Engels sobre a natureza e a humanidade

por Michael Roberts
Tradução Lucas Schlabendorff

Ilustração: Randy Lobato / @cstpsol

À luz da pandemia atual, apresento aqui um extrato, em caráter de rascunho, do meu próximo livro sobre a contribuição de Friedrich Engels para a economia política marxista no 200º aniversário de seu nascimento.

Marx e Engels são frequentemente acusados do que se chama de uma visão prometeica da organização social humana; isso quer dizer que os seres humanos, utilizando seus cérebros, conhecimentos e capacidades técnicas superiores, podem e devem impor sua vontade ao resto do planeta, ou ao que se chama de “natureza”, para o bem ou para o mal.

A acusação é de que as outras espécies vivas são meros objetos para o uso dos seres humanos. Há seres humanos e há a natureza, em contradição mútua. Essa acusação está dirigida particularmente a Friedrich Engels, quem, segundo alguns afirmam, adotou uma visão burguesa “positivista” da ciência: o conhecimento científico sempre foi progressista e neutro em termos ideológicos; e também é assim a relação entre homem e natureza.

Essa acusação contra Marx e Engels foi difundida no período do pós-guerra pelo o que se acostumou chamar Escola Marxista de Frankfurt, que considerava que o marxismo se perdeu em 1844, quando Marx e Engels supostamente abandonaram o “humanismo”. Mais tarde, os seguidores do marxista francês Althusser culparam ao próprio Engels. Para eles, tudo se foi para o inferno um pouco mais tarde, quando Engels descartou o “materialismo histórico” e o substituiu pelo “materialismo dialético”, para difundir a “crença estúpida” de Engels de que o marxismo e as ciências físicas teriam alguma relação.

Na prática, a crítica “verde” contra Marx e Engels é de que eles não eram conscientes de que o homo sapiens estava destruindo o planeta e portanto a si mesmo. Ao invés disso, Marx e Engels teriam uma fé prometeica na capacidade do capitalismo desenvolver as forças produtivas e a tecnologia para superar qualquer risco para o planeta e a natureza.

O fato de que Marx e Engels não prestaram atenção no impacto da atividade social humana na natureza já foi desacreditado recentemente, em particular pelos inovadores trabalhos de autores marxista como John Bellamy Foster e Paul Burkett. Ambos demonstraram que, ao longo d’O Capital, Marx era muito consciente do impacto degradante do capitalismo sobre a natureza e os recursos do planeta. Marx escreveu que:

“Com o predomínio cada vez maior da população urbana, que se agrupa em grandes centros […] se perturba o metabolismo entre o homem e a terra, impede o retorno ao solo dos seus elementos utilizados pelo homem em forma de alimentos e roupas, portanto, dificulta o processo natural da fertilização permanente do solo. Portanto, destrói tanto a saúde física dos trabalhadores urbanos, como a vida intelectual dos trabalhadores do campo.” ¹

Como diz Paul Burkett: “é difícil argumentar que há algo fundamentalmente anti-ecológico na análise de Marx sobre o capitalismo e suas projeções sobre o comunismo”.

Fundamentando esse último, o premiado livro de Kohei Saito se baseou nos cadernos de “extratos” inéditos de Marx, parte do projeto de investigação em curso chamado MEGA (Marx-Engels-Gesamtausgabe, edição da obra completa de Marx e Engels) revelando o extenso estudo por parte de Marx dos trabalhos científicos da época sobre a agricultura, o solo, a silvicultura, para ampliar seu entendimento da conexão entre o capitalismo e a destruição dos recursos naturais (tenho pendente uma resenha do livro de Saito).

Mas também é preciso defender Engels dessas acusações. Na realidade, Engels estava muito à frente de Marx (mais uma vez) na relação entre a destruição e o dano ao meio ambiente que a industrialização estava causando. Enquanto ainda vivia em sua cidade natal de Barmen (hoje parte da cidade de Wuppertal), escreveu vários artigos sobre a desigualdade entre ricos e pobres, a hipocrisia piedosa dos pregadores da igreja e também a contaminação dos rios.

Com apenas 18 anos, ele escreveu:

“As duas cidades de Elberfeld e Barmen, ocupam o vale durante quase três horas de viagem. O rio estreito verte suas ondas carmesins entre os edifícios das fábricas fumegantes e os pátios cobertos de fios; mas sua cor vermelha brilhante não provém de uma batalha sangrenta, pois aqui somente as canetas teológicas e as velhas charlatãs podem lutar pelas barbas do Imperador; nem por vergonha das ações dos homens, ainda que certamente há razões para isso, mas sim unicamente dos muitos tintureiros que usam a tinta vermelha. Vindo de Düsseldorf se entra na zona sagrada perto de Sonnborn; o rio Wupper se arrasta preguiçosamente, cheio de lama e, devido a seu aspecto miserável, arrasa significativamente as expectativas a respeito do rio Reno, que se encontra nas proximidades”.

