Texto 7: A luta de Trotsky contra a frente popular na França e Espanha

Henrique Lignani, CST Rio de Janeiro

No presente texto, vamos abordar algumas das consequências práticas da política imposta pela IC, por Stalin e por Dimitrov após 1935, ou seja, situações concretas em que os Partidos Comunistas atuaram como um braço da burguesia na sustentação do regime capitalista. Os casos da França e da Espanha, ainda na década de 1930, são dois dos mais emblemáticos.

A Frente Popular na França 

A França foi um dos primeiros laboratórios da política de Frente Popular, antes mesmo da guinada ditada pela IC. Em 1934, a direção stalinista da Internacional ainda seguia a linha do chamado “terceiro período”, pela qual recusava a unidade de ação com as correntes operárias reformistas contra o fascismo. No ano anterior, Hitler já havia chegado ao poder na Alemanha, ajudado justamente por essa política da IC; em fevereiro daquele ano de 1934, na França, movimentos fascistas se articularam e promoveram uma tentativa de golpe, em um episódio que acabou com 12 mortos, mais de 200 feridos e a demissão do governo então existente (BROUÉ, 2007). Em seu lugar, subiu um governo liderado por Doumergue e caracterizado por Trotsky como bonapartista. É nesse cenário que ações em comum entre o PCF e o SFIO (partido da socialdemocracia na França) se impõem pela base, culminando em um chamado de greve geral.

Enquanto tal cenário se desenrolava na França, em 1935 foi realizado o já mencionado VII Congresso da IC, que sob o pretexto de “combater o fascismo” adotam uma linha oportunista de colaboração de classes para os PC’s ao redor do mundo (ver o último texto deste especial). Para o PC Francês, a Frente Popular vai se traduzir na formalização de uma aliança não apenas com a socialdemocracia, mas com o Partido Radical, um partido republicano e liberal. O argumento apresentado era de que se tratava de uma “aliança com as classes médias”, o que ocultava que tal partido tinha um caráter de classe burguês. De acordo com a definição de Trotsky, “os radicais são o partido democrático do imperialismo francês” (TROTSKY, 1936a).

A aliança entre comunistas, socialistas e radicais na França se apresentou para as disputas eleitorais no ano de 1936. O contexto, porém, era de acirramento da luta de classes. Ao mesmo tempo em que havia grupos armados de inspiração fascista, greves operárias aconteciam e ultrapassavam os limites das suas direções, fossem ligadas ao PCF ou à socialdemocracia. Sequer a vitória eleitoral da Frente Popular e a constituição do governo do socialista Leon Blum foram capazes de frear o movimento operário. O historiador Pierre Broué descreve essa onda grevista como sendo “única na história”, até aquele momento, e que o “movimento, escapando ao controle das organizações sindicais, causava medo, pois ele podia anunciar o começo de uma revolução, um espectro que todos tentavam conjurar” (BROUÉ, 2007).

Ainda segundo Broué, naquele contexto “o PC tem que fazer uma escolha: se ele continuasse a acompanhar e a apoiar os grevistas e suas reivindicações, ele avançaria demais, separar-se-ia do governo e dos radicais na Frente Popular” (BROUÉ, 2007). A resolução adotada pelo Comitê Central do partido não deixa dúvidas a respeito da opção escolhida pelos stalinistas: “O PC, consciente de suas responsabilidades, tomou corajosamente assim posição sem temer enfrentar às gesticulações histéricas dos trotskistas e trotskisantes […]. Tudo não é possível; a palavra de ordem capital do partido continua: ‘Tudo para a Frente Popular! Tudo através da Frente Popular!’” (citado por BROUÉ, 2007).

Dessa forma, portanto, a política stalinista empreendida pelo PCF levou o partido a puxar o freio das lutas e greves que se desenvolviam. Não à toa, Albert Sarraut, o primeiro-ministro burguês que antecedeu Leon Blum, definiu a Frente Popular como “uma válvula de segurança do regime” contra o movimento de massas. De fato, foi o que se viu na prática, quando a linha de conciliação de classes levando ao refluxo do movimento grevista. Nas palavras de Trotsky, “os chefes socialistas e comunistas não só se negam a realizar a mobilização revolucionária do proletariado como se opõem a ela com todas as suas forças. Ao mesmo tempo em que confraternizam com a burguesia acossam e expulsam os bolcheviques. Tal é a violência do seu ódio à revolução e do medo que ela lhes inspira!” (TROTSKY, 1936a).

