Texto 9: Nahuel Moreno e a luta contra mais uma capitulação nas fileiras do Trotskismol

Henrique Lignani, CST Rio de Janeiro

No último texto deste especial, vimos que a capitulação da corrente trotskista fundada por Ernest Mandel a direções burocráticas e a governos burgueses de Frente Popular é algo que se repetiu historicamente. Um dos exemplos mais marcantes ocorreu na Nicarágua, após a revolução de 1979. Naquele momento, sustentando o Governo de Reconstrução Nacional, formado pela Frente Sandinista em conjunto com setores da burguesia, o mandelismo apoiou até mesmo a repressão contra os militantes da Brigada Simón Bolívar, impulsionada pelos trotskistas da Fração Bolchevique, liderada por Nahuel Moreno (ver livro “A Brigada Simón Bolívar”).

O episódio levou ao rompimento definitivo da corrente de Nahuel Moreno com os mandelistas. Por outro lado, a denúncia do governo burguês sandinista e a solidariedade aos brigadistas expulsos aproximou a Fração Bolchevique e o Comitê de Reconstrução da Quarta Internacional (CORQUI), tendência cujo principal dirigente era Pierre Lambert. Assim, em 1980, ambas as correntes se unificaram, formando a Quarta Internacional – Comitê Internacional (QI-CI).

A unificação, porém, duraria apenas até o ano seguinte. Em 1981, por meio das eleições, François Miterrand, do Partido Socialista (PS), chegou ao poder na França. Além do PS, o governo era composto pelo Partido Comunista Francês (PCF) e por setores da burguesia francesa, que contavam inclusive com dois ministérios. Tratava-se, portanto, de um típico governo de Frente Popular: por um lado, sua eleição se deu derrotando um representante tradicional da burguesia e o novo governo teria que fazer algumas concessões ao movimento de massas; por outro, sua presença era tolerada pela burguesia como um “último recurso” para estabilizar e proteger as instituições do regime francês, abaladas pelas greves de 1968. Nesse sentido, seguindo a tradição trotskista, o governo de Miterrand, enquanto um governo de Frente Popular, deveria ser entendido a partir de seu caráter burguês e contrarrevolucionário.

Não foi essa a resposta dada pela Organização Comunista Internacionalista (OCI), seção francesa de Pierre Lambert, que, naquele momento, integrava a QI-CI. Apesar de definirem o novo governo francês como “um governo burguês e de colaboração de classes” e escreveram várias frases com verniz e aparência “trotskista”, Lambert e a OCI afirmavam que ele representava um “campo progressivo” em oposição a um “campo reacionário”, composto pelas organizações patronais, pelos partidos burgueses tradicionais e pelas instituições da república francesa. Indo além, argumentavam que a própria eleição da Frente Popular de Miterrand era “incompatível” com a manutenção das instituições burguesas na França, havendo uma “contradição insuperável” entre aquele governo (em que pese o seu caráter burguês) e os interesses da própria burguesia. Lambert e a OCI finalizavam dizendo que, devido a essas contradições existentes, a disputa entre os dois “campos” caminhava forçosamente para uma “guerra civil”. Tudo isso era utilizado para justificar a capitulação dos lambertistas, que deram o seu apoio político ao governo burguês de Miterrand.

A teoria dos campos

A capitulação ao governo Miterrand se deu através da adesão a chamada teoria dos campos burgueses progressivos. Para os adeptos dessa teoria, em vez da luta implacável entre as classes sociais, ocorre unicamente disputas entre campos. Abandona-se a divisão da sociedade burguesa em classes e se define uma divisão entre campos “democráticos” e “autoritários”, “fascistas” e “antifascistas”. Essa política ignorava uma concepção básica do marxismo, segundo a qual a contradição fundamental da sociedade capitalista é a contradição de classe entre a burguesia e o proletariado. Desse modo, essas organizações abraçavam uma teoria antimarxista que divide a realidade em campos, vinculando a classe trabalhadora ao campo de algum setor da burguesia dito progressista ou democrático. Nahuel Moreno, na obra “A traição da OCI”, nos explica como a direção lambertista da OCI realizava manobras para camuflar sua posição revisionista: “Em vez de dizer que apoia o governo e a coalizão frente-populista liderada por Mitterrand, como faria um stalinista ou um socialdemocrata, afirma que ‘nossa tática está dirigida contra a burguesia, e nesse combate contra a burguesia não temos a menor responsabilidade pelo governo Mitterrand’ (Projeto de Informe Político, p. 3). No entanto, basta separar as frases necessárias para se disfarçar de trotskista para que apareça a verdadeira política da OCI: ‘Nesse combate contra a burguesia, sem assumir a menor responsabilidade pelo governo Mitterrand, estamos no campo de Mitterrand em suas ações de resistência à burguesia’ (op. cit. p. 3)”. A caracterização de Moreno era categórica “O trotskismo afirma, endossado por toda sua experiência histórica, que o campo da frente popular é burguês e, portanto, contrarrevolucionário”. Segue, assim, Lenin e Trotsky, que, em contraponto a essa teoria dos campos burgueses, defenderam uma teoria oposta. Conforme nos lembra Moreno: “Para eles, a divisão fundamental da sociedade russa é, como sustenta o marxismo ortodoxo, em classes: burguesia e proletariado. O eixo de sua política é o desenvolvimento da luta de classes até a conquista do poder pelo proletariado”.

