HISTÓRIA | 75 anos da fundação das Nações Unidas
por Silvia Santos, para o jornal El Socialista
Tradução: Lucas Schlabendorff
75 anos da fundação das Nações Unidas
No dia 26 de junho de 1945, no final da Segunda Guerra Mundial, foi assinada a carta de fundação das Nações Unidas, onde se declara “reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres” […] e “promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade ampla.”
Lamentavelmente, a realidade é que por trás de suas frases de “defensora da paz, da democracia e dos direitos humanos”, esta instituição mundial localizada em Nova Iorque se dedicou essencialmente a avalizar, por ação ou omissão, crimes de guerra, golpes de estado, abusos e restrições às liberdades democráticas por parte dos governos burgueses, genocídios e atrocidades que servem aos interesses de Washington e seus aliados.
A ONU fracassou?
Esta contradição entre sua declaração de princípios e suas ações concretas não pode ser analisada como um fracasso. Por trás de suas frases retumbantes, a ONU teve sua origem em uma série de pactos e acordos entre os governos, em primeiro lugar dos países imperialistas, com o aval da burocracia da URSS, para controlar, evitar ou derrotar novos processos revolucionários. Recordemos que Hitler foi vencido pelo heroico povo soviético, o que deu um impulso e prestígio à burocracia estalinista perante os olhos do mundo. Não é casual que um dos encontros para discutir a “paz” do pós-guerra foi realizado em fevereiro de 1945 em Yalta (Crimeia). Nesse momento Josef Stálin, Franklin D. Roosevelt e Winston Churchill resolveram, entre outros “detalhes”, a partilha da Europa, ficando a parte oriental sob controle da URSS, e a parte ocidental sob controle capitalista. E a Alemanha se dividiu entre os Estados Unidos, o Reino Unido, França e a URSS. Assim começava a percorrer o caminho rumo ao que alguns meses depois seria a ONU, um projeto defendido pelo presidente ianque.
Por isso, para além das “boas intenções” expressas em sua carta de fundação, a ONU serviu e serve aos propósitos do imperialismo e das multinacionais, e foi extremamente útil à burocracia estalinista para manter seu status quo. Basta ver como atuou e atua a ONU frente à luta dos povos do mundo por sua libertação, por seus direitos ou por sua autodeterminação. Poderíamos enumerar centenas ou milhares de casos que demonstram a posição nefasta da organização, como no levante popular e na posterior guerra civil síria, na guerra imperialista no Iraque ou no Afeganistão, ou nas sangrentas ditaduras latino-americanas, que todos conhecemos. Como não podemos focar em cada caso, vamos pegar três exemplos para analisar essa conduta.
A criação do Estado sionista de Israel e suas consequências. A posição adotada na Guerra das Malvinas. E, por último, o levante antirracista que ocorreu recentemente nos Estados Unidos. Estes casos mostram a quem serve a ONU.
A criação do Estado de Israel
No dia 14 de maio de 1948, em meio a violentos ataques israelenses apoiados pelo exército britânico à aldeias palestinas, que custaram milhares de vidas, as Nações Unidas Proclamaram a criação do Estado de Israel. Esta medida, rechaçada pelos povos árabes, foi apoiada pelas maiores potências do planeta, incluindo a URSS de Stálin, e inaugurou uma verdadeira tragédia de sangue e terror contra o povo palestino, que dura até os dias de hoje. Com o mito de “uma terra sem povo para um povo sem terra” justificaram a ocupação violenta de um território que tinha donos, os palestinos. Para consolidar sua ocupação, Israel impôs um estado de terror, expulsando quase um milhão de palestinos, destruindo suas aldeias e expropriando seus bens.
Encorajado com o aval da ONU para impor sua brutal ocupação, o Estado de Israel, convertido em um enclave dos Estados Unidos depois da retirada britânica, nunca cumpriu com as resoluções que a ONU simulava sancionar. A resolução 242, adotada por unanimidade no Conselho de Segurança no dia 22 de novembro de 1967, seis meses depois da Guerra dos Seis Dias, “exige o estabelecimento de uma paz justa e duradoura no Oriente Médio” […] “a retirada do exército israelense dos territórios ocupados durante o conflito” e o reconhecimento por parte do povo palestino ao direito dos israelenses terem seu “Estado”. Nunca foi cumprida e tampouco o sionismo recebeu sanções.
Longe de respeitar as resoluções, Israel continuou avançando sobre os territórios palestinos restantes. Assentou judeus nos territórios ocupados, o que em dezembro de 2019 gerou uma nova resolução da ONU orientando Israel a dar um fim na sua política de construir assentamentos. Israel jamais acatou a medida e a ONU continuou olhando para outro lado. Poderíamos seguir relatando inúmeras violações contra o povo palestino, que perdeu todos os seus direitos na sua própria terra. Israel impôs um verdadeiro estado de ocupação com um regime racista de apartheid, violando os princípios da entidade mundial, no entanto a ONU nunca foi além de suas resoluções burocráticas.
