55 anos do assassinato de Che na Bolívia
Neste ano de 2022 completam-se 55 anos do assassinato do líder revolucionário latino-americano Ernesto Che Guevara, que foi assassinado no dia 9 de outubro de 1967, na Bolívia. Reproduzimos esta nota de Mercedes Petit, de 9 de outubro de 2008, quando cumpriram 40 anos do assassinato.
“Revolução socialista ou caricatura de revolução”
Agora que estão em moda todo tipo de pesquisas, seria um orgulho que Che Guevara, que morreu na Bolívia em 9 de outubro de 1967, ficasse consagrado como o “argentino mais famoso”. Para muitos dos jovens que o usam em suas camisetas, broches e pôsteres ele é um exemplo de vida militante, honesta, de entrega a um ideal de mudança revolucionária e de luta.
Ernesto Guevara é tudo isso e muito mais. Nas atuais polêmicas sobre a luta pelo socialismo no novo século há muito para aprender e levar em conta de sua experiência. Nossa corrente, dirigida por Nahuel Moreno, criticou desde suas origens as concepções guerrilheiras e foquistas de Guevara. Fazíamos essas críticas convencidos de que aqueles focos guerrilheiros eram uma via morta para conseguir novas vitórias, no contexto de defesa incondicional da primeira revolução socialista da América Latina. Criticávamos também por ele não defender a necessidade da autodeterminação e da democracia para a classe operária e a necessidade de construir novos partidos revolucionários. Mas também considerávamos que a figura de Guevara ia para muito além dessas diferenças.
“Guevara: herói e mártir da revolução permanente”
Com esse título, há 40 anos, Nahuel Moreno publicou sua homenagem ao revolucionário assassinado na Bolívia. “Guevara, que arriscou sua vida quantas vezes foram necessárias, até perdê-la, pela revolução cubana e latino-americana, não teve medo de enfrentar e dar resposta aos problemas mais graves colocados pela revolução. Desde a defesa de Cuba até a construção do socialismo no período de transição, passando pelas relações econômicas entre os países socialistas […] para apontar uma saída: a revolução permanente” (La Verdad, 23/10/1967).
Relembrando seu encontro com Che em uma reunião em Punta del Este, Moreno não duvidou em localizá-lo como a “ala mais revolucionária”, que se opunha à direção da URSS, no processo cubano, ainda que sem deixar de criticar por suas posições pró-China. (El Tigre de Pobladora, El Socialista, 2006).
Além de incansável defensor das expropriações e da centralização econômica, Guevara defendia “a participação dos trabalhadores na direção da economia nacional planificada” (ver, por exemplo, seu discurso de 08/08/1961). E teve uma particular e ligeira preocupação em denunciar e combater os privilégios que começavam a desfrutar os funcionários do governo e do partido. Manteve uma vida pessoal e familiar absolutamente austera e se colocava a cada domingo à frente de brigadas de trabalho, para educar com seu exemplo. Sua visão internacionalista o levou a entender a defesa de Cuba como parte da extensão da revolução socialista ao resto da América Latina e a se chocar cada vez mais com as posições da burocracia soviética. Criticou duramente os termos de intercâmbio econômico da URSS com os demais países do chamado “campo socialista”. Em fevereiro de 1965, pronunciou um célebre discurso em Argel. Convocou a unir as lutas contra o imperialismo até acabar definitivamente com ele em todo o mundo, a fortalecer o internacionalismo proletário e a luta mundial pelo socialismo. Condenou a política de coexistência pacífica entre a direção da URSS e o imperialismo, exigiu o apoio incondicional, com armas gratuitas, aos vietnamitas, denunciou o jugo das dívidas externas e as bases militares ianques. Essas posições revolucionária foram perdendo apoio dentro de Cuba, e pouco depois Che se foi para não mais voltar.
Antes de fechar o primeiro ano de seu assassinato, a direção de Fidel e do PC cubano apoiaram, em agosto de 1968, o massacre da revolução tchecoslovaca pelas mãos do exército soviético. E quando assumiu Allende no Chile, apoiou calorosamente a “via pacífica ao socialismo”, que, com sua utopia de conciliação de classes, abriu o caminho para o triunfo de Pinochet.
O “Socialismo do Século XXI” e Guevara
Atualmente, os governos da Venezuela e de Cuba, e o PC cubano, proclamam um chamado “Socialismo do Século XXI”. Defendem a economia mista capitalista, a convivência entre distintas formas de propriedade (incluindo os negócios das grandes multinacionais) e os mecanismos do mercado. Os fracassos do Chile nos anos setenta e da Nicarágua nos anos oitenta já foram provas contundentes de em que direção conduz esse neorreformismo, onde tomaram caminhos opostos ao de Cuba, mantendo o capitalismo. Naquela época, Che já não estava, mas nos legou sua concepção socialista, revolucionária e internacionalista.
