ARGENTINA | Quem são os donos dos títulos da dívida?
Por: José Castillo, publicado em 20 de maio de 2020, no jornal El Socialista Nº 460. Traduzido por: Pablo Andrada
Esta semana continua a partida de pôquer da renegociação da dívida. “Existe disposição mútua para chegar a um acordo”, afirmam tanto os altos funcionários do Ministério da Economia quanto os porta-vozes dos proprietários dos títulos da dívida externa. Independentemente de como termine esta anedota da renegociação, cujo final está previsto para esta sexta-feira 22, mas, como é possível se antecipar, “poderia ter o prazo estendido um pouco além em acordo entre as partes”, algumas questões estão ficando cada vez mais claras. Elas são as que queremos destacar aqui.
Em primeiro lugar, ninguém mais esconde quem são os famosos “detentores de títulos”. Entre eles não há nenhum aposentado ou donos de pequenas poupanças. Trata-se do pior do establishment financeiro internacional, os chamados “abutres dos abutres”, especuladores que sobrevoam o mundo obtendo lucros parasitas em quantidades colossais. Eles têm nome e sobrenome e até estão agrupados em “clubes de credores” para pressionar e obter uma fatia maior do bolo. Assim sendo, os pesos pesados BlackRock e Fidelity encabeçam o autodenominado Grupo Argentina Ad Hoc (Ad Hoc Bondholders Group), juntamente com outros abutres menores, como Ashmore e T. Bowe Price. Eles são seguidos pelo Comitê de Credores da Argentina (Bondholders Group), coordenado por outro gigante, Greylock Capital, ao qual devem ser agregado os Gramercy e Fintech, dois “velhos conhecidos”, pois foram os grandes vencedores dos swaps dos Kirchner em 2005 e 2010, e agora vêm para ficar com mais lucros. Porém, como se tudo isso não bastasse, existe um terceiro clube de credores, o Grupo Ad Hoc de Bondholders de swap da Argentina (Exchange Bondholders Group), onde estão agrupados outros fundos de investimento que também participaram dos swaps1 de 2005-2010, como Monarch, HBK Capital, Cyrus Capital Partners LP e VR Capital Group. Fora desses “comitês” ou “clubes” de credores, outros grandes detentores de dívida argentina também estão à espreita, como Pimco e Templeton.
Em que consiste a atual “negociação”?
Vamos tentar sintetizar: o governo argentino lançou uma excelente e amigável oferta para credores conhecidos como “polvos” (porque com seus tentáculos acaparam tudo que podem, sendo assim denominados pelos próprios altos funcionários do governo), sem tirar quase nada de capital, juros bem acima daqueles que são pagos no mundo hoje e um “período graça” (tempo que transcorre até que os primeiros pagamentos são feitos) de três anos. Tudo muito longe daquele discurso inicial de Alberto Fernández que dizia “não podemos pagar com a fome do povo”. Os abutres credores, por sua vez, negociam de modo pesado e pressionam porque não aceitam nenhuma redução de capital, querem mais juros e também que os pagamentos sejam realizados antes dos três anos propostos, além de algum “prêmio extra”, como o que Néstor Kirchner e seu ministro da Economia Roberto Lavagna lhes deram em 2005, com os chamados Cupons PBI, que geravam pagamentos adicionais de dívida caso o país crescesse além de certa porcentagem (que na época era de 3,2%).
A resposta do governo é que se encontra aberto e “flexível” para negociar tudo. Traduzido, ele aceita analisar que comece a pagar antes de 2023, menos (ou nenhuma) redução de capital, mais pagamentos de juros e discutir algum “prêmio” para os credores (incluindo algum pagamento “em dinheiro vivo” em um momento próximo).
Onde tudo isso nos leva?
A dívida é uma verdadeira bola de neve da qual não é possível sair mais. Vejamos alguns exemplos didáticos: na próxima sexta-feira será o vencimento de 503 milhões de dólares dos títulos “globais” 21, 26 e 46. De onde surgiram esses títulos? Eles são resultado de uma emissão feita pelo ex-presidente Mauricio Macri em 2016, que gerou novas dívidas no total de 14,5 bilhões de dólares. De fato, apenas 13 bilhões entraram no país. Mas é interessante destacar onde foi usado todo esse dinheiro. A maioria, 9,3 bilhões, foi para pagar os holdouts2, ou seja, os fundos abutres que já estavam litigando contra a Argentina. Lembremos que esse famoso pagamento foi autorizado no início do governo Macri com o voto positivo da enorme maioria da bancada peronista de então no parlamento. Como podemos ver: é dívida para pagar uma dívida anterior.