Os stalinistas tentavam justificar seu giro brusco para a conciliação de classes de todas as formas. Trotsky em seu texto “França na encruzilhada”, em março de 1926, em contraponto afirmava “Ainda que seja difícil acreditar, alguns cínicos tratam de justificar a política da Frente Popular fazendo referência a Lênin que, segundo parece, mostrou que não se pode prescindir de “compromissos” e, especialmente, de acordos com outros partidos. Para os atuais chefes da Internacional Comunista, ultrajar Lenin se tornou uma regra: espezinham a doutrina do fundador do partido bolchevique e em seguida vão prostrar-se diante do seu mausoléu, em Moscou… Os senhores falsificadores poderiam indicar em que fase, em que momentos e em que circunstâncias o partido bolchevique realizou na Rússia algo semelhante à Frente Popular? Que façam trabalhar suas meninges e pesquisem nos documentos históricos!

Os bolcheviques realizaram acordos práticos com as organizações revolucionárias pequeno-burguesas para o transporte clandestino de publicações revolucionárias e, algumas vezes, para a organização comum de uma manifestação, ou para responder aos grupos de “pogromistas”. Quando das eleições para a Duma, recorreram, em certas circunstâncias e no segundo grau, à blocos eleitorais com os mencheviques ou com os socialistas revolucionários. Isso é tudo. Nem “programas” comuns, nem organismos permanentes, nem renúncia a criticar os aliados circunstanciais. Este tipo de acordos e compromissos episódicos, estritamente limitados a objetivos precisos – os únicos que Lenin tomava em consideração – nada tinham em comum com a Frente Popular, que representa um conglomerado de organizações heterogêneas, uma aliança duradoura de classes diferentes ligadas para todo um período – e que período! – por uma política e um programa comum: por uma política de ostentação, de declamação e de poeira nos olhos. Na primeira prova séria, a Frente Popular vai se romper e todas as suas partes constituintes sairão com profundas rachaduras. A política da Frente Popular é uma política de traição. A regra do bolchevismo, no que se referia aos blocos, era a seguinte: Marchar separados, vencer juntos! A regra dos atuais chefes da Internacional Comunista é: Marchar juntos para ser derrotado separadamente. Que esses senhores se aferrem a Stalin e Dimitrov, mas que deixem Lenin em paz”. A citação é longa, mas define muito bem as diferenças entre Trotsky e os dirigentes do Partido Comunista e da IC.

A “frente popular de combate” 

Em meio a esse cenário, surgiu uma tendência à esquerda dentro do SFIO, nomeada Esquerda Revolucionária e liderada por Marceau Pivert. Em alguma medida, essa corrente se posicionava de forma crítica à Frente Popular e ao governo Blum, ao mesmo tempo em que defendia o avanço das lutas operárias. Nesse sentido, Pivert lançou a tática que batizou de “frente popular de combate”, que “consistia em conformar uma frente com as bases dos partidos operários, para pressionar seus dirigentes traidores para uma política ‘revolucionária’” (MORENO, 1982). Havia pressão para que a Esquerda Revolucionária aderisse à Frente Popular, de forma que, apesar das críticas, esse grupo nunca chegou a romper com o governo Blum, uma vez que isso levaria a um “isolamento em relação às massas”. Nas palavras de Nahuel Moreno, “este argumento de ‘não se isolar das massas’ […] é o argumento típico usado pelos centristas e inclusive pelos revolucionários que capitulam diante da Frente Popular” (MORENO, 1982).

O caso da Revolução Espanhola 

Na década de 1930, a situação na Espanha também se polarizava. Em 1931, com a queda da ditadura de Primo de Rivera, houve a instalação da Segunda República Espanhola, governada por republicanos e socialistas. A instabilidade do regime se acentuava, com tentativas de golpe por parte da direita e radicalização do discurso dos socialistas, em especial da Juventude Socialista.

