Do socialismo do século XXI à peonagem do século XXI
Vivemos dias de debates acalourados acerca da atual situação venezuelana e vemos que, aos poucos, a velha cortina de ferro que impedia qualquer debate e questionamento ao madurismo ou ao “socialismo do século XXI” – vertente revisionista e de pactuação com o capital -, vem caindo. Por isso também entramos em contato com companheiros de outras tradições teóricas e políticas que também estão fazendo o exercício de tentar observar para além das superfícies colocadas. Este é o caso dos companheiros da universidade nomade – Uninomade – que nos autorizaram a publicar um interessante artigo que conhecemos à partir da página da Uninomade, uma tradução de Enzo Del Bufalo. Agradecemos a autorização. Boa leitura!
Para que, Maduro e os militares, querem aquilo que enganosamente chamam de Constituinte? Em primeiro lugar, há que dizer que não se trata de uma constituinte verdadeira. Neste momento, o poder constituinte verdadeiro na Venezuela se expressa nas ruas, tragando gás e derramando seu sangue. Como tudo, neste regime neoarcaico, o emprego de um conceito clássico da tradição revolucionária serve para ocultar o seu contrário.
O que Maduro quer instaurar com a paródia de uma eleição inventada, a partir de 30 de julho, é um regime “asambleario” e, portanto, a terminologia mais adequada do acervo histórico seria uma Convenção Nacional, como a famosa “Convention Nacionale” francesa criada em 21 de setembro de 1792, que levou à decapitação de Luís XVI e à instauração do terror em 10 de outubro de 1793. A Convenção foi instaurada com a seguinte declaração da Montanha: ” O Governo provisório da França será revolucionário até a paz”; ou seja, para ” Instaurar a paz “. Já ouviram isso? É prerrogativa dos ignorantes repetir a história sem saber, como já o afirmara Marx em seu tempo. Portanto, se ainda há algum chavista-Madurista com algum parafuso no cerebro e não totalmente corrompido (coisa que eu duvido, mas é preciso estar sempre aberto) saiba, pois, que em 30 de julho votará para instaurar o narcoterror em Venezuela. Para aqueles que acreditam que na Venezuela jamais poderia acontecer algo assim, porque a “idiossincrasia do venezuelano é de ser boa gente”, lembro-lhes que em 1793 o famoso filósofo alemão Fichte escrevia uma sisuda carta explicando porque os terríveis fatos que naquele momento estavam a acontecer na França, nunca poderiam acontecer na Alemanha, terra de pessoas boas e tolerantes. Este terror é coisa de franceses, dizia Fichte, e o disse exatamente 150 anos antes que Adolf Hitler pusesse a funcionar Auschwitz e os outros Lagers. Se isso conseguiu fazer da ” Idiossincrasia de boa-gente ” dos alemães o fascismo negro clássico, pior ainda poderia fazer à “Idiossincrasia de boa gente ” dos venezuelanos a veia fascista vermelha que percorre o neoarcaismo madurista. Para uma amostra, olhem o que faz o ISIS, que é também um movimento neoarcaico, para a “Idiossincrasia islâmica”.
Até aqui fiz o meu último esforço para resgatar aqueles que foram da abjeta degradação do chavismo. Para o público em geral é importante destacar as duas vertentes principais da jogada de Maduro e dos narcomilitares: uma política e a outra económica. A política consiste em que, a partir de agosto, se Maduro e os narcomilitares serão bem sucedidos em seus intentos, se estabelecerá na Venezuela um regime “asambleario”, onde o demagogo que controla a “Assembleia Constituinte ” com a justificativa de ser um ” Poder Constituinte” eliminará todas as instituições do Estado que quiser, modificará a lei e a norma vigente e a substituirá conforme seu capricho. Uma ditadura “assemblearia” pode ser muito pior do que uma ditadura militar clássica, ou dos movimentos totalitários tradicionais, pois estes deveriam respeitar certas regras próprias de Constituição do Estado ou do movimento coletivista; em contrapartida, o capricho do líder-Assembleia não é obrigado a respeitar sequer essas regras mínimas. Os antigos gregos já sabiam que esta é a pior das tiranias.
