Bolívia: crise econômica e política e resistência do povo trabalhador
Por Miguel Lamas, dirigente da UIT-QI
Nos últimos meses, a Bolívia mergulhou numa crise econômica e política. Como acontece em outros países, a crise do capitalismo está sendo descarregada sobre os trabalhadores. Diante disso, começaram importantes mobilizações de professores e de outros setores. E também se agravou a crise e a divisão do governante MAS, entre a ala “renovadora”, que apoia o presidente Arce, e a ala “radical”, ligada a Evo Morales.
O presidente Luis Arce tem afirmado que está tudo bem na Bolívia e que é “o país mais estável do mundo”. Para defender tal posição, apoia-se na paridade fixa do peso boliviano com o dólar, que já dura quatorze anos, e na baixa inflação.
Visto da Argentina, isso pode parecer quase milagroso. No entanto, ainda há muita pobreza. E a estabilidade do dólar e a baixa inflação estão hoje ameaçadas, dado que o Estado ficou sem reservas em dólares; há fuga de capitais; importam-se mais hidrocarbonetos em nafta e óleo diesel do que se exportam em gás; os bancos não disponibilizam dólares; e já existem um “dólar paralelo” e aumentos de preços de produtos de primeira necessidade.
O principal produto de exportação atual é o ouro, mas sua produção é comandada por empresas disfarçadas de “cooperativas”, associadas a multinacionais chinesas, que quase não pagam impostos e estão envenenando os rios com mercúrio. A outra exportação importante é a de soja e demais produtos da agroindústria, que também não paga impostos, é subsidiada pelo Estado – com diesel importado comprado pela metade do preço -, está destruindo as florestas e leva seus lucros para fora do país.
A “Agenda de Outubro” foi traída
O MAS assumiu o governo em janeiro de 2006, após vencer as eleições prometendo aplicar a “Agenda de Outubro”, programa de reivindicações da insurreição popular de outubro de 2003. Tal agenda exigia a expulsão das multinacionais; a nacionalização do gás; uma revolução agrária, entregando as terras do latifúndio aos camponeses; e a industrialização. Em outras palavras, era um programa para acabar com o saque histórico da Bolívia.
Mas o governo do MAS, presidido por Evo Morales e tendo como ministro da fazenda Luis Arce, agora presidente, nunca aplicou a “Agenda de Outubro”. Apenas aumentou os impostos cobrados das empresas multinacionais de gás, numa época em que o preço internacional do produto dobrou, e pactuou com os latifundiários a manutenção de suas terras.
Em outras palavras, o governo de Evo Morales e do MAS fez – e o de Arce ainda faz – parte dos governos de centro-esquerda e de conciliação de classes, como o de Chávez-Maduro, de Lula, de Correa ou do peronismo, que continuaram governando para os patrões e as multinacionais, com um falso discurso anti-imperialista ou de “esquerda”.
As altas receitas estatais dos primeiros anos do governo do MAS, provenientes dos impostos sobre o gás, desapareceram. A maior parte da riqueza foi abocanhada pelas transnacionais, com investimentos mínimos. Tampouco houve um importante processo de industrialização por parte do Estado. E o gás, que era o que mais sobrava para o Estado, agora está acabando.
Hoje, o sistema continua a ser de exploração para o povo trabalhador. Apenas 20% dos trabalhadores têm emprego formal. A maioria dos demais, e quase todos os jovens, tem empregos assalariados informais, sem direitos trabalhistas e sem estabilidade, com salários miseráveis; ou são pequenos agricultores ou pequenos comerciantes, que muitas vezes vendem produtos contrabandeados.
Continua o entreguismo
Hoje, o governo Arce continua a política de rendição às multinacionais e aos capitalistas. Mesmo com diferenças por conta de interesses particulares, os governos de Arce, de Morales e da direita tradicional de Santa Cruz coincidem no essencial. Nenhum deles propõe uma mudança de fundo. Morales só usa a crise, pela qual também é responsável por conta de seu governo anterior junto com Arce, para tentar voltar à presidência em 2025, derrotando o antigo aliado.
Diante da crise, a oposição de direita fala em privatizar, incentivar investimentos estrangeiros, diminuir gastos públicos e desvalorizar a moeda. Dizem que isso seria “sanear” a economia. Evo Morales e a velha direita defendem “libertar as exportações”. Isso significa retirar restrições e impostos para favorecer os exportadores, que levam seus lucros para fora do país.
Ou seja, tanto Evo Morales quanto a direita tradicional se propõem a jogar a crise nas costas do povo trabalhador. Embora diga que não vai desvalorizar a moeda, Arce está cortando os gastos com necessidades populares básicas, como educação e saúde. E diz que vai resolver a situação econômica com a exportação de lítio, acertada com as multinacionais chinesas, algo que ainda vai demorar vários anos para ocorrer, repetindo a história boliviana de saque das riquezas naturais por parte das multinacionais, que deixam migalhas para o país.
Dois meses de luta dos professores
Diante dessa situação, há importantes lutas sociais. Atualmente a maior é a dos professores urbanos (que inclui professores primários e secundários), que estão mobilizados há dois meses, exigindo mais verbas para a educação, a contratação de mais docentes e aposentadoria digna. Nesta semana os professores rurais também estão se mobilizando. Além disso, houve grandes marchas de pequenos comerciantes (chamados “gremiales” na Bolívia) contra os impostos que os afetam.
A direção da Central Operária Boliviana, que está subordinada ao governo, já prorrogou seu mandato por duas vezes, sem a realização de Congresso, e não está apoiando essas lutas.
Por um plano econômico do povo trabalhador
Acabar com este desastre significa agora lutar pelo triunfo das reivindicações dos professores e dos pequenos comerciantes e por soluções de fundo, que passam pela aplicação do programa que o povo trabalhador levantou em 2003 e também do que foi votado no Congresso da Central Operária Boliviana que fundou o Partido dos Trabalhadores (PT) em 2013.
A Alternativa Revolucionaria do Povo Trabalhador, seção da UIT-QI e parte do PT, defende a construção de uma ferramenta política dos trabalhadores, uma alternativa para governar e impulsionar a luta por uma verdadeira nacionalização, sem indenização e sob o controle democrático dos trabalhadores, da mineração, dos hidrocarbonetos, do lítio e do ouro, assim como de todo o sistema bancário; para expropriar as terras dos patrões do agronegócio e entregá-las aos camponeses, que as cultivarão pessoalmente; para apoiar a produção de alimentos dos camponeses indígenas, que alimentam o país. Isso permitirá a industrialização e a criação de empregos decentes para a maioria, acabará com a miséria no campo e nas cidades, impedirá a destruição ambiental e garantirá saúde e educação gratuitas e de qualidade para todos.