Em 1934, a mobilização da classe operária produziu o chamado Outubro espanhol. Uma Aliança Operária entre a União Geral de Trabalhadores (UGT), dirigida pelos socialistas, e a Confederação Nacional do Trabalho (CNT), liderada por anarquistas, realizou uma tentativa de insurreição em alguns pontos do país, chegando a combater durante dias na região das Astúrias, ao Norte. O levante, porém, fracassou, resultando na prisão de cerca de 30 mil militantes. Na ocasião, o PC stalinista ainda seguia a orientação do “terceiro período”, rejeitando a unidade de ação com a socialdemocracia, considerada “irmã gêmea do fascismo”.

É esse o contexto em que se aproximaram as eleições de 1936, na qual surge a versão espanhola da Frente Popular. Formada pela aliança entre o PC (já guiado pelas orientações do VII Congresso da IC), o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE, socialdemocrata) e setores republicanos burgueses, a Frente Popular vence as eleições e dá origem a um governo composto pelos setores republicanos e apoiado pelos socialistas e comunistas, com um programa bastante moderado. De qualquer forma, a situação seguia instável: as forças da direita e da extrema direita, contando inclusive com grupos de inspiração fascista, se aglutinavam em torno de uma conspiração golpista; ao mesmo tempo, os trabalhadores se organizavam para garantir o programa da Frente Popular por meio de sua própria ação, mesmo nos pontos mais básicos, como a anistia para os presos de outubro de 1934.

O governo, por sua vez, fechou os olhos para a conspiração da direita e buscou frear o ímpeto dos trabalhadores. O papel do stalinismo nesse processo, por exemplo, é indicado por Pierre Broué: “Durante todo esse período, o Partido Comunista fez uma política resolutamente moderada, para não dizer moderantista, insistindo somente na necessidade de controlar o governo. […] Em outras palavras, ele começa a se engajar claramente contra as greves inspiradas pela CNT e aquelas que têm um caráter que ele julga revolucionário. Ele embrenha-se ao mesmo tempo em furiosos ataques contra ‘os trotskistas’ em geral” (BROUÉ, 2007).

Com o avanço do golpe por parte da extrema direita, em julho de 1936, teve início a Guerra Civil Espanhola. A resistência dos trabalhadores espanhóis contra o golpe se desenvolveu por meio da formação de milícias armadas e comitês operários. Em alguns locais, os comitês operários se transformaram em comitês de governo, com representantes eleitos em assembleia, e tomaram medidas como o controle dos preços e a expropriação dos bens da Igreja e dos latifundiários. Em outras palavras, estabeleciam-se organismos de duplo poder. A única força capaz de se contrapor ao avanço da extrema direita era a classe trabalhadora organizada e armada. Porém, devido aos seus compromissos com o governo da Frente Popular, os stalinistas, bem como os outros setores da esquerda, como socialistas e anarquistas, boicotaram esses organismos, abrindo o caminho para a ascensão do general Franco ao poder.

Uma aliança com a “sombra da burguesia”  

A traição operada pelas direções na Revolução Espanhola tem como base a estratégia desenvolvida pelo stalinismo no período. Trotsky definiu a questão da seguinte forma: “De acordo com as concepções dos socialistas e dos stalinistas, ou seja, dos mencheviques da primeira e da segunda hora, a revolução espanhola não iria resolver mais que tarefas democráticas; esta é a razão pela qual era necessário construir uma frente única com a ‘burguesia democrática’. Desse ponto de vista, toda tentativa do proletariado de sair dos canais da democracia burguesa era, não só prematura, mas inclusive funesta” (TROTSKY, 1937). Portanto, foi a concepção etapista, isto é, a ideia de que a revolução socialista se desenvolveria em etapas, primeiro, democrático burguesa, e, só depois, socialista, o que conduziu as direções do movimento de massas a adotarem uma política de conciliação de classes com setores da burguesia, entendendo que esses seriam aliados na “primeira etapa da revolução”.

