O REAL SIGNIFICADO DA ABOLIÇÃO
INTRODUÇÃO
A Lei Áurea, de 13 de Maio de 1888, votada no Senado e assinada pela Princesa Isabel, foi uma tentativa de salvar o regime monárquico da ameaça republicana e da exaustão do modelo econômico mercantilista baseado no trabalho escravo, o principal sustentáculo da sociedade colonial e imperial brasileira. Um modelo há muito insustentável, tanto pelo fato de que a luta de resistência dos quilombolas diminuiu e muito a população negra no cativeiro, bem como também em razão das pressões do imperialismo inglês que de acordo com seus interesses econômico-políticos exigia o fim do sistema escravagista.
Por isso mesmo, que o movimento negro não vê motivos para comemorações nessa data. Quem comemora, enaltece a monarquia que deixou de assegurar direitos à população negra durante e após a abolição, reforçando o mito do “negrinho” pacífico e submisso, em detrimento do reconhecimento da luta dos verdadeiros heróis e heroínas do povo preto que impulsionaram o verdadeiro processo da abolição da escravatura no Brasil.
A tal liberdade foi “dada” pela princesinha branca, sem qualquer política de emprego e educação, perpetuando a exploração da mão de obra dos ex-cativos nas fazendas e nos serviços domésticos, em condições precárias e sem medidas reparatórias pelos mais de três séculos de escravidão, como a posse de terras e pagamentos de valores indenizatórios ao povo negro. Lembrando ainda que aabolição ocorreu de modo simultâneo ao incentivo à imigração de populações europeias para o Brasil, naquilo que ficou evidenciado como uma tentativa de branqueamento do proletariado brasileiro. Enquanto a violência e exclusão continuaram a atingir a população negra, na cidade e no campo.
Sendo assim, reconhecemos a afirmação do movimento negro ao dizer que o 13 de maio é o dia nacional de luta contra o racismo. E, partindo da observação dos fatos na história, que apontam quem é quem na divisão do trabalho entre colonos e escravos na fundação da sociedade brasileira, concluímos que a luta do povo negro contra a escravidão é o que dá origem a luta de classes no Brasil, pois os negros constituem a classe dos produtores explorados, e os senhores de escravos com a nobreza a classe parasita exploradora, durante todo o período histórico do século XVI ao XIX.
Antes de Cabral – O COMÉRCIO DO “BRANCO REFINADO” DETERMINOU O DESTINO CATIVO DO NEGRO AFRICANO NO BRASIL
Desde o século XV, no sul de Portugal e posteriormente nas ilhas do norte da África, era comum a escravidão de negros em associação com engenhos de açúcar. E isso intensificou-se ao longo dos séculos XVI e XVIII, graças ao tráfico negreiro para o Brasil.
As ilhas do norte da África tornaram-se um grande experimento para as futuras atividades comerciais da Coroa Portuguesa no Brasil: as técnicas de produção, a organização interna, a proporção entre colonos e escravos. Até mesmo a resistência escrava viraria uma dessas lições bem aprendidas pelos novos senhores, que iriam ser bem aplicadas na colônia americana.
A lógica mercantilista no início da Idade Moderna
No século 16, o início da colonização da América foi um desdobramento da expansão marítima e comercial, iniciada pelos portugueses no século anterior. Os espanhóis foram os primeiros a encontrar ouro e prata em grande quantidade, em solo americano. Aos portugueses, que haviam dividido o mundo com os castelhanos no Tratado de Tordesilhas, em junho de 1494, restou manter a pujança de sua atividade mercantil através das especiarias do Oriente e do açúcar produzido e exportado pelas capitanias de Pernambuco e da Bahia.
Na Europa, naquele período, pensava-se a riqueza disponível no mundo como algo que não poderia ser ampliado e, portanto, cada nação do velho mundo se empenhava em assegurar para si a maior porção possível dessa riqueza supostamente limitada. O ouro e a prata, circulantes na forma de moedas ou trancafiados nos cofres dos reis eram entendidos como sua tradução, daí a verdadeira febre de busca dos chamados metais preciosos principalmente no Novo Mundo.
