NICARÁGUA | A resistência do povo trabalhador nicaraguense continua
Por “Voz de los Trabajadores
Tradução: Caio Barros
Entrevistamos a jornalista nicaraguense Fabiola Tercero sobre a situação atual no país centro-americano
O governo da Nicarágua realizou atos multitudinários em plena pandemia e declarações nas quais deu pouca importância à situação sanitária. Qual é a situação atualmente?
Diante da pandemia de COVID-19, que afetou todo o mundo, a Nicarágua não escapa desta situação. A gestão do regime de Ortega-Murillo foi deficiente, priorizando o econômico sobre a vida das e dos nicaraguenses. Ortega, nos primeiros meses de pandemia, foi um mandatário ausente, somente Rosário Murillo que aparece todos os dias em sua casa e o ministro da saúde de plantão, lembrando que se trocou o ministro da saúde duas vezes durante a pandemia. No início da pandemia, autoridades do governo como os deputados sandinistas debochavam dos deputados opositores por usarem máscaras e insultavam as pessoas que as usavam para, supostamente, alarmar a população.
William Grisby, um jornalista oficialista, comentou em seu programa de rádio que a doença do coronavírus só acomete os ricos. O regime continuou realizando eventos públicos, feiras, concursos, corridas de moto, entre outros eventos, com o objetivo de reativar a economia do país.
A negligência do governo e das autoridades sanitárias chegou ao ponto de não suspender as aulas da educação básica e universitária públicas. Depois da pressão massiva feita pelas mães e pelos pais de alunos, que não mandaram seus filhos para as aulas, o governo finalmente se viu obrigado a suspender as aulas durante um tempo e continua-las de maneira televisionada através do canal 6, que é o canal público do país.
Em seguida, as aulas foram retomadas, mas com medidas preventivas, como uso de máscara e distanciamento, que não haviam sido adotadas no início da pandemia, tanto nas escolas como nas universidades públicas.
Escolas e universidades privadas e subsidiadas, no entanto, tem seus prédios fechados, em setembro voltam às aulas os universitários da Universidade Centro-Americana (UCA) com a modalidade presencial e virtual, esta última já aplicada nos último meses. A UCA segue sendo uma trincheira de luta e manifestações de estudantes apesar do assédio e vigilância policial e paramilitar permanente.
Não se sabe exatamente quantos testes de COVID-19 foram realizados pelas autoridades do Ministério da Saúde, quantas pessoas morreram, quantos se recuperaram. O segredo é uma característica do regime. Segundo dados que o Ministério da Saúde torna público semanalmente, são 4311 casos de COVID-19 e 133 mortos. Dados do Observatório Cidadão, ao qual integram especialistas em saúde, desmentem os dados oficiais. Calculam aproximadamente 9.683 casos de contágio e mais de 2.590 mortos. O Ministério da Saúde é o único autorizado a realizar testes de diagnóstico da doença, os laboratórios privados não podem realizar-los.
Até agora 104 trabalhadores da saúde e 44 professores morreram na Nicarágua com sintomas relacionados à COVID-19, segundo dados dos sindicatos de médicos e de professores. A maioria das mortes foram registradas como “pneumonia atípica”. Também foram realizados numerosos enterros expressos a noite.
Na Nicarágua existem 77 hospitais públicos, 18 construídos nos últimos 12 anos, com 36.649 trabalhadores da saúde. Há uma capacidade de leitos hospitalares em geral de 11.732, sendo 562 leitos de UTI, 449 ventiladores, 954 monitores de sinais vitais e 574 succionadores. 18 hospitais foram habilitados para atender pacientes de COVID-19 e existem 6 hospitais em construção. Esses dados são oferecidos pelo Ministério da Saúde e aparecem na propaganda oficialista para desmentir as denúncias da população nicaraguense. Os hospitais públicos funcionam de forma gratuita, porém existem serviços médicos que estão sendo cobrados, com taxas muito altas. No dia 17 de julho as autoridades de saúde do país começaram a cobrar por testes de COVID-19 a quem viaja para fora, no valor equivalente a 150 dólares, o mais alto da região centro-americana. Por exemplo, na Costa Rica custa 50 dólares. Também vão começar a cobrar 30 dólares pela vacina da febre amarela.
