ESTADOS UNIDOS | Angela Davis pede apoio para a chapa Biden-Harris
Por Vinny Grossman
Tradução: Lucas Schlabendorff
Muitos militantes, jovens e velhos, “coçam a cabeça” diante do recente apoio de Angela Davis à Kamala Harris. Davis disse que, ainda que considere problemáticas as posições políticas e os antecedentes de Harris, está emocionada que o candidato democrata a presidente, Joe Biden, tenha escolhido Harris como candidata à vice-presidência. Na verdade, segundo afirmou aos jornalistas da Reuters, a candidatura de Harris faz com que a campanha de Biden seja “mais aceitável”.
Referindo-se ao papel de Harris como procuradora-geral da Califórnia, Davis disse: “Não podemos esquecer que ela não se opôs à pena de morte e nem esquecer alguns dos problemas reais que estão associados com sua carreira como procuradora. Mas… faz parte de um enfoque feminista poder trabalhar com essas contradições. E assim, neste contexto, posso dizer que estou muito emocionada”.
Falando em um evento de arrecadação de fundos online, no dia 13 de agosto, Davis disse: “Acredito que, pelo fato de que Kamala Harris foi pressionada no passado – talvez não na direção correta –, ela pode ser suscetível ao tipo de pressão radical progressiva que podemos exercer no futuro”.
Mais uma vez podemos ver o velho argumento do “mal menor”, que está sendo utilizado para respaldar os candidatos de um dos dois principais partidos capitalistas dos EUA. Angela Davis tem chamado os trabalhadores e os oprimidos a apoiarem a chapa de Biden-Harris, citando a mera possibilidade de que Harris possa responder à futuras táticas de pressão “progressistas”. Mas devemos nos questionar: é realmente provável que Harris, contrariando o seu histórico, rompa com os grandes partidários capitalistas do Partido Democrata para avançar em uma direção significativamente mais “progressista”?
Os socialistas revolucionários, os militantes da classe trabalhadora e os ativistas estudantis possuem um grande respeito pelas contribuições que Angela Davis fez ao colocar em primeiro plano a experiência das mulheres negras na escravidão, no sistema segregacionista das leis Jim Crow e sob o complexo industrial de prisões. Seu trabalho abarca seis décadas e está marcado pela repressão policial, campanhas de defesa de presos políticos e ajudou a formar uma nova ala do movimento anticarcerário que agora se chama “abolicionismo”.
Mas, ao mesmo tempo, a larga trajetória de Davis como dirigente do Partido Comunista dos EUA (CPUSA) explica, em grande medida, os seus mais recentes ziguezagues eleitorais. Ainda que tenha rompido com o CPUSA estalinista em 1991 para ser membra fundadora dos Comitês de Correspondência (CoC), isso não representou, de modo algum, um rechaço à política eleitoral oportunista.
Duas linhas, ambas desonestas
No início dos anos 70, Davis havia passado um tempo na prisão como prisioneira política; em 1972, foi declarada não culpada das acusações de assassinato e terrorismo após um duro processo. Nesse mesmo ano, o CPUSA retirou o apoio formal aos candidatos presidenciais do Partido Democrata e começou a apresentar o seu próprio secretário-geral, Gus Hall, para presidente. Em 1980 e 1984, Angela Davis foi a candidata à vice-presidência pelo CPUSA, na chapa de Hall.
Apesar de fazer uma campanha admirável, o propósito das campanhas eleitorais “independentes” do CPUSA não era fazer propaganda sobre a necessidade imediata de romper com os partidos do capital e formar um partido combativo de trabalhadores. Pelo contrário, o propósito das campanhas era “derrotar o reaganismo” e “ajudar a pressionar todos os candidatos anti-reaganistas para que falem da questão dos empregos, da paz e da igualdade” (Daily Worker, 19 de janeiro de 1984).
A retórica desonesta das campanhas eleitorais do CPUSA se baseava em aparecer separado do Partido Democrata no discurso, mas apoiando-o na prática. Esses tipo de posturas, aparentemente contraditórias em relação à política eleitoral, serviram para dar uma legitimidade de esquerda aos projetos e posições de conciliação de classes.
Ao invés de pedir a oposição absoluta a ambos os partidos do imperialismo estadunidense, Angela Davis utilizou a sua campanha de 1984 para argumentar que “a prioridade imediata de todos do movimento pela paz, de todos os que estão ameaçados pela conflagração de uma guerra nuclear, é a derrota de Reagan e sua administração patologicamente anticomunista” (Daily Worker, 12 de julho de 1984).