Ingleses, holandeses e franceses, que se empenhavam em invadir terras americanas reivindicadas pelos países ibéricos, buscavam manter um saldo positivo em suas balanças comerciais como um meio de atrair para si e estocar metais preciosos. A forte presença do Estado se fazia sentir através do incentivo à expansão do comércio, de ações armadas na disputa de novos mercados, na regulamentação das atividades mercantis, na concessão de monopólios para a exploração das riquezas das colônias, na taxação de manufaturados importados que pudessem competir com os produtos de seus próprios países – e, como isso, provocar uma evasão do ouro e da prata – além, é claro, da cobrança de impostos sobre o crescente comércio. Quanto maior o lucro da burguesia, maior a arrecadação do Estado; quanto maior a diferença entre os valores exportados e os que se importava, maior o volume de ouro e prata mantido no país.
O monopólio do comércio das colônias americanas – também chamado exclusivo metropolitano – por grupos mercantis metropolitanos era, portanto, uma forma de manter um fluxo contínuo de riquezas da América para a Europa, promovendo o que Karl Marx, no século 19, chamou de acumulação primitiva do capital. Cabe ainda lembrar que as práticas mercantilistas não foram aplicadas da mesma maneira por todos os Estados da Europa. Cada um atuava de acordo com o que lhe fosse mais viável, privilegiando mais determinado setor.
Desse modo, montou-se no Brasil, a partir de 1516, sob as ordens do rei D. Manuel, toda uma estrutura moldada na formação de grandes unidades produtivas – os latifúndios -, dedicadas ao plantio de um só gênero de exportação e à produção em larga escala, o açúcar, com a exploração da mão de obra escrava. Esse único produto possuía todos os requisitos que exigia a moda do excesso, muito em voga nas cortes europeias do século XVI: excesso de doce, de sabor, de calorias, de luxo e de poder.
Mas, os anos dourados do Brasil canavieiro, só tiveram início no final do século XVI, com a produção alcançando 350 mil arrobas e a colônia voltando-se totalmente para o gênero, enquanto a metrópole estabelecia o monopólio real.
Da mão de obra “inapropriada” dos indígenas ao trabalho forçado dos africanos.
A briga entre colonos e a Igreja católica, no que diz respeito a escravização indígena foi uma constante. Do ponto de vista da moral religiosa, os indígenas foram considerados “inapropriados” para o cultivo e o trabalho agrícola. Mas, a despeito disso, os indígenas foram escravizados por um longo período.
Por sua vez, a abertura para um mercado lucrativo, como o do açúcar, demandava saídas mais duradouros, estáveis e distantes de controvérsias religiosas moralistas. Foi dessa maneira que se casaram os lucros da cana com aqueles provenientes do “tráfico de escravos”. A introdução de um sistema mercantil em que seres humanos viravam mercadorias e seu comércio resultava em vultosos lucros, garantia a coroa portuguesa as duas pontas do mercado: o provimento de mão de obra e o monopólio da cana.
A importação de africanos cobria a falta de mão de obra indígena, uma vez que as epidemias, obtidas através da convivência com os invasores brancos, a mortalidade ligada ao trabalho forçado e ao recrudescimento das guerras indígenas provocadas pelos colonos, a fuga de tribos inteiras para o interior, associados ao deslocamento da população nativa para aldeias controladas pela Companhia de Jesus, acabaram por inviabilizar o trabalho cativo dos índios.
O papel dos jesuítas com relação aos indígenas merece um parágrafo a parte. A Companhia de Jesus transformou-se numa verdadeira potência econômica. Os jesuítas, que administravam a Companhia, enriqueceram, alugando casas, arrendando terras e controlando o rico comércio de especiarias cultivadas nas aldeias por eles catequisadas. Esses eram os verdadeiros motivos que fizeram com que os “soldados de Cristo” protegessem os índios da escravidão, reconhecendo-os como homens verdadeiros, à imagem de Deus e, portanto, merecedores de catequização. Assim, se a “liberdade” – entendida como a catequese nos aldeamentos – era o “regalo” dos índios aliados, a escravidão era o destino dos “selvagens” rebelados.
