Coronavírus: o aumento das demandas dos trabalhadores e a decepção com Sanders nos EUA

Por Sena Aydin
Partido da Democracia Operária (IDP)
Seção turca da UIT-QI
Tradução Lucas Schlabendorff

Há aproximadamente um mês, o número total de casos de coronavírus nos EUA era de 2.825, e o número de mortes era só 56. No último mês em curso, os EUA se tornaram o epicentro da pandemia mundial. Em 15 de abril, o número de casos no país chegou a 644.089 e o número de mortes a 29.529. Só entre 15 de março e 4 de abril, 16,8 milhões de estadunidenses solicitaram seguro desemprego, o que representa 10% da força de trabalho total do país.

No país, não se pode falar da existência de um sistema de saúde pública operacional, e mais de 60% da população ativa tem seguro de saúde através de seus empregadores. Estar desempregado significa perder os benefícios do seguro de saúde, além do salário. O sistema de saúde do país já entrou em colapso. Inclusive os hospitais das grandes cidades como Nova Iorque e Chicago sofrem uma falta grave de EPIs; os trabalhadores da saúde dizem que precisam usar a mesma máscara durante 2 dias e usar sacos de lixo como EPI. As filas de automóveis que se estendem por quilômetros de distância em frente aos bancos de alimentos que são administrados por empresas privadas e ONGs, se tornaram uma visão comum.

Os casos de mortes de Covid-19 também aumentam a cada dia nos campos de imigrantes do Serviço de Imigração e Aduanas dos Estados Unidos (ICE) e nas prisões federais e estatais. Milhares de imigrantes detidos, solicitantes de asilo e prisioneiros tentam sobreviver em condições deploráveis, nas quais não são tomadas medidas sanitárias contra o vírus. Cavam valas comuns na cidade de Nova Iorque, o centro da pandemia no país. Como o racismo é o fundamento de ordem institucional e social nos Estados Unidos, a pandemia atinge desproporcionalmente aos imigrantes e à população negra e pobre, que estão submetidos aos trabalhos mais precários. Os exemplos mais surpreendentes dos dados sobre a desigualdade racial e o coronavírus provém da cidade de Chicago e o estado de Michigan. Em Chicago, onde os negros constituem 32% da população da cidade, 72% das mortes totais ocorreram nas áreas de baixa renda habitadas por negros. Em Michigan, a taxa de mortalidade da população negra, que é apenas 14% da população do estado, é 8 vezes maior que a da população branca. A partir de 11 de abril, se declarou o estado de emergência em todos os estados dos EUA pela primeira vez na história do país, e muitos setores não essenciais seguem produzindo em meio à ameaça do coronavírus, ainda que a maioria das empresas estejam fechadas. O presidente Trump insiste em reabrir a economia dos EUA a partir de 1 de maio, às custas das vidas dos trabalhadores.

A onda de lutas dos trabalhadores

Diante de todos esses acontecimentos, em vários estados dos EUA estão havendo cada vez mais ações de trabalhadores de diversos setores. Os trabalhadores sindicalizados e não sindicalizados, que se veem obrigados a trabalhar em condições inseguras para manter os privilégios de seus patrões, se organizam em seus locais de trabalho e realizam várias paralisações e greves. Os trabalhadores dos armazéns Barnes Noble e Amazon, cujas taxas de pedidos online aumentaram enormemente durante o surto, deixaram de trabalhar devido as condições de trabalho inseguras, as condições sanitárias inadequadas e a falta de EPIs nas instalações dessas empresas em Nova Jersey e Nova Iorque, respectivamente. O CEO da Amazon, Jeff Bezos, despediu esses trabalhadores que se mobilizaram, no mesmo dia em que anunciou que havia feito uma doação de 100 milhões de dólares a um banco de alimentos, com a esperança de impressionar o público. Bezos, que não paga nenhum imposto ao governo dos EUA, ganha 9 milhões de dólares por hora. Os trabalhadores da rede de supermercados Whole Foods, também propriedade de Bezos, haviam sofrido cortes em seus benefícios de seguro médico em setembro. Eles exerceram seu direito a não ir trabalhar em todos os ramos da rede de supermercados em todo o país, exigindo melhorias em seus benefícios de seguro médico, medidas de proteção contra o vírus em seus locais de trabalho e pagamento por insalubridade para todos os trabalhadores. Essa ação foi seguida por greves dos trabalhadores do McDonalds’s em todo o país, especialmente nas filiais dos estados de Illinois, Califórnia, Flórida e Carolina do Norte. Cerca de 200 trabalhadores empregados pela Kroger, outra gigante dos supermercados, abandonaram seus postos de trabalho em Memphis, pela inação da empresa, depois que muitos trabalhadores foram contagiados com a Covid-19 devido às péssimas condições de higiene no local de trabalho. A greve dos trabalhadores do McDonald’s foi uma das quase 150 greves das áreas de restaurantes que aconteceram em vários lugares do país desde a metade de março. Os trabalhadores do matadouro de aves da Purdue, na Geórgia, também se uniram as greves da indústria alimentícia, exigindo melhores e mais seguras condições de trabalho e pagamento por insalubridade.

