Subsídios para um balanço da eleição presidencial
I. A vitória de Bolsonaro
A eleição de Jair Bolsonaro, com um programa que defende abertamente a violência política como solução para os problemas nacionais, marca a falência definitiva da Nova República. A escolha de uma candidatura que se apresentava abertamente como uma alternativa antissistêmica manifesta o inequívoco repúdio dos eleitores aos partidos do regime – PSDB, MDB e PT à frente. Depois de uma longa batalha, o partido do “Fora todos reacionário” derrotou o partido do “Salvem-se todos” e ganhou a possibilidade de comandar o governo central.
A democracia de baixa intensidade gestada na transição da ditadura empresarial-militar para o Estado de direito está desabando.
Para os que vivem do próprio trabalho, os partidos convencionais não dão conta de resolver os problemas fundamentais do povo. Para além de melhorias superficiais propiciadas pelos efêmeros momentos de crescimento econômico, após três décadas de ritual eleitoral, as gritantes distâncias sociais e culturais que caracterizam a sociedade brasileira continuam intactas. O voto da massa trabalhadora em Bolsonaro expressou a busca desesperada de uma alternativa à miséria do possível num giro à direita eleitoral, uma maneira de voto castigo no PT.
Para os que vivem da exploração do trabalho alheio, as liberdades democráticas constituem uma ameaça que a plutocracia não mais está disposta a correr. A possibilidade de emergência do povo como sujeito histórico, latente desde a explosão de protestos nas Jornadas de Junho de 2013, levou a burguesia a reconsiderar seus compromissos com o regime democrático. Num contexto de evidente polarização da luta de classes, a decisão de jogar o custo da crise econômica nas costas dos trabalhadores exige mão dura. A burguesia unificou-se em torno do consenso de que a violência política, legal e ilegal, deve ser mobilizada para conter o protesto social.
O governo Bolsonaro será um museu de grandes novidades, pois sua alternativa antissistêmica, na realidade, revitalizará o que há de mais arcaico na história do Brasil – o reino dos negócios como princípio organizador da vida social e o despotismo sem limites da plutocracia como forma de dominação e subordinação dos trabalhadores. É a forma que assume o domínio do capital financeiro na era do capitalismo em crise estrutural.
Na economia, o ex-capitão renegou olimpicamente tudo o que havia dito. Esqueceu suas veleidades nacionalistas e abraçou com entusiasmo a agenda ultraliberal. Jogando-se de corpo e alma na lógica dos grandes negócios, convocou um notório especulador do mercado financeiro para levar ao paroxismo o processo de liberalização e privatização iniciado por Collor de Mello, consolidado por Fernando Henrique Cardoso, legitimado por Lula e, após o impacto devastador da crise internacional sobre a economia brasileira, aprofundado pelo ajuste ortodoxo iniciado por Dilma Rousseff e radicalizado por Temer. O projeto liberal encarnado por Bolsonaro pretende concluir o desmonte do sistema econômico nacional e transformar a economia brasileira numa megafeitoria moderna.
Na política, Bolsonaro exalta as façanhas dos porões da ditadura e regozija-se com a apologia da violência de Estado como panaceia para os problemas nacionais. O objetivo estratégico é negar qualquer direito civil aos trabalhadores. O meio imediato passa pela destruição das conquistas sociais e liberdades democráticas da Constituição Cidadã de 1988, diga-se de passagem, já bastante desfigurada por sucessivas emendas constitucionais. A “intervenção militar pelo voto”, principal bordão do presidente eleito, empurra a sociedade brasileira para um padrão de dominação explicitamente elitista e autoritário, sob o qual o capital impõe seus desideratos sobre a sociedade, de cima para baixo, de maneira brutal, sem mediações que levem em consideração seus efeitos perversos sobre os trabalhadores, os povos indígenas, as mulheres, os negros, a população LGBT, a cultura, o meio ambiente e tudo que representa conquistas civilizatórias.
Sem medir as consequências de partir para o confronto aberto com as classes trabalhadoras e os setores populares, a burguesia joga-se abertamente no autoritarismo e convoca um capitão do mato para pôr ordem na senzala. A contrarrevolução vitoriosa em abril de 1964 tende a assumir formas abertamente ditatoriais. Entretanto, o grau de fechamento do regime – que pode ir de um “Estado de direito de exceção” até uma ditadura aberta – ainda não estão definidos. Mais do que o desejo de Bolsonaro, o caráter do novo padrão de dominação será definido pela evolução da correlação de forças nacional e internacional.