A percentagem de escravos índios evolvidos na produção do açúcar foi diminuindo à medida que os senhores de engenho enriqueciam e podiam importar mão de obra africana. Tratar os africanos como “coisa” era natural, regra, aliás, seguida pela Igreja Católica, que os possuía às centenas em seus conventos e propriedades. O castigo físico exagerado era, contudo, condenado pela santa igreja. Mas, não por razões humanitárias, e, sim, como zelo pelo investimento neles depositados. Os jesuítas advertiam os senhores de engenho: “Aos feitores, de nenhuma maneira se deve consentir o dar chutes, principalmente nas barrigas das mulheres grávidas, nem dar pauladas nos escravos porque na raiva não se medem os golpes, e pode ferir na cabeça um escravo que vale muito dinheiro, e perde-lo. Melhor e mais eficiente seria dar-lhe algumas varadas com cipó nas costas”.
No Brasil, a exigência de passaportes, passes e bilhetes senhoriais durante o deslocamento dos cativos demonstrava a preocupação das autoridades em manter o controle destes e, ademais, sobre qualquer indivíduo que apresentasse possíveis traços de pertencimento à escravidão. Situação muito comum era a detenção de negros e negras para a conferência dos documentos de deslocamento e comprovação de identidade. Nessas ocasiões, muitos homens livres, que, embora estivessem fora de seu meio social, portavam registros para atestar sua liberdade, foram facilmente aprisionados e outra vez vendidos como escravos.
Era difícil escapar a escravidão. E, como no Brasil ela tomou todo o território nacional, e foi responsável pela maior importação forçada de mão de obra africana até hoje conhecida, de tão disseminada, a escravidão deixou de ser privilégio dos grandes senhores de engenho. Padres, militares, funcionários públicos, artesãos, taberneiros, comerciantes, pequenos lavradores, pobres e remediados, e até libertos possuíam escravos. Por essas e outras é que a escravidão moldou condutas, definiu desigualdades sociais, ordenou etiquetas de mando e obediência, fez de raça e cor marcadores de diferença fundamentais, criando uma sociedade condicionada pelo paternalismo e por uma hierarquia estrita e racista em sua estrutura, que se estende do período colonial-escravocrata até os dias atuais.
A luta dos negros pelo fim da escravidão
Engana-se quem acredita que os africanos foram escravizados passivamente, os historiadores sérios sabem que inúmeras formas de resistência dos escravos foram desenvolvidas. A resistência contra a escravidão já começava no embarque dos africanos nos navios negreiros. O risco de revoltas dos africanos nos navios negreiros era tão alto que os traficantes de escravos diminuíam, deliberadamente, as porções de comida para reduzir as possibilidades de revoltas, que aconteciam, geralmente, quando o navio estava próximo da costa.
As revoltas dos africanos nos navios negreiros eram tão comuns que os traficantes tinham na tripulação do navio intérpretes que falavam os idiomas dos africanos e poderiam alertar em caso de possibilidade de revolta dos aprisionados. As revoltas, porém, não se resumiam apenas aos navios negreiros.
Aqui no Brasil, inúmeras revoltas aconteceram. Os historiadores costumam apontar que os escravos africanos eram mais combativos que os escravos crioulos (nascidos no Brasil), porque muitos dos africanos vinham de povos que tinham um grande histórico recente de envolvimento com o combate e a guerra. Esse foi o caso de nagôs e haussás. Apesar disso, os escravos crioulos também se rebelavam e, ao longo de nossa história, existem inúmeros exemplos disso.