As ações dos trabalhadores não se limitaram as indústrias de distribuição e alimentação. Os trabalhadores da General Electric que fabricam motores de aviões deixaram de trabalhar nas fábricas da empresa em Massachussetts e em Boston, onde se encontra a sede da empresa. Exigiram uma mudança imediata da produção de motores de avião para a de respiradores. Também houveram greves nas plantas de fabricações da Fiat Chrysler e da General Motors em Michigan. Ainda que a maioria das empresas da indústria automotriz anunciaram que iriam fechar, a maioria das plantas de fabricação e montagem do setor seguem funcionando. Se produziram importantes greves no setor de transporte, principalmente em Detroit e Birmingham. Os motoristas de ônibus urbanos deixaram de prestar seu serviço por falta de medidas de segurança adequadas para os trabalhadores e usuários do transporte público. Os empregados do MTA, o sistema de transporte público da cidade de Nova Iorque, estão se preparando para uma greve.

As enfermeiras das cidades de Detroit e Chicago, onde o surto ainda não chegou ao seu ponto máximo, paralisaram o trabalho e realizaram greves de desaceleração por várias horas exigindo EPIs e licenças por enfermidade remuneradas, assim como a nacionalização do sistema de saúde. No estado da Pensilvânia, os trabalhadores de farmácias e saneamento declararam greve contra as péssimas condições de trabalho e a falta de medidas de segurança contra o vírus.

Qual é a resposta dos sindicatos?

Enquanto cresce a luta dos trabalhadores estadunidenses contra o coronavírus e os patrões, as principais federações sindicais do país, como a UAW, a AFT, a NEA, a AFL-CIO, UNITE HERE e o SEIU estão ocupadas apoiando Joe Biden, o candidato coorporativo do Partido Democrata, com o qual essas federações colaboraram historicamente, para manter os patrões contentes e conter as lutas operárias de baixo para cima. Nem sequer apoiam seus membros em greve, e muito menos tratam de apoiar as greves espontâneas ou desenvolver uma linha de luta unificada para aumentar as demandas dos trabalhadores, tais como licenças remuneradas, medidas de segurança nos locais de trabalho, fechamento de setores não essenciais, pagamento por insalubridade nos setores essenciais, ou o direito à saúde pública e o tratamento médico gratuito! Por exemplo, a greve dos condutores de ônibus urbanos em Detroit foi uma greve selvagem (espontânea). Seu ramo sindical local a apoiou, enquanto que seu principal sindicato, ATU (Amalgamated Transit Union), e sua federação a qual é filiado (AFL-CIO), trataram de suprimi-la. A AFL-CIO também se nega a apoiar qualquer ação ou companha de greve organizada pela National Nurses United, outra de suas filiadas. Uma situação similar ocorreu na fábrica da General Motors, onde os trabalhadores estão sindicalizados com a UAW. O trabalhador que atuou como representante da UAW na fábrica da General Motors em Wyoming tratou de organizar uma greve em toda a fábrica devido às condições de segurança inadequadas, quando um de seus companheiros deu positivo para o exame da Covid-19. A empresa o despediu. A administração da General Motors decidiu assim porque ele teria violado um artículo do acordo coletivo dos trabalhadores com a empresa que estabelece que os trabalhadores devem “se abster de atacar, ameaçar, intimidar, usar a força ou intervir contra o empregador ou outros trabalhadores”. A administração da UAW apoiou a decisão da empresa.