Na contramão do que as cores verde e amarela que embalam os correligionários do ex-militar reformado poderiam sugerir, no entanto, a absoluta primazia da lógica dos negócios na organização da economia e da sociedade significa a negação definitiva do processo de formação nacional. O aprofundamento e a aceleração da reversão neocolonial aprofundarão a barbárie capitalista.
II. O PSOL nas eleições de 2018
A eleição de parlamentares suficientes para passar a cláusula de barreira foi, sem dúvida, uma grande vitória. O aumento da bancada deveu-se fundamentalmente ao acúmulo histórico do partido e à atuação dos coletivos feministas, responsáveis diretos pela eleição das quatro novas cadeiras de deputados federais e, indiretamente, de cinco parlamentares, caso seja considerado que sem os 250 mil votos de Sâmia Bomfim, o PSOL de São Paulo dificilmente teria eleito três deputados.
A decisão da direção do PSOL de lançar uma candidatura presidencial para disputar o espólio do PT, mimetizando o melhorismo petista, revelou-se um fiasco.
Eleitoralmente, Guilherme Boulos amargou o pior resultado da história do PSOL, mesmo a conjuntura sendo particularmente favorável a propostas antissistêmicas. Como era previsível, entre duas candidaturas convencionais, com programas redundantes, o eleitorado escolheu a original. Foi a candidatura com menos votos e com o voto mais caro de toda a história do partido.
Politicamente, o papel de linha auxiliar de Lula, e depois de Haddad, comprometeu a referência do PSOL como alternativa socialista para os trabalhadores. A identificação do partido com o PT por amplos segmentos da população acarretou forte prejuízo à luta pela construção de um instrumento político que superasse o melhorismo.
Ideologicamente, a incapacidade da candidatura Boulos de diferenciar-se programaticamente do campo petista jogou o PSOL na vala comum dos partidos tradicionais. Sem horizonte de futuro, os trabalhadores ficaram condenados à miséria do possível e o terreno ficou livre para que um filhote da ditadura se apresentasse como novidade política.
Para o PSOL, a eleição de 2018 foi uma oportunidade perdida. Enquadrado nos parâmetros da ordem, o partido não aproveitou a campanha para denunciar a farsa eleitoral e desmascarar a agenda burguesa para as eleições de 2018. A inexistência de qualquer questionamento ao papel da dívida pública como centro nervoso da economia legitimou a agenda econômica do capital. O silêncio sobre o tema da corrupção, por temor de atingir Lula, deixou de lado uma das questões mais candentes da campanha nas mãos da direita conservadora. A ausência de medidas estruturais para enfrentar a desigualdade social, por receio de que a proposta de mudanças profundas nas relações de produção ferisse as suscetibilidades do eleitorado conservador, deixou o partido desarmado para enfrentar o debate da segurança pública. A leviandade da política de comunicação e estética, patente na infeliz ideia de apresentar o programa sob a forma de 50 Receitas de Boulos, afastou qualquer possibilidade de diálogo com as massas iradas que buscavam alguma conversa séria para resolver seus problemas. O ocultamento sistemático da legenda do PSOL, tanto no discurso do candidato como em seus materiais de campanha, dificultou o diálogo com um setor da sociedade que respeita e vota no partido por conta de sua trajetória coerente de oposição de esquerda aos governos petistas. A ausência de propostas para enfrentar a crise terminal da Nova República deixou o caminho aberto para que Bolsonaro se apresentasse ao povo brasileiro, soberano, como única alternativa contra o sistema político. Por fim, a falta de qualquer menção ao socialismo como único meio de combate à barbárie capitalista condenou o PSOL a confundir-se com os outros partidos da ordem na disputa pela preferência do eleitor como a melhor opção dentro da miséria do possível.