A rebeldia dos Quilombos
A resistência dos escravizados deu origem a mocambos ou quilombos guerreiros, surgidos na América portuguesa a partir do século XVI. A palavra “mocambo” significa “esconderijo”; já “quilombo” foi o termo utilizado em algumas regiões do continente africano, especialmente em Angola, para caracterizar um tipo de acampamento fortificado e militarizado, composto de guerreiros que passavam por rituais de iniciação, adotavam uma dura disciplina e praticavam a magia. O uso de “quilombo” para designar agrupamentos de cativos, homens e mulheres fugidos se generalizou depois de Palmares, e a palavra foi mais empregada no século XVIII. De tão temerosas, as autoridades portuguesas logo proibiram a aglomeração de mais de seis escravos fora do trabalho.
A proliferação de mocambos e quilombos foi o resultado de uma combinação mais complexa do que a apontada pela evidente associação entre refúgio e acampamento militarizado. O quilombo não era só um lugar transitório; tampouco era apenas um esconderijo estabelecido pela ordem escravista, de um lado, e pelo isolamento absoluto, do outro lado. Essa forma de organização, luta e resistência foi construída por homens e mulheres. O quilombo significou uma alternativa concreta à ordem escravista – e, por isso, tornou-se uma ameaça amedrontadora para a sociedade colonial e para as autoridades, que precisavam combatê-lo de modo sistemático. Mas ao mesmo tempo, o quilombo era parte da sociedade que o reprimia, em função dos diversos vínculos que tinha com os diferentes setores desta. Tais vínculos de natureza muito variada, incluíam toda sorte de relações comerciais com as populações vizinhas, a formação de redes mais ou menos complexas para obtenção de informação e até relações de interesses afetivos.
Uma impressionante variedade de personagens e de tipos sociais transitava, com modalidades diversas de interesse ou cumplicidade, nas imediações dos quilombos – e essa variedade não era necessariamente composta de negros ou cativos. Haviam contrabandistas encarregados de negociar produtos; escravos que permaneciam nas fazendas atuando silenciosamente como canais de informação e de ligação entre diferentes quilombos; comerciantes e mascates que abasteciam tais refúgios de pólvora, aguardente, sal e roupas, além de vender os butins dos quilombolas salteadores.
Cada Quilombo tem sua história. Tradicionalmente, os quilombos eram das regiões de grande concentração de escravos, afastados dos centros urbanos e em locais de difícil acesso. Embrenhados nas matas, selvas ou morros, esses núcleos se transformaram em aldeias, dedicando-se à economia de subsistência e às vezes ao comércio, alguns tendo mesmo prosperado.Mas Palmares – a maior comunidade de escravos fugidos e possivelmente a que sobreviveu por mais tempo na América portuguesa, por cerca de um século, localizada na Serra da Barriga, região que antes pertencia a capitania de Pernambuco e atualmente em Alagoas – ainda hoje parece resumir, para a imaginação brasileira, a notável tradição de resistência e rebeldia do Quilombo guerreiro.
Palmares passou a designar não só um campo de refugiados ex-escravos, mas uma extensa confederação de comunidades dos mais diversos tamanhos, vinculados por acordo umas com às outras, que conduziam os próprios negócios, dispunham de autonomia e escolhiam seus líderes. Boa parte dos primeiros habitantes de Palmares veio da África, mais precisamente dos atuais Estado de Angola e do Congo, e, embora durante seu período de maior crescimento a confederação quilombola tenha formado uma comunidade multiétnica, foi essa população originária que deu ao refúgio o nome de “pequena Angola”. Essa nação africana no Brasil mostrava que seus habitantes se reconheciam estrangeiros aqui e confirmava que Palmares era uma comunidade politicamente organizada com a administração pública, leis próprias, forma de governo, estrutura militar, e princípios religiosos e culturais que fundamentavam e fortaleciam a identidade coletiva. Um verdadeiro Estado de ex escravos dentro de uma sociedade escravocrata.