Podemos fazer unidades de ação com quem quer que seja, incluindo setores da burguesia, para lutar nas ruas por pontos determinados e desde que em processos circunstanciais de mobilização, sempre batalhando para que, em qualquer manifestação unificada, se fortaleçam os setores operários. Por outro lado, as Frentes, que pressupõem programa e instâncias comuns, só podem ser concretizadas entre organizações da classe operária.

A capitulação da OCI provocou o rompimento das correntes que tinham se unificado na QI-CI no ano anterior.

Para Nahuel Moreno e seus companheiros, a política de Lambert era revisionista, retomando aspectos do revisionismo stalinista, que criou a Frente Popular com a burguesia enquanto uma estratégia da Internacional Comunista e dos Partidos Comunistas dirigidos pelo stalinismo, e do revisionismo de Pablo e Mandel, já nas fileiras do trotskismo, que provocaram rompimentos na IV Internacional na década de 1950 e no contexto da Revolução Sandinista de 1979 (ver textos anteriores deste especial).

Segundo Moreno: “Para os marxistas, nenhum governo burguês, ainda que seja frente populista, é ‘incompatível’ com o regime e com o Estado burgueses, nem pode haver um ‘antagonismo absoluto’ entre os patrões e um governo burguês. A única coisa incompatível com o regime burguês é a mobilização das massas e o surgimento de uma situação de duplo poder. É isso que a burguesia não pode tolerar nem por um instante. […] Miterrand resultará perfeitamente compatível com a V República enquanto for capaz de frear a mobilização das massas.” (Nahuel Moreno, La traición de la OCI, 1982)

O fato é que Lambert criava análises-justificativas que o levavam a apoiar e sustentar a Frente Popular, capitulando a um governo burguês. O rompimento da QI-CI devido ao apoio lambertista à Frente Popular na França gerou um processo de reorganização nas fileiras do trotskismo, dando origem à fundação da Liga Internacional dos Trabalhadores – Quarta Internacional (LIT-QI) (corrente que mais tarde também originou a UIT-QI). Em meio aos debates que se seguiram ao rompimento com Lambert, Moreno aprofundou as elaborações a respeito dos governos de Frente Popular e da posição que os revolucionários deveriam assumir. Ao contrário da resposta oportunista, os revolucionários deveriam se opor de forma intransigente a tais governos, não apoiando de forma alguma o governo ou suas medidas, denunciando o seu caráter burguês e contrarrevolucionário e levantando consignas de poder. Do mesmo, deveriam aprofundar a denúncia dos partidos operários contrarrevolucionários que compunham o governo junto com a burguesia, evidenciando que atuavam como agentes do inimigo de classe dos trabalhadores.

A resposta de Moreno e de sua corrente diante da capitulação de Lambert teve por base a reafirmação de alguns princípios revolucionários. Assim, nos fornece importantes contribuições para pensar como devemos nos posicionar frente a governos de conciliação de classes, lutando contra o oportunismo, sem abrir mão de nossa independência política e da tarefa de construir partidos revolucionários.

No Brasil, a corrente lambertista existe, de distintas formas, desde o final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Após muito sectarismo contra a política de se somar ao PT, os lambertistas integraram o partido. Porém, rapidamente, uma expressiva ala de sua direção e de seus quadros se diluiu no campo majoritário do PT, a Articulação. Nos anos 1990, eles se mantiveram na esquerda petista, muitas vezes com linhas bem autoproclamatórias. Porém, nas últimas décadas, a corrente O Trabalho tornou-se um satélite integral do campo majoritário e fiel defensora da política petista e lulista. No máximo, em alguns momentos, esboçaram o papel de uma “conselheira de esquerda”, com algumas de suas consignas/sugestões: “Dilma faça isso”, “Lula faça aquilo”. Foram defensores entusiastas do chavismo e defensores do governo Maduro. Atualmente, seguem militando no interior da frente ampla de Lula/Alckmin.

Sem dúvida, é necessário analisar os erros lambertistas para não repetí-los, sobretudo porque esse tipo de revisionismo camuflava suas posições oportunistas com um verniz marxista. Nesse sentido, a batalha da corrente morenista contra a política da OCI na França é um importante material para enriquecer nossa bagagem programática para as lutas atuais contra a extrema direita e pela independência política da classe trabalhadora.

 

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