Na semana passada através do Twitter, os líderes da UAW e da AFT anunciaram pela primeira vez que suas federações apoiam Joe Biden, o candidato corporativo do Partido Democrata, que representa os interesses históricos e institucionais do partido na promoção do sistema de exploração capitalista. Para tal apoio institucional, os líderes não buscaram o consentimento de seus membros sindicais, a maioria dos quais se negam a apoiar a Biden. Mais tarde nessa semana, através do Twitter de novo, os mesmos líderes das federações pediram irresponsavelmente para que fossem votar nas primárias do Partido Democrata em Wisconsin. A primária aconteceu em 7 de abril, apesar da pressão pública para que fosse adiada devido à rápida propagação da pandemia. Somente 5 dos 180 lugares de votação previamente determinados estavam abertos durante a primária, o que provocou muitas filas e dificultou muito a manutenção da distância social adequada. Esses tweets receberam sérias reações dos trabalhadores que acusaram a direção burocráticas de colocar suas vidas em perigo (depois dessas reações os tweets foram apagados). A direção dessas federações, que destinam a cotização de seus membros e seus fundos sindicais ao Partido Democrata sem o consentimento dos trabalhadores, não utilizou os fundos sindicais para apoiar e promover as lutas e mobilizações da classe trabalhadora em todo o país frente à pandemia. Em seu lugar, doaram uma parte significativa de seus fundos para a campanha de Joe Biden, o último recurso do Partido Democrata para frear a ascensão de Bernie Sanders, o candidato que obteve um apoio esmagador da classe trabalhadora. (Também é preciso ter em conta que essas federações doam fundos a instituições estadunidenses que fazem lobby para Israel, e a organizações não governamentais anti palestinas em Israel e que colaboram com a CIA na América Latina para estrangular os movimentos dos trabalhadores nos anos 70 e 80).

Devido à forma em que está estruturado o sistema de sindicatos nos Estados Unidos, a direção dos sindicatos locais, regionais e setoriais e os ramos sindicais no local de trabalho têm muita pouca margem para atuar com independência das direções burocráticas de suas federações mencionadas. Na maioria dos casos, as próprias federações elegem os dirigentes utilizando diversas manobras e ameaças financeiras; afastam os trabalhadores combativos dos sindicatos utilizando pressões burocráticas e práticas de manipulação e difamação. Portanto, o sistema sindical do país se baseia em uma burocracia sindical vertical forte e consolidada, e está controlado por ela. É assim que as direções burocráticas podem impor acordos coletivos muito débeis que privam a classe trabalhadora de seus meios básicos de luta (na maioria dos casos incluindo o direito de greve) e protegem os patrões enquanto condenam os trabalhadores a pequenas conquistas. Então é possível afirmarmos que a maioria dos sindicatos estão limitados na hora de levar adiante atividades independentes e organizar-se, não somente agora com a pandemia, mas também nos tempos “normais”.

Existem uns poucos sindicatos e ramos sindicais no país que podem sair dessa sombria equação e estão comprometidos com os processos democráticos com presença de dirigentes combativos. Mas pode-se dizer que, com a pandemia, os sindicatos combativos e as organizações de trabalhadores estão se fazendo mais visíveis. Por exemplo, o Local 26 da ATU/AFL-CIO onde estão organizados os condutores de ônibus da cidade de Detroit, a Associação Nacional de Enfermeiras de Chicago, a Associação de Enfermeiras do Estado de Nova Iorque, a Associação de Enfermeiras de Michigan, o Sindicato dos Empregados da Indústria de Serviços e o Sindicato de Trabalhadores Têxteis de Los Ângeles, e o Sindicato de Trabalhadores da Target Unite, entre outros, agora estão organizando redes nacionais de luta, lançando campanhas em torno das demandas e necessidades de seus trabalhadores, e apoiando várias greves de trabalhadores. Lembremos também que, em 2018 e 2019, graças à pressão pela base dos trabalhadores frente as federações de colaboração de classes, milhares de professores estaduais realizaram greves durante muitos meses em vários estados dos Estados Unidos e conseguiram avanços concretos. A isso se seguiu a greve de 48.000 trabalhadores da General Motors em mais de 50 fábricas no mês de setembro passado durante as negociações do acordo coletivo, apesar da oposição e desânimo da cadeira de comando da UAW. Tendo em conta tudo isso, podemos dizer que está surgindo no país um movimento sindical combativo, que desafia o domínio das federações que atuam mais como organizações patronais para reprimir os trabalhadores. O processo da Covid-19 não só reúne diversas lutas dos trabalhadores e sindicatos combativos que em outros momentos permanecem isolados entre si, mas também acelera esse movimento sindical combativo e emergente e demonstra a necessidade de um sindicalismo unido e combativo que se organize contra os patrões e o sistema capitalista.