Palmares aproveitou a crise entre Portugal e Holanda que se instalou com a ocupação holandesa da área produtora de açúcar no Nordeste – a capitania de Pernambuco -, para crescer, e esse foi um padrão recorrente de resistência escrava ao longo do tempo: de muitas maneiras, os cativos sempre agiam nos momentos em que a sociedade escravista estava dividida, ou por guerra, ou por invasão estrangeira, ou por dissensões internas.
Mas foi a divisão também entre os quilombolas de Palmares que determinou o fim dessa comunidade guerreira de ex-escravos. O acordo de Recife feito por Ganga Zumba com as autoridades coloniais, previa devolver aos agentes da Coroa portuguesa os escravos fugidos que não tivessem nascido nos quilombos. Em troca, Portugal garantia alforria, terras sob forma de sesmaria (terra não cultivadas ou abandonada) e foro de vassalos da Coroa para os naturais de Palmares. Esse acordo opôs Ganga Zumba a Zumbi, anulando assim a unidade entre os quilombolas, dando início ao período mais violento da história daquele Quilombo. Considerado traidor, Ganga Zumba foi envenenado e seus chefes militares, sumariamente degolados. Nos 15 anos que se seguiram a esse fato, Zumbi liderou a guerra palmarina contra as autoridades portuguesas, resguardou a autonomia dos quilombos e assegurou a liberdade de seus habitantes. Essa guerra só se encerrou em 1694 com a execução de Zumbi e a destruição de Palmares.
Daí em diante, Palmares serviria de exemplo tanto para a vitória da repressão, e também como símbolo de uma luta de resistência negra que tira dos escravizados a pecha de vítimas passivas. Durante os séculos XVIII e XIX, enquanto existiu a escravidão negra no Brasil, os senhores de escravos e a monarquia temiam que o fenômeno do poderoso Estado negro formado por uma confederação de quilombos se repetisse. E pela extrema violência policial que atinge as favelas, podemos supor que esse medo de Palmares está presente na classe dominante capitalista atual, predominantemente branca, que em grande parte é herdeira do DNA e da riqueza acumulada dos traficantes e senhores de escravos do passado. Crivela, Witzel e Bolsonaro encarnam perfeitamente o papel do feitor-mor, contratado pelos senhores de fazenda e que tinha como função principal cuidar, vigiar e castigar os escravos.
Depois da Independência do Brasil a palavra de ordem entre as elites regionais era proclamação da República
O autoritário Dom Pedro I, aquele do grito do Ipiranga em 7 de setembro de 1822, estava cada vez mais impopular entre os membros das elites regionais. E o motivo dessa impopularidade foi a dissolução, feita por ele em 1823, da Assembleia Constituinte e a criação do Poder Moderador que lhe garantia poderes semelhantes ao dos reis absolutistas. Ora, o sucesso inicial da independência se deve à adesão de várias províncias, exatamente, à convocação da Assembleia Constituinte e Legislativa do Brasil, acatada pelo regente em 3 de junho de 1822, ou seja, antes da data histórica do rompimento definitivo com a pátria mãe. Com a dissolução da Assembleia, as elites provinciais passaram a ver a independência como um retrocesso em relação às conquistas da Revolução do Porto ( Movimento português de 1820, de caráter liberal e constitucional que contou com o apoio de representantes coloniais, eleitos nas diversas províncias que, a partir de então, passavam a ter controle sobre o sistema político e, principalmente, das rendas internas das ex-capitanias). Mas, em vez de voltar a obedecer Portugal ou continuar obedecendo ao Imperador do Brasil, a palavra de ordem era independência local e proclamação da República.
Daí por diante vão surgir vários movimentos republicanos e de cunho separatistas, ou federalistas, com adesão de fazendeiros e populares, como a Confederação do Equador, no ano de 1824, em Pernambuco, com apoio de tropas da Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte. E, no sul, entre 1825 e 1828, envolvendo a Província Cisplatina, uma rebelião vitoriosa que dá origem ao Uruguai. Essas guerras torram grande quantidade de recursos públicos, causando uma crise financeira que resultou numa inflação vertiginosa. No Rio de Janeiro, por exemplo, o preço de alimentos básicos da população pobre e dos escravos, como a farinha de mandioca e o charque, dobram em um espaço de poucos anos.