Para Guevara, era uma totalidade a necessidade da revolução, das expropriações, da planificação e da participação consciente dos trabalhadores na construção da economia de transição, da extensão da revolução e da solidariedade mútua entre os países que se chamavam do “campo socialista”. Na sua concepção, não havia meias medidas. Se o que prima é o mercado, e não a planificação e a centralização, é capitalismo, não socialismo. Por isso, já em 1963, rechaçava as posições que defendiam um funcionamento mercantil para a economia cubana e criticava o governo da URSS que o incentivava.
As experiências das “reformas de mercado” dos burocratas chineses e soviéticos, que deram lugar para a restauração do capitalismo nesses países, e as novas tentativas de fazer “socialismo” mantendo o capitalismo, renovam a vigência daquela frase pelo qual Guevara deu sua vida: “revolução socialista ou caricatura de revolução”.
Che acreditava que Trotsky era um “inimigo da União Soviética”?
Sempre surge a pergunta sobre inclinações de Che para Trotsky, o velho revolucionário bolchevique. Recordemos somente um exemplo. Há 30 anos de seu assassinato, o “Comandante Benigno” (o cubano Daniel Alarcón Ramírez, que o acompanhou na Bolívia), declarou que, depois de seu discurso em Argel, “para a URSS o Che se converteu em um antissoviético. Alguns o taxavam de trotskista ou algo parecido. Isso não era de conhecimento do povo cubano, somente de alguns dirigentes.” (La Prensa, 29/06;1997).
Essa falta de “conhecimento do povo cubano”, e a inexistência de debates democráticos e abertos sobre os grandes problemas da revolução, tanto nos anos sessenta como agora, não permitem ter uma resposta documentada sobre muitas posições de Che, dando peso às “recordações” individuais para difundir supostas posições políticas.
É o caso, por exemplo, de Orlando Borrego Díaz, que combateu sob liderança de Che durante a luta contra o ditador Batista e se converteu em estreito colaborador e amigo. Em uma entrevista há poucos anos, ele disse que Guevara era um ávido leitor e muito estudioso, que “leu tudo” de Trotsky. E agrega, de sua própria memória: “[…] o Che evoluía e ia entendendo tudo de Trotsky. Ele pensava que Trotsky foi se ‘apagando’ no final da vida, porque chega um momento que seu ódio por Stalin – que tem suas razões, né? – em parte foram o transformando em um inimigo da URSS. Não de Stalin, mas da URSS. Até que no final de sua vida […] parecia ‘louco’”.*
Borrego atribui a Che, sem nenhuma prova, a velha calúnia, alimentada mil vezes pelo stalinismo, contra Trotsky. A partir da crítica a Stalin, desqualifica Trotsky, definindo-o como “inimigo da URSS”. Esse foi o argumento oficial de Stalin para “justificar” sua perseguição contra Trotsky e seu assassinato em 1940.
No entanto, se Che “leu tudo de Trotsky”, sabia perfeitamente que os últimos textos de Trotsky no “final de sua vida” eram uma polêmica apaixonada em defesa da URSS, contra setores pequeno burgueses que romperam com a IV Internacional horrorizados com os crimes de Stalin. A “versão Borrego” se junta à infinita montanha de lixo contra o velho revolucionário. E ficam os fatos.
Guevara, em muitas de suas críticas à burocracia e em sua defesa da revolução socialista, coincidiu com as posições de Trotsky, ainda que sem nomeá-lo. E quando estava na selva boliviana, Che, entre seus poucos pertences, levava um livro de Trotsky…
Borrego é especialista em difundir supostas posições de Che, manipulando “lembranças” e citações fora de contexto. Para defender os burocratas venezuelanos, com Chávez na cabeça, que impedem que se desenvolva o controle operário nas empresas estatais, Borrego lhes escreveu uma carta, em 2005, afirmando que Che defendia uma gestão vertical e autoritária em mãos de burocratas governamentais, sem participação dos trabalhadores…** Nesse caso, tanto a atividade como os textos de Guevara o desmentem, nitidamente.
* Publicado em O Capital, história e método, por Néstor Kohan, Universidade Popular Mães da Praça de Maio, 2003. Esse dirigente do Partido Comunista é ex-ministro e atual assessor do governo cubano.
** Ver “A luta pela cogestão e o controle operário”, em A Revolução Venezuelana. El Socialista, 2005.
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