Elberfeld-Barmen Road, Alemanha. Barmen, 1913.

E continua:

“Em primeiro lugar, o trabalho na fábrica contribui muito para isso. O trabalho em espaços baixos, onde as pessoas respiram mais fumaça do carvão do que oxigênio, e isso inclusive a partir dos seis anos, está na verdade roubando-lhes toda a força e entusiasmo pela vida.”

Engels relacionava a degradação social das famílias trabalhadoras com a degradação da natureza, ao mesmo tempo que denunciava a piedade hipócrita dos donos das fábricas:

“Mas há uma terrível miséria entre as classes baixas, especialmente entre os trabalhadores das fábricas de Wuppertal; a sífilis e as doenças respiratórias prevalecem em uma escala difícil de conceber; somente em Elberfeld, 1200 de 2500 crianças em idade escolar se encontram privadas de educação e crescem nas fábricas, só para que o dono da fábrica não tenha que empregar um adulto, que receberia o dobro do salário de uma criança. Os ricos donos das fábricas, no entanto, têm sua consciência tranquila; destruir a vida de uma criança não levará sua alma pietista para o inferno, desde que ele vá à igreja duas vezes a cada domingo. Porque é um fato que entre os donos das fábricas, os pietistas são aqueles que tratam pior seus trabalhadores, reduzindo seus salários de todas as maneiras possíveis com o pretexto de privá-los da oportunidade de se embebedar, e são sempre os primeiro a subornar o seu povo na eleição dos pregadores.” ²

Claro, essas observações de Engels são somente isso, observações, sem nenhum aprofundamento teórico, mas mostram a sensibilidade que Engels já tinha para a relação entre a industrialização, os proprietários e os trabalhadores, sua pobreza e o impacto ambiental da produção da fábrica.

Em sua primeira grande obra, Esboço de Crítica da Economia Política, novamente muito antes que Marx se ocupasse desse conteúdo, Engels sinaliza como a propriedade da terra, a busca pelo lucro e a degradação da natureza andam juntas:

“Fazer da terra um objeto de venda- a terra que para nós é tudo, é a primeira condição de nossa existência – foi o último passo para nos tornarmos também um objeto de venda; isso foi e é até hoje uma imoralidade que é superada apenas pela imoralidade da autoalienação. E a apropriação original – a monopolização da terra por um pequeno grupo, a exclusão do resto da sua condição básica de vida – não perde em nada em imoralidade para a subsequente venda da terra por um preço vil.” ³

Uma vez que a terra é mercantilizada pelo capital, está sujeita a tanta exploração como o trabalho.

Edicão brasileira da obra Dialética da Natureza de Engels

A obra principal de Engels (elaborada com a ajuda de Marx), Dialética da Natureza, que foi escrita até 1883, pouco depois da morte de Marx, é constantemente objeto de ataques. Como por exemplo, a acusação de estender à natureza, de maneira não marxista, a concepção materialista da história que Marx aplicou aos seres humanos. E no entanto, em seu livro, Engels não poderia ser mais claro sobre a relação dialética entre os humanos e a natureza.

Em um famoso capítulo intitulado “O papel do trabalho na transformação do macaco em homem”, escreve:

“Contudo, não nos deixemos dominar pelo entusiasmo por causa de nossas vitórias sobre a natureza. Após cada uma dessas vitórias a natureza adota sua vingança. É verdade que as primeiras consequências dessas vitórias são as previstas por nós, mas em segundo e em terceiro lugar aparecem consequências muito diversas, totalmente imprevistas e que, com frequência, anulam as primeiras. Os homens que na Mesopotâmia, na Grécia, na Ásia Menor e outras regiões devastavam os bosques para obter terra de cultivo, nem sequer podiam imaginar que, eliminando junto com os bosques os centros de acumulação e reserva de umidade, estavam assentando as bases da atual aridez dessas terras. Os italianos dos Alpes, que destruíram nas encostas meridionais os bosques de pinheiros, conservados com tanto carinho nas encostas setentrionais, não tinham ideia de que com isso estavam […] privando de água os mananciais das suas montanhas, e que durante a estação de chuvas iriam se produzir inundações ainda mais furiosas. Os que difundiram o cultivo da batata na Europa não sabiam que com esse tubérculo farináceo difundiam por sua vez a escrofulose. Assim, a cada passo, os fatos recordam que nosso domínio sobre a natureza não se parece em nada com o domínio de um conquistador sobre o povo conquistado, que não é o domínio de alguém situado fora da natureza, mas que nós, com nossa carne, nosso sangue e nosso cérebro, pertencemos à natureza, encontramo-nos em seu seio, e todo o nosso domínio sobre ela consiste em que, diferentemente dos demais seres, somos capazes de conhecer suas leis e aplicá-las de maneira adequada.”