Paralelo a toda essa situação caótica, o Exército, ampliado às pressas em razão das lutas contra as tropas portuguesas e movimentos separatistas, foge ao controle das autoridades. Composto em grande parte por mercenários estrangeiros, oriundos das guerras napoleônicas, e homens pobres, muitos deles pardos e negros livres, alia-se às demais camadas populares nos ataques a comerciantes portugueses. Estes eram odiados por serem considerados responsáveis pela elevação dos preços dos alimentos no meio urbano.
No início da década de 1830, o clima é de guerra civil. Rio de Janeiro, Ceará, Bahia, Pernambuco e Alagoas são palcos de levantes armados em que fazendeiros, tropas, pequenos proprietários, índios e escravos se ombreiam, ora contra a centralização do poder, ora como expressão de revolta diante da pobreza e da escravidão. É nesse contexto que D. Pedro I, a 7 de abril de 1831, renuncia ao trono brasileiro. A renúncia buscava apaziguar os ânimos no Brasil. Na prática, a abdicação significava a descentralização e a transferência do poder para as elites regionais. A descentralização, porém, não teve o efeito apaziguador imaginado entre as elites regionais e o poder central, pelo contrário, acentuou ainda mais as tendências separatistas. Por exemplo: ao norte a Cabanagem no Pará e no extremo sul a Guerra dos Farrapos no Rio Grande do Sul.
Essa divisão entre os senhores, mais uma vez, dava maior eficácia aos movimentos de contestação escravista, arriscando todo o sistema a sucumbir em razão da luta de classes. Essa possiblidade ficou registrada em 1835, quando da descoberta de planos de um levante de escravos mulçumanos em Salvador, na Bahia, que ficou conhecido como a Revolta dos Malês. O detalhe dessa revolta é que os cativos pretendiam matar todos os brancos e decretar uma monarquia islâmica. No Maranhão também se apresentou um movimento rebelde com um projeto político popular. Iniciada em 1838, entre as elites, essa revolta escapou do controle delas, passando a ser liderada por um escravo fugido e por um fazedor de balaios. A então denominada balaiada criou a possibilidade dos pretos e pobres assumirem o controle do poder, reproduzindo em grande escala a revolução dos jacobinos negros no Haiti em fins do século XVIII, a única insurreição de escravos vitoriosa em toda história humana. A eclosão do movimento rebelde triunfante de negros na colônia francesa de São Domingos, a mais próspera do continente americano, no território onde hoje se localiza a República do Haití.
Diante dessa ameaça, de vitória de uma revolução negra em território brasileiro, é que se articula nos anos de 1837-40, entre os senhores de escravos e a monarquia, o retorno dos mecanismos centralizadores do Primeiro Império. A articulação conservadora da classe dominante abrirá caminho para repressão eficaz aos movimentos separatistas e aos levantes de escravos, assim como dará origem a um projeto nacional que manterá intacto o território brasileiro herdado de período colonial.
Outras modalidades de resistência a escravidão
Fugir era sempre um ato de resistência. Mas, nem toda fuga da escravidão acabava em um Quilombo. Fugia-se com diferentes propósitos: escapar dos castigos violentos, sevícias, estupros, driblar a venda de filhos e pessoas com laços afetivos, reagir a arbitrariedade do senhor, tentar barganhar numa situação de conflito, etc, e, óbvio, conquistar a liberdade.
Nos anos que antecederam a abolição, fugas, revoltas e quilombos fervilhavam no Brasil. Em alguns casos, eram incentivados por militantes – muitos deles, ex-escravos –, que iam para fazendas conscientizar escravos e estimular fugas.
Algumas vezes as fugas tinham como destino Ceará e Amazonas. Em 1884, quatro anos antes da Lei Áurea, ambos Estados já tinham abolido a escravidão, graças a luta dos cativos rebeldes e à pressão dos abolicionistas para criar territórios livres pelo país. O objetivo era justamente ter áreas de refúgio para escravos fugitivos, além de pressionar a monarquia.