Vamos seguir o fio do raciocínio que nos levará ao segundo exemplo ilustrativo. Os fundos abutres foram aqueles que não aceitaram os swaps kirchneristas de 2005 e 2010. Será que o restante da dívida já havia sido liquidado e, como a propaganda oficial daqueles anos declamava “estávamos desendividados”? De maneira alguma, e como melhor exemplo disso é que temos agora, na própria reestruturação, os fundos que aparecem como donos desses títulos 2005 e 2010, unidos em dois dos grandes grupos de credores que estão pressionando por uma “melhor proposta”. Traduzido, para receberem mais no pagamento, com mais juros e em prazos mais curtos.
Este é apenas um rápido olhar na dívida que estamos pagando infinitamente. Dívida cuja origem última está na ditadura militar genocida, mais tarde reconhecida e renegociada por todos os governos posteriores, sem exceção. Com uso do swap primeiro por Menem, e pelos Kirchners depois. Sempre gerando novos vencimentos, sumas, juros e mais juros, e fazendo com que para “pagar”, uma nova dívida seja tomada dos “polvos” do establishment, como nos casos mencionados. Mas, além de organismos internacionais, centralmente o FMI e outros como o Banco Mundial ou o BID. Inclusive, reconhecendo dívidas pendentes diretamente com outros Estados, como é o caso do chamado Clube de Paris, que se originou de empréstimos que os governos europeus da época fizeram à ditadura do general Jorge Rafael Videla.
Em suma, de qualquer maneira que este capítulo de renegociação da dívida acabar, nada terá sido solucionado. Ficará uma enorme hipoteca que deverá continuar sendo paga a esses mesmos abutres. E será apenas o prelúdio de outras duas “negociações”. Uma, a que será feita com os “detentores de títulos sob a legislação local”, que na maioria dos casos são os mesmos “polvos”, neste caso, encabeçados pela Fidelity. E outra, aquele que virá com o Fundo Monetário Internacional, por nada mais e nada menos que 49 bilhões de dólares e onde a própria entidade internacional já antecipou que com eles não haverá nenhum tipo de “redução” de valores. Para que fique bem claro, tudo isso envolve bilhões de dólares em pagamentos que já foram agendados para os próximos cem anos. Fome, miséria, saques e marginalização para quatro gerações do povo trabalhador argentino.
Apesar de dezenas de economistas, estudiosos acerca do assunto do endividamento e líderes sociais de todo o mundo saírem permanentemente para alertar sobre as consequências dos endividamentos astronômicos como o argentino e a impossibilidade de pagá-los, existe na atualidade uma coincidência política macabra: o governo peronista, a oposição do Juntos por el Cambio (Macri), as centrais patronais, as burocracias sindicais da CGT e os CTA, todos, sem exceção, são a favor de pagar a dívida pública, com o argumento de que a pior coisa que pode nos acontecer é “cair no default3″. Nestes dias, juntou-se a Igreja Católica na voz de Stefano Zamagni, presidente da Academia de Ciências Sociais do Vaticano, que afirmou em uma recente teleconferência organizada pela Universidad de Tres de Febrero que é necessário “convencer alguns bancos a aceitar o plano de reestruturação, em especial o fundo BlackRock, que possui uma força de trilhões de dólares”.
Do lado oposto, apenas a esquerda e o sindicalismo combativo permanecemos. Insistindo uma e outra vez que pagando afundaremos de vez, que não é possível pagar agora nem em 2024 nem nunca. Que a única saída é deixar imediatamente de pagar essa dívida externa ilegal, imoral e ilegítima, romper com o FMI e o restante das organizações financeiras internacionais. Se os “polvos” do establishment formam clubes de credores, nós temos que convocar a constituição de um grande clube de devedores para todos os países da América Latina, seguindo o exemplo do que foi feito por vários países africanos, que se uniram para solicitar a remição total de suas dívidas públicas externas. Em meio à emergência da pandemia do coronavírus, mais do que nunca é necessário usar todos os recursos que hoje estão nas mãos dos abutres especulativos para alocá-los a um grande fundo de emergência e, assim, atender às mais urgentes necessidades da saúde e da crise Social.
- Um swap pode ser definido como um contrato entre dois agentes de troca de fluxo de rentabilidade associados a dois indexadores, que tem duas pontas as quais podem ser vistas como uma posição comprada e outra vendida.
- Holdouts são os credores que negam sua participação no processo de reestruturação de uma dívida, quer dizer, ficam de fora.
- Entrar ou cair em Default é deixar de pagar uma dívida, mais conhecido como calote.