III. Novo momento da luta de classes
O revés sofrido pela classe trabalhadora nas eleições de 2018 não significa que a via autoritária como solução para a crise terminal da Nova República esteja consolidada. Enquanto a burguesia não referendar sua vitória eleitoral nas ruas, sufocando, de uma maneira ou de outra, o protesto dos trabalhadores e institucionalizando o novo padrão de dominação, a conjuntura nacional continuará marcada pela turbulência social e instabilidade política. O revés eleitoral não significa que a classe tenha sido irremediavelmente derrotada. A mobilização política contra Bolsonaro, sobretudo as protagonizadas pelas mulheres antes do primeiro turno e pela juventude no segundo turno, revela que importantes setores da classe trabalhadora possuem grande disposição de luta. As terríveis contradições da reversão neocolonial devem reforçar cada vez mais o contingente de trabalhadores dispostos a combater a barbárie.
A hipótese de que a lua de mel dos brasileiros com o governo Bolsonaro seja curta não pode ser descartada. A absoluta subserviência do ex-capitão às exigências do grande capital tem como contrapartida a necessidade de radicalizar a ofensiva contra os direitos dos trabalhadores, intensificar o desmantelamento das políticas sociais e acelerar o esvaziamento da soberania nacional. Antes cedo do que tarde, os próprios eleitores de Bolsonaro perceberão que as promessas de campanha – recuperação da economia, combate ao crime organizado e fim da corrupção política – não passavam de um engodo.
A decisão de radicalizar o ajuste fiscal e de privatizar as empresas estatais atende aos interesses dos capitais rentistas e especulativos, mas em nada contribui para recuperar a economia. Ao contrário, se a promessa de zerar o déficit primário for cumprida, a economia viverá um novo mergulho recessivo. Se a Reforma da Previdência não for barrada, o sistema previdenciário público será desmantelado e, a julgar pelo exemplo chileno – o modelo seguido pelo novo presidente -, os trabalhadores ficarão totalmente desamparados na velhice.
A política de acirrar a violência policial como forma de combate ao crime organizado atende à exigência da burguesia de intensificar a guerra aos pobres. Mas, ao atuar sobre os efeitos do problema e não sobre suas causas – a extrema desigualdade social e a relação umbilical do crime organizado com os aparelhos de Estado -, só contribuirá para potencializar a escalada da violência que penaliza a população pobre nas periferias das grandes cidades. É o que já se vê no Rio de Janeiro.
A transformação da cruzada contra a corrupção em política de governo satisfaz a expectativa do eleitorado que busca ingenuamente uma solução moral para os problemas econômicos e sociais, mas choca-se frontalmente com a própria natureza das forças econômicas e políticas que apoiam o governo Bolsonaro. Sem total liberdade de expressão, sem uma reforma política que coíba qualquer tipo de relação financeira entre empresas, partidos políticos e dirigentes partidários e sem a imediata expropriação das empresas envolvidas em corrupção, a cruzada moralista contra a corrupção, como ficou patente na Operação Lava Jato, não passará de cortina de fumaça para atacar a democracia e propiciar uma relação ainda mais promíscua do capital com o poder que controla o Estado.
A perspectiva é, portanto, de acirramento da luta de classes. A disputa política real girará em torno de duas questões, fundamentalmente: a ofensiva contra os direitos dos trabalhadores; a ofensiva contra as liberdades democráticas.
IV. Desafios da conjuntura
A tarefa imediata do PSOL é preparar o combate à ofensiva contra os direitos dos trabalhadores e as liberdades democráticas. O fundamental é não ceder terreno sem luta. A reforma da previdência será o primeiro embate. Em defesa dos interesses dos trabalhadores e das liberdades democráticas, o partido deve mobilizar toda sua energia para buscar a mais ampla unidade dos trabalhadores, plasmada na construção de uma Frente Única de Luta baseada em comitês populares organizados por local de trabalho, estudo e moradia. É preciso combater todas as iniciativas que possam colocar o movimento de oposição ao governo Bolsonaro sob o controle de acordos de cúpula, bem como as manobras para reduzi-lo a uma mera Frente Eleitoral. A Frente Única de Luta deve agrupar as centrais sindicais, os movimentos estudantis e populares, assim como os partidos e organizações contrários à agenda neoliberal. Ninguém solta a mão de ninguém.