O que acontece com Bernie Sanders?

Bernie Sanders, que havia se convertido no representante da libertação social e econômica da classe trabalhadora, da juventude, dos imigrantes, da população negra e dos ativistas sociais com um programa que chamou de “socialismo democrático”, anunciou a retirada de sua candidatura presencial das prévias do Partido Democrata em 2020 e terminou sua campanha no dia 8 de abril. A esse anuncio se seguiu outro no dia 13 de abril, onde Sanders anunciou seu apoio ao candidato institucional dos democratas, Joe Biden.

Sanders havia empurrado a direção burguesa dos democratas e as oligarquias financeiras e comerciais, profundamente enraizadas no partido, para uma profunda crise depois que saiu ganhador das três primeiras e importantes primárias democratas. O partido pode lidar com essa crise e bloquear o avanço de Sanders retirando todos os demais candidatos que se apresentaram para dividir os votos contra Sanders um por um, e consolidando-se em torno de Biden, que era o nome menos provável e menos popular para se converter no candidato presidencial do partido até umas semanas atrás (a consolidação em torno de Biden se atribui a Barack Obama, outro títere do Partido Democrata).

Sanders nunca criticou o antidemocrático sistema de representação política bipartidarista nos Estados Unidos. Frente as políticas imperialistas e pró guerra de Trump e seu próprio Partido Democrata, tomou uma atitude conciliadora, ou diretamente se calou. Além do fato de que não havia nem uma só palavra sobre a corrupta democracia estadunidense, ou o monstruoso imperialismo estadunidense em seu programa, esse tampouco defendia a expropriação da burguesia. Tudo isso para dizer que estava claro desde o princípio que sua campanha não era em absoluto socialista. Porém, também é inegável que, graças às reivindicações básicas que seu programa havia impulsionado, como o direito a saúde e a educação gratuitas, a imposição de impostos aos ricos, o perdão das dívidas da educação e as reformas legais em favor dos trabalhadores e imigrantes, Sanders recebeu o apoio popular e a mobilização de um importante setor da classe trabalhadora que vem sofrendo com as políticas neoliberais e diversos cortes de direitos sociais. Pelo menos, a classe trabalhadora norte-americana passou a considerar o socialismo como uma alternativa legítima ao identificar-se com ele.

Mas parece que isso não significou nada para Sanders. Se retirou da corrida presidencial do Partido Democrata com a desculpa de que já havia perdido a oportunidade de ganhar a corrida pela candidatura democrata na Convenção Nacional. Terminou sua campanha quando as demandas básicas coincidiram quase exatamente com as demandas urgentes das crescentes lutas dos trabalhadores em todo o país frente à pandemia. Portanto, Sanders, uma vez mais, cometeu uma traição histórica à classe trabalhadora. E como se isso fosse pouco, apoia Biden, que é um defensor asqueroso do sistema de exploração capitalista e que continuará todas as políticas anti operárias de Trump agitando uma cenoura ao invés de um chicote (como fez Obama). Ficou claro onde mora a lealdade de Sanders: não dentro da classe trabalhadora e do socialismo, mas sim nas profundezas institucionais do Partido Democrata e do capitalismo.


Publicado originalmente no site da UIT-QI em 22 de abril de 2020: http://www.uit-ci.org/index.php/noticias-y-documentos/noticias-internacionales/2542-2020-04-23-17-21-42 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *