata suíço”, Lenin defendia: “É precisamente para evitar que a inevitável e necessária luta de tendências degenere na rivalidade de ‘favoritos’, nos conflitos pessoais, nas suspeitas mútuas e nos pequenos escândalos que todos os membros do Partido Social-Democrata são obrigados a promover uma luta aberta com base nos princípios das várias tendências da política social-democrata.” [4]

Será que tal liberdade de crítica e de debate, de discussão entre tendências, sem o recurso a expulsões ou sanções, que Lenin aconselhava, existe dentro do PCA?

A atitude dos partidos comunistas em relação à URSS

Após a tomada do poder pelo Partido Bolchevique em 1917 e a constituição da Terceira Internacional, que reuniu partidos comunistas de todo o mundo, Lenin alertou sobre o perigo de que o enorme prestígio da União Soviética e dos seus líderes levasse os dirigentes e militantes revolucionários de outros países a adotar uma atitude de espera por ordens, atuando como meros agentes do Ministério das Relações Exteriores russo.

O Estado soviético tinha (e ainda tem) que, inevitavelmente, negociar com os governantes burgueses de outros países, fazer acordos diplomáticos, econômicos etc. O perigo era (e ainda é) que, porque a URSS tinha feito um acordo com um governo de um país capitalista, o partido comunista desse país decidisse parar de lutar contra o “seu” governo burguês para não comprometer o pacto diplomático alcançado pela Rússia.

Um caso famoso ocorreu assim que os bolcheviques tomaram o poder, três anos após o início da Primeira Guerra Mundial. Instados pela pressão militar do exército alemão e pela exigência de paz por parte do povo russo, que tinha sofrido terríveis dificuldades durante a guerra, os bolcheviques assinaram o Tratado de Brest-Litovsk, pelo qual foram forçados a permitir que os imperialistas alemães tomassem muitos territórios.

Lenin e Trotsky (que esteva encarregado da negociação) criticaram duramente os dirigentes socialistas alemães, que não denunciaram o tratado como uma infâmia imposta pelo “seu” governo burguês e que o ratificaram no parlamento, usando como justificativa o fato de Lenin tê-lo assinado.

Os bolcheviques salientaram que o primeiro dever dos dirigentes alemães era lutar contra o “seu” governo burguês e os seus tratados, incluindo aqueles assinados por Lenin. É algo semelhante à política que os revolucionários devem ter num acordo sindical ou dentro de uma empresa. Suponhamos que uma greve dirigida por Lenin seja derrotada e que sejamos forçados a assinar um acordo que deixe duzentos operários fora da fábrica. Se os dirigentes sindicais de outra fábrica disserem “Que formidável é aquele acordo que Lenin assinou, deixando 200 operários nas ruas!”, isso será uma traição e provocará uma decepção dos trabalhadores.

Devido ao bloqueio de grãos que os Estados Unidos impuseram, sob o governo Carter, a União Soviética foi forçada a buscar fornecedores para cobrir as suas necessidades de trigo. Por conta de tal situação, imposta pela agressão ianque, a URSS fez um acordo com a ditadura de Videla e Martínez de Hoz, pelo qual o governo argentino se comprometeu a vender trigo à Rússia, rompendo o cerco estadunidense. Não há dúvida de que a URSS tinha todo o direito de celebrar esse acordo econômico.

Ao mesmo tempo, e seguindo a orientação de Lenin, o Partido Comunista Argentino deveria enfrentar a ditadura argentina e exigir a sua derrubada. O PCA não deveria, de forma alguma, apoiar Videla ou amenizar as suas denúncias após a assinatura do acordo econômico entre a ditadura argentina e a URSS.

No entanto, como os próprios dirigentes do PCA reconheceram na sua autocrítica, a falta de uma caracterização justa dos traços “fascistas” do regime militar e a proposta de uma “convergência civil-militar” com Videla significaram um desvio “oportunista” e uma capitulação à ditadura.

Qual foi o motivo dessa capitulação? Os dirigentes do PCA propuseram uma “convergência civil-militar” para não prejudicar as negociações econômicas da URSS? Os dirigentes do PCA agiram como militantes do Ministério das Relações Exteriores da URSS, contrariando o conselho de Lenin? Ou, pelo contrário, tal capitulação nada teve a ver com o acordo econômico entre a URSS e Videla?

Tal como já assinalámos num artigo anterior, ao resgatar os conselhos de Lenin e levantar tais ponderações, queremos convidar os militantes comunistas a uma reflexão conjunta, para respondermos juntos às questões que hoje intrigam a militância: qual a origem das décadas de desvios do Partido Comunista Argentino? Qual é o caminho para construir um partido revolucionário, com um regime e uma política que lhe permitam liderar a revolução? Esperamos que os militantes comunistas contribuam com as suas ideias para o debate, que é tão educativo para os combatentes revolucionários da Argentina.

Notas:

[1] V. I. Lenin.: “As tarefas do proletariado na revolução atual” (7 de abril de 1917), extraído da compilação Sobre a incorporação das massas na Administração do Estado, Editorial Progreso, Moscou (sem data), p. 3.

[2] V. I. Lenin: Obras Completas, Editorial Cartago. Buenos Aires. 1959. Tomo VI, p. 237-238.

[3] V.I. Lenin: Obras Completas, ob. cit., tomo VII. p. 110-111.

[4] V.I. Lenin: Obras Completas, ob. cit., tomo XXIII, p. 145.

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