1982, Guerra das Malvinas
Em 3 de abril de 1982, o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou a resolução 502, que exigia o cessar imediato das hostilidades entre as partes envolvidas no conflito das Malvinas, ao considerar que existia uma quebra da paz na região. Quem havia “quebrado a paz” para defender seu direito sobre as ilhas Malvinas era a Argentina. A resolução demandava a retirada imediata de todas as forças argentinas das ilhas. Finalmente, orientava tanto a Argentina quanto o Reino Unido para que buscassem uma solução diplomática para o conflito, respeitando o conteúdo da Carta das Nações Unidas. Ou seja, a ONU colocou em pé de igualdade e impôs as mesmas exigências ao colonizador e ao país que defendia seu território.
Tradicionalmente, no marxismo temos defendido o fim do processo colonial, como o controle britânico sobre o norte da Irlanda, ou nos enclaves como Gibraltar, Ceuta, Melilha ou Malvinas. Em todos os casos, como na Guerra das Malvinas, defendemos o fim do vestígio colonial com o retorno desses territórios aos seus legítimos donos. Os enclaves são estados artificiais criados pelo imperialismo com uma população que não é originária desses lugares. Por exemplo, se nas Malvinas fosse feita uma consulta com base no direito à autodeterminação, certamente a absoluta maioria da população defenderia ser parte do Reino Unido, pois essa é sua origem. Mas a ONU não reconhece a existência de enclaves. Dessa maneira, enquanto a Inglaterra lançava todo seu poder bélico contra a Argentina com o apoio do imperialismo ianque, que detectava os alvos a serem bombardeados, a ONU hipocritamente clamava por uma resolução pacífica do conflito.
A ONU e o racismo
Frente ao assassinato de George Floyd, um trabalhador afroestadunidense, por parte de três policiais brancos no estado de Massachusetts, o Conselho de Direitos Humanos da ONU convocou uma reunião extraordinária para tratar do tema. Na ocasião, um grupo de países africanos, com o apoio do irmão de Floyd, apresentou uma proposta para ajudar na luta contra o racismo. A iniciativa pedia que a ONU criasse uma comissão investigadora para averiguar os crimes cometidos nos Estados Unidos e em outros países que vivem a mesma situação.
Preocupados com uma resolução como essa, que poderia afetá-lo, o representante do governo racista e genocida do Brasil saiu em defesa do presidente ianque Donald Trump (que nem sequer assistiu a reunião) alertando que não se podia singularizar o tratamento ao racismo em um único país. Obviamente, os países imperialistas rechaçaram a proposta com o mesmo argumento, não existiam motivos para singularizar apenas em um país e uma “eventual” resolução deveria versar apenas sobre generalidades. Uma omissão absurda, sendo que no ano de 1969 entrou em vigor nas Nações Unidas a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial. Finalmente, se acordou uma resolução “adotada por consenso e de forma oral e sem votação”, que também faz referência às mortes de outras pessoas de ascendência africana e repudiou o racismo estrutural do sistema de justiça penal. Uma verdadeira saudação à bandeira, enquanto o sangue do povo negro continua a correr impunemente.
Ainda que acabe repudiando os recentes incidentes e o uso excessivo da força e outras violações dos direitos humanos por parte dos oficiais das forças de repressão contra os manifestantes, a ONU não foi capaz de aprovar uma resolução concreta para investigar a atuação das forças repressivas ianques para, em caso de violações, determinar as sanções correspondentes, como se faz em muitos países dependentes quando o imperialismo os quer pressionar. Na proposta oral votada se solicita ao Alto Comissário para os Direitos Humanos que elabore um relatório sobre o racismo sistemático e as violações das leis internacionais de direitos humanos contra os africanos e afroamericanos por parte das forças da ordem e de outras pessoas desse grupo populacional. Não é à toa que, dias depois dos incidentes nas marchas que repudiaram o assassinato de George Floyd, outros negros foram assassinados pelas forças policiais nos Estados Unidos.
Conclusão
Em resumo, em seus 75 anos de história, a ONU tem sido fiel ao verdadeiro propósito de seus criadores, construir um organismo mundial, como o que foi a sua predecessora, a Liga das Nações, para controlar o mundo a serviço das grandes potências e seus interesses econômicos. É o que ela vem fazendo desde sua fundação, ainda que para isso tenha que omitir genocídios, violações à autodeterminação dos povos e dos direitos humanos, as práticas racistas ou a destruição do meio ambiente. Com razão de sobra, a pequena Greta Thunberg, ativista ambientalista de apenas 16 anos, durante a Cúpula sobre a Ação Climática da ONU, gritou bem em suas caras: “A gente está sofrendo, a gente está morrendo. Ecossistemas inteiros estão colapsando. Estamos no início de uma extinção em massa e a única coisa da qual vocês sabem falar é de dinheiro”.