LÍBANO | A explosão de Beirute provoca uma nova rebelião popular

Por Görkem Duru, dirigente da UIT-QI, Turquia, 17 de agosto de 2020
Tradução: Lucas Schlabendorff


No Líbano, onde se sofre a mais profunda crise econômica de sua história, a dantesca explosão no porto de Beirute, no dia 4 de agosto, revelou a fúria incontrolável das massas. A explosão de 2.750 toneladas de nitrato de amônio, que estavam guardadas em um depósito desde 2013, no porto mais importante do país, causou 200 mortos, 5 mil feridos e deixou quase 300 mil libaneses sem lar. Esses números revelam o nível da destruição e, quando a combinamos com as consequências econômicas e sociais a médio e longo prazo, entendemos a situação desesperadora da classe trabalhadora libanesa.

Por um lado, o governo prometeu que uma comissão seria formada para identificar os culpados, em uma tentativa de evitar que a indignação pela explosão se dirigisse contra eles. Por outro lado, declarou o estado de emergência e tratou de intimidar as massas, outorgando poderes extraordinários ao exército nas ruas de Beirute. No entanto, aos olhos da classe trabalhadora libanesa, os responsáveis pela explosão são óbvios, e as massas se recusam a abandonar as ruas, cantando “queremos que o regime caia”. No sexto dia de protestos, o governo de Hasan Diyab teve que renunciar depois de muitos de seus ministros terem feito o mesmo. Em outras palavras, o governo de tecnocratas com tendências democráticas reacionárias, que assumiu no dia 21 de janeiro de 2020, como resultado da queda do governo de Saad Hariri pelas mãos da chamada “Revolução de 17 de outubro” (o governo de Hariri renunciou em 29 de outubro de 2019), foi forçado a abandonar o seu posto após seis meses, sob pressão das massas mobilizadas.

As massas conquistaram uma vitória significativa, forçando o governo a renunciar. No entanto, quando Diyab apresentou sua renúncia, anunciou que o país teria eleições antecipadas dentro de dois meses. O capitalismo libanês, que está à beira do colapso, tratou de esconder-se atrás do governo de Diyab para se salvar e manter vivo o regime corrupto, degenerado e sectário.

 

Regime degenerado, capitalismo podre

A explosão no porto de Beirute é um exemplo suficiente para revelar a profundidade da corrupção e a decadência do país. O fato de que 2.750 toneladas de nitrato de amônio estavam armazenadas no porto por mais de seis anos, e que não se tomaram medidas para transportá-las a algum outro lugar, apesar das várias advertências, é evidência de que a esfera de responsabilidade é muito mais ampla. E esta responsabilidade não pode ser reduzida apenas ao nível individual, dando a entender que foi resultado da “negligência” ou da “incompetência” de um ou de outro gerente. O que está diante de nós é a brutal e exploradora ordem capitalista que prioriza o lucro acima da vida humana, assim como os líderes libaneses sectários em seu conjunto que representam essa ordem. Esses representantes são os que estabeleceram, em cooperação com o imperialismo, uma ordem clientelista e sectária e a chamada “Suíça do Oriente Médio”. Foram eles que cortaram o acesso do povo libanês a muitos serviços públicos através das políticas neoliberais e privatizações, e multiplicaram os seus próprios benefícios se convertendo em acionistas dos bancos do país, e também restringiram o acesso dos trabalhadores ao seu dinheiro que estava nos bancos durante a crise econômica, ao mesmo tempo que tentavam contrabandear suas próprias riquezas ao estrangeiro…

Desde 2019, os trabalhadores libaneses estavam lutando contra uma profunda crise econômica. O que iniciou o processo revolucionário no país, em outubro de 2019, foi a negativa das massas em pagar o custo da crise; fizeram sua aparição no cenário político com o desejo de se opor às políticas de austeridade. A crise se aprofundou ainda mais com a pandemia da Covid-19. Quando a dívida externa do país alcançou os 92 milhões de dólares, correspondentes a 170% do PIB do país, o governo anunciou a moratória em março. Os bancos restringiram o acesso dos trabalhadores ao seu próprio dinheiro que estava nas contas bancárias. A taxa de inflação subiu até 400%, destruindo o poder aquisitivo do povo libanês. Quase 55% da população em idade de trabalhar está atualmente desempregada, enquanto que cerca de 60% da população total vive abaixo da linha da pobreza. Se antes já existiam graves deficiências no acesso dos trabalhadores aos recursos básicos como eletricidade e água potável, a crise que se aprofundou com a pandemia provocou a aparição de novas dificuldades para acessar outros artigos vitais, como o trigo e os medicamentos.