Trotsky chama a atenção para o fato de que a Frente Popular no caso espanhol, ao contrário de outros exemplos, pôde se realizar mesmo sem uma presença efetiva da burguesia. Uma vez que a burguesia espanhola compreendeu que a classe trabalhadora mobilizada contra Franco não estacionaria a sua luta com a derrota do fascismo, mas avançaria contra a propriedade privada, ela se unificou majoritariamente à direita. Por sua vez, a Frente Popular contava apenas com a “sombra da burguesia”, representada pela política levada a cabo pelos stalinistas e socialistas. Na medida em que afirmavam de antemão o caráter apenas democrático da revolução e buscavam uma conciliação com setores burgueses, freando os trabalhadores dentro dos marcos do regime, essas direções, por si só, já representavam o caráter burguês da Frente Popular.

O “flanco esquerdo da Frente Popular” 

Além de comunistas/stalinistas, socialistas/socialdemocratas e anarquista, havia um outro grupo na esquerda espanhola durante a revolução: o Partido Operário de Unificação Marxista (POUM). Formado por “comunistas de esquerda” e outros grupos dissidentes, o POUM chegou a ter relações com os trotskistas, sendo muitas vezes acusado de trotskismo pelo PC. Porém, o próprio Trotsky foi muito crítico quanto a atuação desse partido, que acabou capitulando à Frente Popular.

Segundo Trotsky, “em vez de mobilizar as massas contra os dirigentes reformistas, incluídos os anarquistas, o POUM tentava convencer esses senhores acerca das vantagens do socialismo sobre o capitalismo” (TROTSKY, 1937). Apesar de fazer críticas à Frente Popular, o POUM buscava pressioná-la a esquerda, evitando um rompimento com as suas direções. O resultado foi a sua localização à reboque dos stalinistas e socialistas, portanto, à reboque da “burguesia democrática”.

Esse caráter centrista do POUM, que oscilava entre posições revolucionárias e reformistas, acabou sendo um obstáculo para a construção de uma direção revolucionária na Espanha: “isolando a vanguarda revolucionária da classe, o POUM enfraqueceu a vanguarda, deixando as massas sem direção” (TROTSKY, 1937).

 

Algumas lições 

Os dois exemplos analisados acima nos permitem perceber os impactos da linha stalinista de frente popular em duas situações históricas. Em ambos os casos, o resultado foi desastroso para a classe trabalhadora. Ao mesmo tempo em que a política de conciliação de classes adotada pelo stalinismo (no que tiveram o auxílio da socialdemocracia e de outras correntes reformistas) levou à formação de governos em comum com a burguesia, a sua contrapartida foi a sabotagem das mobilizações independentes do proletariado. A burocracia stalinista e seus aliados em cada país se esforçaram para manter o movimento de massas dentro dos marcos do regime burguês. Dessa forma, situações revolucionárias que estavam abertas, como nos casos da França e da Espanha, foram desperdiçadas pelo fato de não haver uma direção revolucionária à frente da classe trabalhadora. O stalinismo atuou de forma contrarrevolucionária, fazendo retroceder a revolução socialista mundial, o que nos deixa uma lição que segue viva até os dias de hoje: é preciso construir direções revolucionárias, para que oportunidades como essas não sejam novamente perdidas.

 

Referências:

Pierre Broué. História da Internacional Comunista. São Paulo: Editora Sundermann, 2007.

Nahuel Moreno. La traición de la OCI. 1982. Disponível em http://www.nahuelmoreno.org/escritos/la-traicion-de-la-oci-1982.pdf

Leon Trotsky. Aonde vai a França?. 1934. Disponível em https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1934/franca/index.htm

_____. A traição do “Partido Operário de Unificação Marxista” espanhol. 1936a. Disponível em https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1936/01/22.htm

_____. A França na encruzilhada. 1936b. Disponível em https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1936/03/28.htm

_____. Lección de España; última advertência. 1937. Disponível em https://ceip.org.ar/Leccion-de-Espana-ultima-advertencia

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