Houve até fugas internacionais, em regiões do Brasil próximas à fronteira de países que já estavam livres da escravidão, observa o historiador José Maia Bezerra Neto, da Universidade Federal do Pará. “Existem estudos que apontam fugas de escravos para a Bolívia, Guiana Francesa, Uruguai. Em minhas pesquisas, encontrei até senhor suspeitando de um escravo que tencionava fugir para a Espanha!”.
A abolição não ocorreu como parte dos abolicionistas queria. O engenheiro negro André Rebouças, que fazia a ponte entre o abolicionismo das ruas e o dos gabinetes políticos e é considerado um dos principais articuladores do fim da escravidão, pregava que a abolição fosse acompanhada de uma reforma agrária, que destinasse terras para os ex-escravos. Ele temia que surgisse no Brasil uma nova forma de injustiça social após a abolição. Como de fato surgiu.
A forma que a abolição ocorreu, sem apoio para os ex-escravos começarem uma vida nova, tem consequências negativas até hoje, segundo o presidente da Fundação Palmares, Erivaldo Oliveira. Para ele, é uma das causas da profunda desigualdade racial brasileira. Não houve uma orientação destinada a integrar os negros às novas regras de uma sociedade baseada no trabalho assalariado.
Do capitalismo comercial para o capitalismo industrial
No decorrer do século 18, a Revolução Industrial, na Inglaterra, colocou em xeque a lógica que vinha norteando a política econômica do restante da Europa. A maioria do capital da industrialização não era mais dependente do tráfico negreiro e pedia novos mercados. O fim do tráfico e da escravidão, estimularia o investimento do capital em outras áreas e aqueceria o mercado com novos consumidores.
Já os espanhóis, pioneiros na exploração de ouro e prata na América, e os portugueses que vieram a descobrir o ouro apenas no apagar do século 17, após meio século de decadência da economia açucareira, não estabeleceram prioridades para o desenvolvimento de manufaturas nem reduziram os gastos de seus governos. Quando suas reservas de metais nobres entraram em declínio, tornaram-se dependentes da exportação de matérias primas em troca de tecidos, ferragens e até de comida vinda de países com setores produtivos mais dinâmicos. O resultado foi a perda da capacidade de acumulação do capital, que fluía principalmente para a Inglaterra, onde foi continuamente investido na manufatura e, dessa forma, contribuiu para o desencadeamento da Revolução Industrial.
ESCRAVIDÃO E MODERNIDADE
O Brasil das últimas três décadas do século XIX era uma sociedade em acelerada transformação. A atividade cafeeira vinha ganhando o centro da cena desde pelo menos 1840. O setor exportador torna-se o polo dinâmico da economia, constituindo-se no principal elo do País com o mercado mundial. Havia outras atividades de monta ligadas à exportação, como a borracha e a cana. Mas, a essa altura, a supremacia do café era incontestável.
A partir de 1870, com o fim da Guerra do Paraguai (1864-1870), a agricultura de exportação vive uma prosperidade acentuada. Um expressivo fluxo de capitais, notadamente inglês, foi atraído para as áreas de infraestrutura de transportes – ferrovias, companhias de bonde e construção de estradas – e atividades ligadas à exportação, como bancos, armazéns e beneficiamento, todos garantidos pelo Estado.
O período marca a supremacia incontestável do império britânico. A expansão da economia internacional e a demanda crescente por matérias primas por parte dos países que viviam a Segunda Revolução Industrial resulta em um ciclo de investimentos nos países periféricos. O historiador inglês Eric Hobsbawm assinala o seguinte em seu livro A Era dos Impérios:
“O investimento estrangeiro na América Latina atingiu níveis assombrosos nos anos 1880, quando a extensão da rede ferroviária argentina foi quintuplicada, e tanto a Argentina como o Brasil atraíram até 200 mil imigrantes por ano”.