É bastante óbvio que a explosão produzida neste contexto piora o estado das coisas no país devido às suas consequências econômicas e sociais. O principal porto do Líbano, que funciona com um modelo econômico baseado na importação no lugar da produção, está agora destruído; outros portos do país estão longe de poder levar o mesmo nível de capacidade comercial, já que o governo nunca realizou os investimentos necessários neles. Tendo em conta as dificuldades já existentes para acessar os produtos de primeira necessidade como o trigo e os medicantes antes da explosão, a destruição do armazém de trigo no porto de Beirute, junto com os graves danos sofridos nos hospitais mais importantes de Beirute como consequência da explosão, dará lugar a um possível surto de crise alimentícia e sanitária no país em um futuro breve, para além da pandemia em curso. Além disso, essas consequências se complicam ainda mais pelo fato de que mais de 300 mil libaneses ficaram sem lar e de que um número importante de edifícios da cidade foram derrubados ou ficaram gravemente danificados, o que revela o peso da carga tanto da crise econômica como da incapacidade do regime para governar.

O estado de coisas mencionado anteriormente é indicativo dos escombros capitalistas em que se converteu o país devido ao regime dependente do exterior e sectário construído no Líbano em associação com o imperialismo e o Irã (Hezbollah), como resultado do Acordo de Taif assinado em 1989 após a guerra civil que ocorreu no país entre 1975 e 1990. O regime que pretendia tornar invisíveis os conflitos de classe, baseado em fundamentos sectários a favor da exploração capitalista, fez com que os líderes e políticos sectários xiitas, sunitas ou cristãos se convertessem em notórios capitalistas, que seguiram aumentando a riqueza de suas fortunas e cujos nomes figuram nas listas dos 100 mais ricos do país, o que fez com que o véu sectário sumisse aos olhos dos trabalhadores.

A profunda crise social e econômica que o Líbano atravessa faz com que os abutres capitalistas imperialistas esfreguem as mãos com satisfação; por um lado, buscam garantir seus interesses mantendo vivo o regime, apesar das mobilizações das massas; por outro, se esforçam em aumentar seus benefícios participando da reconstrução de Beirute mediante a oferta de “pacotes de ajuda econômica” para amenizar o colapso causado pela crise econômica e a explosão. Em resumo, tratam de reforçar a dependência externa do país mediante o endividamento. A visita do presidente francês, Emmanuel Macron, no dia seguinte à explosão, é um exemplo deste plano.

As massas libanesas se mobilizaram mais uma vez contra a visita de Macron, sabendo que qualquer “pacote de ajuda econômica” externo seria lançado contra eles como um “plano de austeridade econômica”. Amalgamaram sua raiva contra a destruição da explosão com sua ira contra o colapso econômico e o regime sectário, clientelista e corrupto.

 

“Preparem a forca”

Como ocorreu no início do processo revolucionário que tem atravessado o Líbano, as massas se rebelaram mais uma vez contra a crise econômica e o regime para impulsionar suas demandas sociais e democráticas: “O povo quer que o regime caia!” “Fora todos os assassinos!”

Os trabalhadores se negaram a abandonar as ruas, apesar do governo ter concedido amplos poderes ao exército através da declaração do estado de emergência para reprimir o movimento de massas, e a dura interferência dos organismos encarregados de fazer cumprir a lei nos protestos utilizando gases lacrimogêneos, assim como balas de borracha e de verdade. Os trabalhadores libaneses se reuniram na Praça dos Mártires de Beirute no dia 8 de agosto, que foi declarado como o “dia da ira”. Levantaram a forca e levaram adiante ações simbólicas de enforcamento de políticos e exigiram que os responsáveis da explosão e do colapso econômico do país sejam julgados, ou seja, os representantes do regime sectário. As massas ocuparam os edifícios dos Ministérios de Energia, de Assuntos Exteriores e da Economia, assim como a sede da Associação Bancária do Líbano e vários bancos.

O governo de Diyab, que anunciou que se criaria uma comissão para investigar os responsáveis da explosão, também declarou que o país iria ter eleições antecipadas diante da pressão da opinião pública; no entanto, essa declaração não conseguiu convencer os trabalhadores libaneses a saírem das ruas. Enquanto continuavam as manifestações, os Ministros de Finanças, de Informação e de Meio Ambiente e Justiça se demitiram, e após isso o governo de Hasan Diyab também apresentou sua renúncia junto com a declaração de eleições antecipadas dentro de dois meses.

Após a renúncia do governo de Saad Hariri durante o processo da “Revolução de 17 de Outubro”, os capitalistas libaneses e os líderes sectários, cujo interesse é garantir a continuação do regime atual, haviam acordado em formar um governo tecnocrático dirigido por Hasan Diyab. O principal objetivo desses governantes era postergar as demandas de transformação econômica e social das massas, absorvendo algumas dessas demandas contra o regime através de acordos democráticos parciais dentro do sistema – por exemplo, a preparação de uma lei eleitoral mais democrática – com o fim de garantir a continuidade das políticas de exploração capitalistas.