O regime de Ortega e Murillo receberam doações para insumos de saúde do BCIE (Banco Centro-Americano de Integração Econômica), SICA (Sistema de Integração Centro-Americana) e dos governos da Índia e Taiwan, mas em nenhum momento informou como vai distribuir esses insumos nos hospitais do país.
Qual foi o impacto econômico e social da crise para o povo trabalhador?
Com a crise sócio-política de 2018, o crescimento econômico estancou e cresceu o desemprego, que já era alto. Com essa nova crise, alguns negócios que haviam sobrevivido não aguentaram mais e fecharam, a maioria pequenas e médias empresas. Também houve fechamento de zonas francas, gerando 9 mil desempregados e desempregadas. Alguns mantiveram o trabalho, mas trabalham as vezes 12 ou 14 horas com salários de miséria, metade do salário mínimo, o equivalente a 3 mil córdobas, menos de 100 dólares. A cesta básica hoje em dia custa 16 mil córdobas, aproximadamente 450 dólares.
Segundo informações de meios independentes, as demissões nas zonas francas são, em sua maioria, de pessoas de mais de 40 anos. Muitos com doenças crônicas e que sofreram acidentes de trabalho.
A Fundação Nicaraguense para o Desenvolvimento Econômico e Social (FUNIDES), projetava em abril do ano passado que este ano o PIB teria uma contração entre 6,5% e 13,7%. FUNIDES projeta que 123 mil trabalhadores vão ficar desempregados esse ano nos setores de turismo, comercial e nas zonas francas. O desemprego que foi de 6,6% em 2019 poderia aumentar esse ano para 9,3%. Se somam as sanções do governo dos Estados Unidos a funcionários do regime de Ortega-Murillo que, apesar de serem individuais, incidem nos investimentos. Muitas pessoas consideram que essas sanções no fim das contas afetam mais o povo da Nicarágua do que propriamente os sancionados.
Vejo como espelho a Venezuela, onde o governo dos Estados Unidos aplicou sanções financeiras e petroleiras das quais o mais afetado é o povo venezuelano, que agora é o segundo país mais pobre da região da América Latina. Tenho medo que cheguemos a esse ponto.
Muitos meninos e meninas não conseguem terminar seus estudos porque seus pais foram demitidos e não podem cobrir os gastos da universidade. As universidades públicas estão sob o controle do regime, em conjunto com seu braço estudantil da União Nacional de Estudantes da Nicarágua (UNEN), que nasceu nos anos 1980 no seio da FSLN.
Ainda que o regime diga tudo ao contrário, que o país avança pouco a pouco, o custo de vida sobre a cada dia, o custo da energia elétrica e dos serviços públicos. O que a maioria faz ao não ter emprego fixo é “empreender”, que seria uma forma de sobreviver trabalhando por conta própria vendendo comida, vendendo nos semáforos, e também alguns tocando e cantando nos transportes públicos.
Há uma crise na fronteira com a Costa Rica, se impede nicaraguenses de retornar a seu país. A que deve essa situação?
A migração de nicaraguenses tem existido há muitas décadas, seja por motivos econômicos, sociais ou outros. Nas últimas décadas aumentou diante da falta de oportunidades que existem no país, depois que se instaurou a crise sócio-política muitos se viram obrigados a migrar rumo países vizinhos da região, seja Costa Rica ou Panamá, porque estavam sendo perseguidos pelo regime por participar da insurreição de Abril. Nesse contexto de pandemia, muitos perderam o emprego que tinham em outros países, e então decidiram voltar a Nicarágua.