A implantação de uma dinâmica capitalista – materializada nos negócios ligados à exportação de café, como casas bancárias, estradas de ferro, bolsa de valores etc. – vai se irradiando pela base produtiva. Isso faz com que parte da oligarquia agrária se transforme numa florescente burguesia, estabelecendo novas relações sociais e mudando desde as características do mercado de trabalho até o funcionamento do Estado.
Para essa economia, o negro cativo era considerado uma peça obsoleta. Além de seu preço ter aumentado após o fim do tráfico, em 1850, o trabalho forçado mostrava-se mais caro que o assalariado. Caio Prado Jr. (1907-1990), em seu livro História econômica do Brasil, joga luz sobre a questão:
“O escravo corresponde a um capital fixo cujo ciclo tem a duração da vida de um indivíduo; assim sendo, (…) forma um adiantamento a longo prazo do sobre trabalho eventual a ser produzido. O assalariado, pelo contrário, fornece este sobre trabalho sem adiantamento ou risco algum. Nestas condições, o capitalismo é incompatível com a escravidão”.
A Abolição não era apenas uma demanda por maior justiça social, mas uma necessidade premente da inserção do Brasil na economia mundial, que já abandonara em favor do trabalho assalariado, mais barato e eficiente.
Um artigo publicado no semanário abolicionista Revista Illustrada, em 30 de abril de 1887, argumenta que a economia brasileira àquela altura já não dependia majoritariamente do trabalho servil:
“Pelos dados do Ministério da Agricultura, calcula-se que a cifra dos escravizados não chegue a 500 mil. Tirem-se as mulheres (50%), tirem-se os escravos das cidades, que nada produzem, e ver-se-á que o que fica para auxiliar a produção nacional é uma cifra tão irrisória, que podemos, com orgulho, afirmar, que a produção do nosso país já é devida aos livres”.
Foi com esse caldo de cultura que se preparou a Abolição como uma intervenção restrita à libertação, sem medidas complementares, como reforma agrária, ampliação do mercado de trabalho, acesso à educação, saúde etc.
Conclusão
O que estava em jogo para a elite branca não era principalmente uma reforma social, mas a liberação das forças produtivas dos custos de manutenção de um grande contingente de força de trabalho confinada. A escravidão, no final do século XIX, tornara-se um obstáculo ao desenvolvimento econômico. Aí, tornou-se necessário a existência de um proletariado industrial que, na cabeça da nova geração de capitalistas, sairia mais barato com a continuidade da importação da mão de obra europeia, aumentando a quantidade de espanhóis, italianos e alemães que já haviam imigrados para o Brasil. E, assim, com uma cajadada só, tinha-se um operário “moderno” e etnicamente a imagem e semelhança do patrão.
É por isso que o movimento negro não comemora a data do 13 de maio, mas sim o 20 de novembro, que marca a morte de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares, representando a resistência negra. Isso não significa, no entanto, que o 13 de maio não deva ser lembrado, diz Oliveira o presidente da Fundação Palmares: “A abolição foi fruto de uma pressão social. A gente precisa recontar essa história, dos heróis e heroínas que lutaram pelo fim da escravidão”. Sem esquecer que, 131 anos depois da abolição, a desigualdade persiste.
E completamos: Durante esses 131 anos somos maioria no país – 54% da população é afro-brasileira. Somos maioria que ocupa as vagas em serviços braçais ou que exigem pouca instrução escolar, no trabalho informal e desempregados. Somos maioria de analfabetos. Somos maioria nas favelas e nos bairros sem saneamento básico, sem hospitais, sem escola, sem espaços culturais e de lazer. Somos maioria nos presídios. Somos a maioria das vítimas da violência policial. Mas não somos maioria no Congresso Nacional, nos ministérios, nos tribunais, nas universidades, nas grandes empresas privadas. Temos que mudar isso. E só a nossa luta para superar essa realidade de exploração e opressão poderá realmente mudar isso. Morte ao racismo! VIVA DANDARA E ZUMBI!