Para derrotar o “fascismo”, vote nos democratas
O Partido Comunista dos EUA manteve uma política de conciliação de classes, seguindo a linha da formulação de “Frente Popular” de Stalin, desde o início da década de 1930. Isso significou serem os mais ativos partidários de Franklin Delano Roosevelt, do New Deal, e da entrada do imperialismo dos EUA na Segunda Guerra Mundial (exceto no período do Pacto Stalin-Hitler, 1939-41).
A estratégia de Frente Popular foi formulada explicitamente pela primeira vez por Josef Stalin, o grande traidor da Revolução Russa e do Bolchevismo, em 1934. A Frente Popular foi concebida como uma estratégia mundial de “coexistência pacífica” entre a URSS, um estado operário burocraticamente degenerado, e os países imperialistas. O esquema geral da estratégia de frente popular é que os socialistas devem se aliar em coligações eleitorais, e inclusive em gabinetes de governo, com uma suposta ala “progressista” ou “democrática” dos capitalistas para acabar com a ala reacionária. Apesar de que o impulso da Frente Popular se deve à burocracia soviética, a estratégia geral tem sido assumida por todo tipo de agrupamentos após a queda da URSS em 1991.
Quando a ameaça da dominação militar fascista do mundo passou, após a derrota da Alemanha nazista, o CPUSA teve que reformular o seu apoio aos democratas, fazendo-o parecer menos aberto e mais cauteloso. Na década de 60, o CPUSA começou a apoiar nominalmente candidaturas de terceiros, mantendo ao mesmo tempo uma postura estritamente pró-Partido Democrata. Acontecimentos importantes, como o surgimento do partido negro Freedom Now Party (Liberdade Agora), não receberam o apoio que o CPUSA estava dando ao candidato segregacionista Lyndon Baines Johnson em 1964. Em meio ao monumental movimento contra a guerra do Vietnã, cuja força estava em ser independente de ambos os partidos do capital, o CPUSA defendeu a linha de que os Democratas “anti-guerra”, um setor que não existia na realidade, deveriam ser apoiados.
O passado se repete
Muitos ativistas sérios se surpreenderam em escutar o apoio (tímido) de Angela Davis a Joe Biden, e seu posterior apoio (agora mais entusiasmado) à chapa de Biden/Harris, em parte devido à confusão causada por notícias da internet. Em março de 2016, Davis disse em “Democracy Now!” que não apoiava nenhum candidato para as eleições presidenciais e que os grupos do movimento de massas deveriam romper com o Partido Democrata para formar o seu próprio partido. No entanto, essa não foi sua declaração final sobre o assunto. Na conferência do Black Lives Matter, na Universidade do Texas em setembro daquele ano, Davis declarou: “Tenho sérios problemas com o outro candidato, mas não sou tão narcisista a ponto de dizer que não posso votar [em Hillary Clinton]”.
Na verdade, já em anos anteriores, Davis ficou deslumbrada com a eleição de Obama. Até 2012, o identificou com a “tradição negra radical” e disse que apoiava “apaixonadamente” sua presidência. E isso foi depois de Obama ter começado a sua expansão da máquina de deportações, a espionagem doméstica e o programa de drones, sem mencionar que ele afirmava que “não há um Estados Unidos negro… somente os Estados Unidos da América”.
Dada toda a sua história, parece que o chamado de Davis para “fazer campanha” para a atual chapa do Partido Democrata era quase inevitável. E é preciso dizer que a sua chamada é especialmente problemática hoje em dia, diante de um dos maiores movimentos de massas da história dos EUA, em um momento em que as massas de trabalhadores negros, latinos, indígenas e inclusive brancos e jovens estão nas ruas repudiando abertamente o programa do Partido Democrata. Diante de tudo isso, Angela Davis está chamando os dissidentes para que voltem ao seu rebanho.
Alguém com o prestígio e alcance de Angela Davis poderia cumprir um papel fundamental na organização da vanguarda do atual movimento, através de assembleias massivas para adotar posições, táticas e estratégias para uma nova organização realmente independente.
Traduzido da versão em espanhol, publicada no site da UIT-QI: http://www.uit-ci.org/index.php/noticias-y-documentos/noticias-internacionales/2694-eeuu-angela-davis-pide-apoyo-para-la-boleta-de-biden-harris
Versão original em inglês publicada no site Socialist Resurgence: https://socialistresurgence.org/2020/08/17/angela-davis-calls-for-support-to-biden-harris-ticket/