As autoridades tem sido indolentes com os nicaraguenses que querem. Para entrar no país por Peñas Blancas, fronteira com a Costa Rica, é necessário apresentar um teste de COVID-19 negativo, mas as autoridades cobram 150 dólares por ele, o que muitos não podem pagar. As pessoas foram se acumulando na fronteira, somando aproximadamente 500, finalmente as autoridades da Costa Rica e organizações civis apoiaram as pessoas para que pudessem realizar os testes. Mas enquanto esperavam para entrar no país, sofreram com a chuva ao ar livre e intimidação por parte da polícia nicaraguense, porque a imprensa se deslocou até a fronteira para entrevistar em primeira mão os migrantes.
Nesse cenário de pandemia, os imigrantes nicaraguenses foram objeto de xenofobia por parte das autoridades e meios de comunicação costarriquenhos que responsabilizavam os nicaraguenses pela extensão do coronavírus dada a negligência do governo da Nicarágua em prevenção ao contágio. Na Costa Rica existem aproximadamentes 80 mil exilados.
Por outro lado, enquanto no início da pandemia as autoridades nicaraguenses recebiam de braços abertos turistas de cruzeiros internacionais, os migrantes que desejavam chegar aos Estados Unidos viram seus sonhos destruídos e em muitos casos foram detidos na fronteira com a Nicarágua, enquanto em outros países eles foram autorizados a cruzar suas fronteiras.
Quais são os interesses que estão por trás dos ataques do governo e seus paramilitares contra os indígenas misquitos?
Os territórios indígenas do Caribe desde sempre foram saqueados por cada governo de plantão, por conta da grande riqueza de recursos naturais, como madeira e ouro. Mas quando o regime de Ortega entrou, deu luz verde aos colonos, pessoas que não são do território caribenho, mas sim camponeses ou do Pacífico, para entrar no território e deslocar violentamente os indígenas ou matá-los para manter seu território.
A Costa do Caribe tem duas grandes reservas naturais, a Reserva Indio Maíz e Basawás. Pouco a pouco esses lugares foram desflorestados indiscriminadamente por colonos e pelo Exército da Nicarágua, em conjunto com o Ministério do Meio Ambiente e as autoridades florestais, que concedem licenças para cortar as árvores e retirar a madeira dessas reservas. Para Ortega, este tem sido um negócio muito lucrativo para os seus próximos. A mineração de colonos e empresas transnacionais tem sido causa de violência e deslocamento de comunidades indígenas. Os indígenas tiveram que fugir para a parte norte do país, na fronteira com Honduras, são mais de 3.000 indígenas deslocados, segundo relatórios do CEJUDHCAN, segundo outras organizações há uma subnotificação e esse número é maior. Das 304 comunidades espalhadas pelos territórios indígenas e afrodescendentes da Costa do Caribe, quase todas sofrem com a incursão de colonos.
A violência contra as comunidades indígenas inclui pessoas mutiladas, desaparecimentos forçados e violência sexual contra mulheres e jovens. Há uma máfia de advogados e tabeliães que vendem esses territórios a colonos com vista grossa do regime, os territórios indígenas ancestrais não podem ser vendidos de acordo com a lei nicaraguense. Com a pandemia, outro problema é agravado: o abandono dos indígenas pelas autoridades, fazendo com que passem fome e sofram mais miséria.
O que você opina sobre a forma que meios de comunicação como Telesur e setores chavistas e stalinistas apresentam a realidade nicaraguense?
A Telesur trata de limpar a cara do regime Ortega-Murillo, apresentam o que aconteceu em 2018 como um “golpe suave” ou uma tentativa de golpe e colocam toda a culpa na direita e no império ianque. O discurso que repetem constantemente, inclusive durante a pandemia, é que os unicos culpados são os gringos. Tanto Telesur como os meio oficiais nacionais fazem o possível para transmitir uma imagem positiva e que o “socialismo do século XXI” é o melhor que já aconteceu na Nicarágua. Ambos decidiram bombardear as redes sociais que antes da explosão social este era um lugar sem problemas nem conflitos. Na realidade, Nicarágua não é um país socialista, mas sim capitalista, como já expliquei. Inclusive tem um tratado de livre comércio com os EUA.
O regime de Ortega-Murillo investiu para criar plataformas virtuais para chegar a mais gente, nacional e internacionalmente, e desde então fizeram várias montagens de vídeo para atacar a luta de 2018.