Ainda que a aparição da pandemia da Covid-19 e a consequente retirada das massas das ruas tenham permitido ao governo de Diyab ganhar tempo para seguir adiante com seu plano, o agravamento das condições econômicas e sociais com a pandemia preparou o caminho para a volta da mobilização dos trabalhadores libaneses em abril. Os trabalhadores, que eram conscientes dos níveis de desemprego, das desigualdades na distribuição de renda e do alcance da corrupção na qual estavam envolvidos os representantes do regime sectário, viram que o que estava ocorrendo era um aprofundamento da crise em lugar de uma resolução de suas demandas básicas. Por isso, aceleraram a mobilização revolucionária, que se intensificou devido à destruição causada pela explosão e pôs fim ao governo de Diyab.

No entanto, os capitalistas libaneses e os líderes sectários tratam de manter o seu regime vivo em cooperação com o imperialismo, refugiando-se atrás do chamado de eleições antecipadas. Enquanto tentam fazer isso, os fatores mais fundamentais em que se apoiam são a pressão que buscam fazer sobre as massas utilizando o aparato estatal, os chamados reacionários democráticos como o “estabelecimento de um governo de unidade nacional”, assim como, e talvez o mais importante, a divisão sectária que segue existindo no país apesar de sua erosão devido às políticas de exploração capitalista.

Contra o chamado à celebração de eleições antecipadas, o fator mais decisivo na luta da classe trabalhadora libanesa, em direção à ruptura com o regime e as políticas de exploração capitalistas, é plantar e construir a unidade de classe dos trabalhadores, das mulheres, da juventude e dos oprimidos para se opor às diferenças sectárias que têm sido constantemente incentivadas pelo imperialismo e pelos governantes do país.

 

Fora todos! Não às eleições antecipadas! Por uma Assembleia Constituinte independente, livre e soberana!

A base para estabelecer esta unidade é a capacidade de continuar com as mobilizações contra todas as manobras que o imperialismo e os capitalistas libaneses possam aplicar para preservar o regime, e colocar em marcha organismos de auto-organização dentro da luta. As mobilizações têm se produzido de forma espontânea durante os últimos 10 meses e não pode falar ainda da aparição de tais organismos. Em outras palavras, a insurreição em curso está avançando sem direção, o que aponta a falta de presença de uma alternativa que possa conduzir a ruptura com o atual regime, apesar da luta determinante dos trabalhadores libaneses contra o colapso econômico e social.

Neste momento ímpar, é mais importante do que nunca que as massas e os socialistas libaneses estabeleçam órgãos de auto-organização e se organizem em torno de um programa de ação urgente, orientado para a ruptura com o regime e a ordem de exploração capitalista. Isto, se conquistado, seria um grande passo adiante no curso do processo revolucionário a favor de todos os explorados e oprimidos.

Este passo adiante poderia ter como objetivo a luta por eleições de uma Assembleia Constituinte independente, livre e soberana para se opor às manobras eleitorais às quais o establishment recorre para manter o regime vivo. Eles planejam novas eleições, nos marcos do velho regime, para que sigam as três frações burguesas no poder. A luta por uma Constituinte soberana seria a forma de apresentar uma ruptura com o regime sectário, degenerado e corrupto, assim como a ruptura com a Constituição que o sustenta; isso seria, de uma vez por todas, “que caiam todos”.

No caso de que a mobilização das massas libanesas desse um salto adiante com a exigência de uma Assembleia Constituinte independente, livre e soberana, se poderia discutir toda a reorganização do país. Os socialistas libaneses deveriam atuar nela, defendendo medidas de fundo em consonância com o eixo de ruptura com a política de exploração imperialista e capitalista. No caminho de um governo operário e popular que possa impor o não pagamento da dívida externa, a expropriação dos bancos e de todas as instituições públicas privatizadas, sem indenização, e o estabelecimento de uma economia central planificada.

À medida em que a pandemia da Covid-19 aprofunda a crise econômica, estamos atravessando tempos nos quais não há melhor definição do que a expressão “socialismo ou catástrofe” para se referir ao estado do nosso mundo. Se o levante dos trabalhadores libaneses puder criar uma alternativa ao seu regime e ao sistema capitalista de exploração nesta conjuntura mundial, daria um exemplo extremamente importante para todos os trabalhadores do mundo. O que nós, os revolucionários internacionalistas, devemos fazer neste momento é apoiar a luta contínua das massas libaneses no plano político e organizativo, assim como desenvolver formas de se solidarizar com ela.

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