A pandemia, Bolsonaro, Moro e a desorientação da burguesia periférica
CONTRAPODER
Marco Antonio Perruso (Trog)
Avança rapidamente a crise do desgoverno Bolsonaro. Emparedado pelo Congresso e pelo STF, sofrendo com “pautas bombas” – normalmente, medidas tímidas de assistência aos mais pobres – e com a “judicialização da política” (fenômeno que sempre existiu em maior ou menor grau),[1] o momento atual mostra que a ingovernabilidade não era privilégio do governo Dilma ou do PT. A cena política nacional desnuda quão forte é a instabilidade de nossa democracia liberal burguesa.
Bolsonaro, com seu negacionismo genocida, é um dos pouquíssimos governos no mundo inteiro a ter perdido popularidade sob a pandemia do coronavírus e suas conseqüências sociais e econômicas. Ele continua assustando muita gente porque o bolsonarismo só sabe responder com agressividade e verborragia golpista à sua própria fragilização política.
Os que antes imaginavam um inevitável e consistente endurecimento do regime, vêem agora a crescente fragmentação da direita liberal e conservadora no país: não só Rodrigo Maia, Doria, Witzel, Caiado, ACM Neto, mas também Moro é feito inimigo por Bolsonaro. A extrema-direita brasileira perde o discurso anti-corrupção, essencial para o anti-petismo. Não há coesão na pauta política, apenas em torno do programa econômico neoliberal.
Bolsonaro poderia estar há semanas inaugurando hospitais de campanha militares e angariando apoio popular como líder no combate à pandemia. Mas ainda não entendemos bem que ele não se elegeu para governar. Ele substitui a gestão pública burguesa clássica pela permanente agitação política, não se comportando com o decoro que nós, cidadãos intelectualizados crentes na democracia, esperamos dele. Por quê?
Singularidade da política bolsonarista
A resposta encontra-se na dificuldade de a extrema-direita no mundo todo construir alguma hegemonia política. Assim, seus líderes populistas mobilizam continuamente suas próprias bases, à base de carisma e fakenews: pois são incapazes de manter maiorias sociais. A sordidez do método político oculta a fraqueza congênita de uma leva de políticos que só prosperam em época de crise.
Por isso mesmo a pandemia não foi uma oportunidade para Bolsonaro: não lhe interessa a união nacional típica de governos tradicionais da direita (que seria falsa, de qualquer forma), pois precisa atuar sempre contra inimigos internos. Daí seu negacionismo.
Mas há outra característica diferenciada do bolsonarismo: como não chegou ao poder para governar e se vê – emulando a esquerda – como um movimento “anti-sistema” (o “Deep State”, na versão trumpista nos EUA), ele não se afina com as técnicas de gestão, a tecnocracia, a ciência enfim. Este romantismo de quem vive no politizadíssimo mundo das redes anticomunistas/terraplanistas do WhatsApp, esta recusa à “técnica como ideologia”, para usar os termos frankfurtianos, é perfeitamente convergente com uma política de crise permanente praticada pela extrema-direita. O inverso do que a burguesia deseja para seu ambiente de negócios: uma dominação de classe estável, despolitizada, desencantada – tal qual a tradicional direita brasileira costuma oferecer.
Entretanto, o populismo de direita, no mundo, não sabe bem para onde ir. A crise social provocada pela pandemia encurralou seu neoliberalismo, a ponto de Boris Johnson defender publicamente a saúde estatal britânica. Revelam-se assim os limites do individualismo e do darwinismo social como ideologias distópicas após a crise econômica de 2008. Ademais, estes governos de extrema-direita fazem barulho, estão em voga, mas são minoritários no negacionismo do coronavírus, como evidenciam as votações favoráveis à OMS na ONU.
A burguesia na periferia do capitalismo
Como registrou Wanderley Guilherme dos Santos,[2] a burguesia brasileira, por si mesma, nunca foi grande coisa como ator político. Na quadra histórica atual de crise mundial generalizada, sua desorientação política é enorme. Não sabe o que propor, insiste em fórmulas repetidas ou arrisca soluções bizarras. Mas muitos burgueses são verdadeiros ao expressar a selvageria do nosso capitalismo periférico. Intensificam os ataques aos trabalhadores – ainda mais após o lulismo ter desarmado as classes populares, ao substituir as mobilizações sociais, do PT das origens, por políticas públicas.
Assim, o bolsonarismo, inadvertidamente, colocou as “idéias” no “lugar” (para usar o conceito de Roberto Schwarz), explicitando a contradição essencial – a extração brutal da mais-valia – que fundamenta nossa formação social. Ainda que esgrimindo falsas dicotomias – evocando o mercado contra o Estado, como nós mesmos equivocadamente fazemos, mas com sinal invertido – a extrema-direita brasileira não só recoloca o “comunismo” de volta ao debate público (coisa que a esquerda, amedrontada, evita), como defende o caráter estrutural da desigualdade brasileira.