E Engels continua: 

“De fato, a cada dia que passa, aprendemos a compreender mais corretamente suas leis e a reconhecer as consequências breves e de longo prazo de nossas ações no curso da natureza […] Mas quanto mais isso aconteça, mais os homens voltarão a sentir e a saber que são um só com a natureza, e mais impossível se faz essa ideia absurda e antinatural de uma oposição entre o espírito e a matéria, o homem e a natureza, a alma e o corpo.”

Engels explica as consequências sociais do impulso da expansão das forças produtivas:

“Mas se foi necessário milênios de trabalho antes que aprendêssemos a calcular em certa medida os efeitos naturais distantes de nossas ações produtivas, nos custou ainda mais em relação aos efeitos sociais mais distantes dessas ações […] E quando Colombo encontrou a América, não sabia que com isso estava revivendo a escravidão, que já havia sido superada na Europa, e estava cimentando as bases para o tráfico dos negros escravizados.”

Os povos na América foram escravizados, mas também a natureza. Como disse Engels:

“Aos cultivadores espanhóis em Cuba, que queimaram os bosques nas encostas e encontraram nas cinzas adubo suficiente para uma geração de cafeicultores altamente rentáveis, o que lhes importou o fato de que as chuvas tropicais posteriormente inundaram e causaram a erosão do solo, agora indefeso, deixando apenas rocha nua?”.

Agora sabemos que não foi só a escravidão que os europeus trouxeram para o continente americano, mas também doenças, que em suas muitas formas exterminaram 90% dos povos nativos americanos, e foi a principal razão para que fossem subjugados pelo colonialismo.

Agora que experimentamos outra pandemia, sabemos que foi o impulso do capitalismo na industrialização da agricultura e a usurpação das terras virgens que levaram a natureza a “contra-atacar”, já que os humanos entram em contato com mais patógenos que não possuem imunidade, igual aos nativos americanos no século XVI.

Engels atacou a visão de que a “natureza humana” é inerentemente egoísta e só pode destruir a natureza. Em seu Esboço argumentou que esse argumento era uma “blasfêmia repulsiva contra o homem e a natureza”. Os humanos podem trabalhar em harmonia com a natureza e como parte dela. Requer um maior conhecimento das consequências da ação humana. Engels disse em seu Dialética

“Mas também nesse campo aprendemos gradualmente, através de uma longa e difícil experiência, e mediante a compilação e o estudo do material histórico, para compreender os efeitos sociais indiretos, mais distantes, de nossa atividade produtiva, e desse modo vamos nos dando a oportunidade de controlar e regular esses efeitos.”

Mas um melhor conhecimento e progresso científico não é suficiente. Para Marx e Engels, a possibilidade de acabar com a contradição dialética entre o homem e a natureza e conquistar certo nível de harmonia e equilíbrio ecológico somente seria possível com a abolição do modo de produção capitalista. Como disse Engels:

“Porém, para conseguirmos essa regulação faz falta algo mais do que mero conhecimento. Precisamos de uma revolução completa do nosso modo de produção dominante até os dias de hoje e, com ele, de toda nossa ordem social existente.”

A ciência não é suficiente.

Ao final das contas, o “positivista” Engels, ao que parece, apoiava a concepção materialista da história de Marx.

*Michael Roberts é um reconhecido economista marxista britânico, que trabalhou por 30 anos na cidade de Londres como analista econômico e hoje publica o blog “The Next Recession”.



Traduzido da versão em espanhol disponível no site da UIT-QI:
http://www.uit-ci.org/index.php/noticias-y-documentos/temas-generales/2574-engels-sobre-la-naturaleza-y-la-humanidad

Notas: 
¹ Karl Marx, Das Kapital, vol. 1, cap. 13, sección 10, Große Industrie und Agrikultur. Karl Marx – Friedrich Engels, Werke. Band 23, Bd. I, Vierter Abschnitt, Berlín, Dietz Verlag, 1968, pp. 483 – 530
² Friedrich Engels, Briefe aus dem Wuppertal, marzo de 1839, I. Karl Marx/ Friedrich Engels, Werke. Band 1. Berlín, Dietz Verlag, 1976. pp. 413-432
³ Friedrich Engels, Umrisse zu einer Kritik der Nationalökonomie, enero de 1844. Karl Marx/ Friedrich Engels, Werke. Band 1, Berlín, Dietz Verlag, 1976, pp. 499-524
Friedrich Engels, Dialektik der Natur. «Anteil der Arbeit an der Menschwerdung des Affen». Karl Marx/ Friedrich Engels, Werke. Band 20. Berlín, Dietz Verlag, 1962, pp. 444-455

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