A oposição tradicional se prepara para as eleições que o regime está organizando, algo que setores da juventude criticam. Que iniciativas são impulsionadas pelos setores combativos do povo trabalhador?
Em fevereiro deste ano surgiu a ideia de realizar uma grande Coalizão Nacional, que se concretizou com partidos e organizações da sociedade civil como a Unidade Azul e Branca e a Aliança Cívica, para formar um único bloco eleitoral. Nos últimos meses, os partidos políticos tradicionais tiveram vários atritos com organizações da sociedade civil, partidos como o Partido Liberal Constitucionalista (PLC), que concordou em 1998 com Daniel Ortega, estão capitulando diante da convocação para as eleições presidenciais do ano 2021, sem exigir condições. O PLC também tem conflitos internos, pelo fato de Arnoldo Alemán ter escolhido Rosales como presidente da bancada. O partido de direita Cidadãos pela Liberdade (CxL) não quer fazer parte da Coligação porque dizem que a maioria tem ideias de esquerda, este partido quer eliminar tudo o que cheira a esquerda ou a socialismo.
Os jovens, especificamente do setor estudantil universitário, exige mais espaços na Coalizão, mas os partidos políticos sempre os afastam de qualquer decisão importante, como forma de evitar que ganhem destaque as demandas mais sinceras do povo, visto que esses partidos são representantes do empresariado, que sempre pactuou com todos os governos. A Coalizão não apresentou um plano de governo ao povo nicaraguense, as eleições se aproximam e na realidade o povo está cansado de esperar e de tantas declarações que não dizem nada. Muitos jovens lembram o papel que esses setores da oposição tiveram ao trair a luta de 2018 para negociar com o governo.
Por outro lado, mantém-se a Articulação dos Movimentos Sociais com o objetivo principal de libertação dos presos políticos, reformas eleitorais e salvaguarda dos exilados, evidenciando as dificuldades que os migrantes têm na Costa Rica. O Movimento Feminista mantém a sua luta há muitos anos e continua denunciando todas as violações dos direitos humanos pelo regime de Ortega-Murillo, são as que levantam a voz para dizer que sem a libertação das e dos presos políticos não pode haver eleições. Um setor da população nicaraguense não quer eleições com Ortega. “Não se pode ir às eleições com um assassino” é uma das palavras de ordem que circulam nas redes sociais.
Enquanto os partidos e movimentos continuam discutindo, o regime continua perseguindo ativistas, estudantes e ex-presos políticos. Os sequestros e prisões continuam, sob a acusação de crimes comuns. Não há justiça para as mães cujos filhos foram assassinados. Ortega continua matando os camponeses, os povos indígenas do Caribe, tirando seus territórios. As igrejas foram se tornando os únicos locais seguros onde se pode protestar, pois o regime proibiu manifestações nas ruas e quem tenta fica exposto a ataques físicos e prisões arbitrárias. Por esse motivo, nos últimos meses, houve ataques a templos por partidários do governo. Em 31 de julho, a Catedral de Manágua sofreu um atentado.
Os sindicatos que existem na Nicarágua, como a Central Sandinista de Trabalhadores e a FNT, nasceram sob a bandeira da FSLN, foram os que protestaram nos 16 anos de governos neoliberais contra as violações dos direitos dos trabalhadores. Quando a Frente Sandinista chegou ao poder, esses dirigentes sindicais permaneceram calados e fizeram pactos com o governo e os patrões em acordos tripartites, deixando os trabalhadores indefesos. Há dois anos o salário mínimo está congelado por esse acordo tripartite que beneficia o sindicato empresarial, supostamente opositor ao governo.
O único movimento que tem sido combativo e defensor dos direitos dos trabalhadores é o Movimento dos Trabalhadores e Desempregados María Elena Cuadra. Esse movimento apoiou a insurreição de abril de 2018, se juntando à juventude nicaraguense. A unidade dos trabalhadores e setores populares é necessária para alcançar a queda da ditadura por meio da mobilização.