Para estar à altura dos desafios, o PSOL deve buscar absoluta independência em relação aos partidos da ordem que se digladiam para liderar a oposição a Bolsonaro. Em seu posicionamento político, é vital evitar dois extremos: ser cooptado para legitimar soluções dentro da lógica neoliberal, enquadrando-se nos marcos da oposição construtiva; ou ser esmagado pela incapacidade de avaliar corretamente a correlação de forças, fomentando um ativismo estéril, distante das lutas concretas da classe trabalhadora. Não desejaremos sucesso ao inimigo, como fez Haddad logo após sua derrota, nem combateremos a truculência com bravatas, expondo de maneira irresponsável a classe trabalhadora, os estudantes e nossa militância à violência gratuita dos leões de chácara do capital.
O PSOL deve estar consciente de que o centro da luta política se deslocou, de modo ainda mais pronunciado, do parlamento para o terreno da luta direta de classes. Dado o acelerado derretimento das instituições democráticas, a capacidade de se contrapor à ofensiva reacionária dependerá fundamentalmente da construção de força política real – capacidade dos trabalhadores interromperem a produção e circulação de mercadorias. Para tanto, é vital apresentar a “intervenção popular” como único antídoto realmente efetivo à “intervenção militar”, associando de maneira orgânica e indissociável a defesa intransigente dos direitos dos trabalhadores à necessidade de uma ruptura com o ajuste neoliberal, à urgência de profundas transformações nas estruturas sociais e à defesa incondicional dos direitos à liberdade de expressão e organização. Sem associar a melhoria das condições de vida dos trabalhadores às liberdades democráticas, a classe não se mobilizará com a energia e a escala necessárias para enfrentar a conspiração autoritária.
Ao mesmo tempo, o partido deve preparar-se para disputar a construção do novo, apresentando aos trabalhadores um projeto de futuro que aponte de maneira inequívoca para um modo de produção e sociabilidade baseado na igualdade substantiva. Sem uma alternativa política verdadeiramente antissistêmica, socialista, não há como abrir novos horizontes para a luta de classes. Nesse sentido, o PSOL deve propor a formação de uma Frente de Esquerda, com o PCB e o PSTU, que apresente um programa de superação do capitalismo. É urgente enterrar de uma vez por todas qualquer ilusão nostálgica em relação a um possível sebastianismo lulista redentor. Não há a menor possibilidade de uma volta ao passado. Nos marcos da ordem liberal, a destruição econômica, social e cultural provocada pelo ajuste neoliberal e pela violência autoritária é irreversível.
Por seu compromisso incondicional com o capital e por sua composição fisiológica e autoritária, o governo Bolsonaro tende a ser uma espécie de governo Temer armado de borduna. Partir para a ignorância, atacando sistemática e impiedosamente os direitos dos trabalhadores, a política social, a soberania nacional e as liberdades democráticas, não resolverá nenhum dos graves problemas nacionais. Em breve, estará desmoralizado. No entanto, na ausência de alternativa qualitativa aos ditames da ordem global, a desilusão com o governo Bolsonaro alimentará soluções ainda mais bárbaras
Quando as contradições irredutíveis entre as expectativas da população e o caráter antissocial, antinacional e antidemocrático do governo Bolsonaro finalmente aflorarem, na forma de categóricos e persistentes protestos sociais, a esquerda socialista deve estar preparada para apresentar aos trabalhadores uma alternativa estrutural ao programa de reversão neocolonial impulsionado pela burguesia. A sobrevivência do PSOL como instrumento político dos trabalhadores depende de sua capacidade de estar à altura dos novos desafios históricos. É urgente superar o lulismo e colocar de maneira clara e inequívoca o socialismo como única alternativa verdadeiramente antissistêmica para barrar o avanço da barbárie. É a tarefa de todos que não acreditam na possibilidade de domesticação do capitalismo na periferia da economia mundial na era da crise estrutural do capital.
CORRENTE SOCIALISTA DOS TRABALHADORES – CST
COLETIVO COMUNISMO E LIBERDADE – CL
LUTA SOCIALISTA – LS
CONSTRUÇÃO SOCIALISTA – CS
CONSTRUÇÃO PELA BASE
Plínio de Arruda Sampaio Júnior
Renato Cinco – Vereador PSOL Rio de Janeiro
Marino Mondek
Romer Guex DN/PSOL