Como se vê hoje, nossa desigualdade é impossível de ser combatida de modo eficaz nos marcos do capitalismo. O nacionalismo lulista nisso apostou e fracassou. Ao lado deste setor progressista, a direita tradicional, que perto do bolsonarismo parece ilustrada, tenta recolocar as “idéias” fora do “lugar” (onde sempre estiveram). É o que vemos quando Rodrigo Maia responde a Bolsonaro afirmando que os ricos podem contribuir mais na crise brasileira.[3] É certo que o presidente da Câmara expressa outras tendências – não outras frações – da burguesia brasileira, desejosas de maior ativismo governamental diante da inanição administrativa do governo federal. Muitos progressistas e conservadores apostam nesta mesma direção.[4]
A cidadania dos trabalhadores em jogo
Do nosso ponto de vista, o dos que vivem da sua própria força de trabalho, percebe-se de imediato que só podemos contar com nossas próprias forças. Enquanto os setores dominantes tateiam em busca de saídas “civilizadas” ou caóticas, devemos nos perguntar como nossa geração chegou onde estamos. Da experiência de democratização de base mais avançada da história da sociedade brasileira, marcante nos anos 1970/80, até o bolsonarismo vigente no momento atual.
A trajetória recente de nossa formação social evidencia um enfraquecimento da agência sociológica das classes trabalhadoras. Este é anterior a Bolsonaro e a Temer, não podendo ser creditado a eles. O empoderamento da agência do Estado-Nação, realizado pela conciliação lulista de classes no enfrentamento à agência do mercado defendida pelos neoliberais, extraiu força e autonomia dos movimentos populares.
A esfera do mercado forma antes consumidores do que cidadãos. Como o crescimento econômico sob o lulismo na década passada foi grande, não devemos nos surpreender agora que tantos consumidores, “inconscientes” de sua própria cidadania, tenham optado pelo bolsonarismo em 2018. Maior inclusão via mercados só pode aumentar a demanda por disciplina do trabalho, correlata a uma intensificação do “espírito do capitalismo”. Já o Estado-Nação forma clientelas de políticas públicas (atendendo a certos interesses materiais), mas não necessariamente cidadãos. No “mundo da vida” das classes populares, a cidadania é propiciada fundamentalmente por seus movimentos sociais e sindicais, que configuram uma socialização política por meio de experiências coletivas de luta.
Ainda que esteja havendo uma renovação do campo dos movimentos populares desde o início desta década, ela não se mostrou expressiva o suficiente para revitalizar nossa democracia desde baixo. De forma que hoje nos sobra indignação mas baixa capacidade mobilizatória. A indignação anda junto com a inoperância.
Daí parecerem tão eficientes as “guerras culturais” da extrema-direita. Explorando contradições e frustrações do desenvolvimento capitalista ensejado pelo lulismo, o bolsonarismo colheu capilaridade social e disseminou modismos políticos e culturais, ainda que não saiba bem para quê. Por isso insiste na agitação de suas bases. Mas a direita brasileira e o autoritarismo em geral (inclusive o varguista) sempre foram elitistas, tecnocráticos e desmobilizadores, como apontou Bolivar Lamounier.[5] Entre o fascismo e o bonapartismo, sempre se escolheu a segunda opção. Por isso talvez Sergio Moro e o lavajatismo – dadas sua origem e configuração institucional burocrática – sejam uma opção burguesa segura para o futuro imediato. Já do lado dos movimentos dos trabalhadores, a retomada das lutas que se deram na atual década (greves setoriais e gerais conduzidas por sindicatos e oposições sindicais, lutas pelo passe livre e contra os grandes eventos, junho de 2013 e os diversos “Ocupas”, lutas das mulheres, pelos direitos humanos, pela educação, etc.) aguarda o fim da quarentena. É necessário novamente “botar o bloco nas ruas”, pois a insatisfação popular com o status quo – de que passou a fazer parte o bolsonarismo – continua enorme. Apenas as pautas próprias dos explorados e oprimidos podem renovar a sociedade brasileira em perspectiva transformadora e emancipatória.
[1] A chamada judicialização da política ou das relações sociais só é assim chamada pelos que raciocinam exclusivamente na ótica dos demais poderes, Executivo e Legislativo. A respeito, veja-se meu artigo “Aspectos sociológicos da litigância e do acesso à justiça”, Revista da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, v. 24, 2009.
[2] Ordem Burguesa e Liberalismo Político. São Paulo: Duas Cidades, 1978.
[3] https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/04/03/maia-rebate-e-bolsonaro-e-diz-que-ricos-poderiam-fazer-mais-pelo-brasil.htm
[4] Tais são os apelos tecnocráticos anti-bolsonaristas de um fundamentalista neoliberal: “as decisões do Executivo requerem técnica e política”, “a política pública [não] se resume a frases de efeito”, há necessidade de “gestão, planejamento” (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marcos-lisboa/2020/05/quem-semeia-vento-colhe-tempestade.shtml).
[5] Formação de um pensamento político autoritário na Primeira República: uma interpretação. In: FAUSTO, Boris (org.) História geral da civilização brasileira – o Brasil republicano. São Paulo: Difel, 1977.