A vertente económica apresenta um cenário ainda mais assustador. Estão errados aqueles que acreditam que se vai instaurar um sistema económico como o cubano que, dito de passagem, seria muito melhor. O chavismo está prestes a passar do “Socialismo do século XXI” para a sua fase superior que é a peonagem do século XXI. Para aqueles que não conhecem a história económica da América Latina, saibam que a peonagem foi uma instituição muito generalizada na região. Na Venezuela esteve muito difundida até meados dos anos 50 do século passado, e na verdade ainda sobrevive em áreas remotas do país. O peão é uma pessoa juridicamente livre, mas encontra-se amarrado ao rebanho, rancho ou fazenda na qual vive por um mecanismo clientelista: como o pagamento que recebe pelo seu trabalho não é suficiente para viver, é obrigado a pedir fiado na mercearia do patrão, que lhe cede desde que não abandone o seu trabalho até que tenha pago a sua dívida, a qual, na medida em que passa o tempo, continua a aumentar até tornar-se impagável e, portanto, o peão permanece amarrado à terra do patrão, como um servo medieval. Esta é a peonagem clássica. O neoarcaismo madurista a retoma, mas a insere em um contexto novo (isto é o que faz o neoarcaismo em todas as ordens). Vejamos como: o chamado socialismo do século XXI nunca foi outra coisa que não uma denominação vazia para ocultar um processo de predação do rendimento petrolífero e dos ativos nacionais acumulados. A corrupção não é um desvio do chavismo, mas o seu objetivo primário, como logo aprenderam todos aqueles incautos que nos primeiros tempos se aproximaram do líder apresentando denúncias de corrupção, apenas para levar um pontapé no traseiro. Chavez cumpriu o sonho de Zamora[1] e em geral dos “pardos”(os pobres e ex-escravos que não tinham como se integrar na sociedade) do século XIX, de conseguir apoderar-se do Estado para poder fazer o que os fazendeiros andinos faziam, ou seja, tomar o poder e esvaziar os cofres do Estado e privatizar – desta vez – a renda petrolífera em favor dos que estão com o aparato chavista. Deste ponto de vista, o chavismo tem sido um sucesso retumbante. A atual degradação, pauperização e dissolução das instituições do Estado e da economia do outrora país “mais rico da América Latina” é tão somente a outra face deste êxito. No entanto, tal como o modelo rentista tinha mostrado o seu limite para seguir com o modelo político e económico da “Quarta República”, também a predação chavista, que exigia para se sustentar no tempo rendimentos petrolíferos crescentes, colapsou e isso aconteceu antes da queda do preço do petróleo. Este último episódio apenas tornou esse colapso explicito para todo o mundo.
Não é possível analisar aqui porque o modelo chavista de acumulação privada do rendimento petrolífero, com uma redistribuição de uma parte mínima desse rendimento para as classes marginalizadas nas décadas anteriores, exigia um crescimento exponencial desse rendimento. O fato é que se acabou o modelo, e se o chavismo quer sobreviver, tem de se converter em madurismo, que em termos económicos significa: 1) assegurar a privatização da renda petrolífera, agora incrementada com a proveniente do arco mineiro e do tráfico de droga; 2) assegurar o clientelismo político necessário para se manter no poder através de uma generalização do sistema CLAP[2]. Entre 60 e 80 % da renda total deve ir para a acumulação privada dos chamados “Ligados” (os membros do aparato chavista) e os outros 40 a 20 % são redistribuídos mediante subsídios CLAP a uma população, que em breve será a grande maioria da população, até atingir 80 %. A casta dominante terá acesso livre às divisas e todos os bens que a economia mundial oferece. E 10 % terá acesso através da sua atividade industrial e comercial privada e os restantes 80 % viverão do sistema de distribuição CLAP ampliado. Estes números são aproximados, uma vez que tudo dependerá do montante do rendimento a repartir e de quão submissa é a população CLAP, que tal como peões modernos, terão de votar e apoiar o líder “asambleario” para assegurar a sua permanência no sistema CLAP (Comité Local de Abastecimento e Produção).
A propriedade privada não será, pois, abolida, mas sim restringida à minoria privilegiada que gozará de sua riqueza livremente, tanto na Venezuela como no mundo. Como se vê, isto não será uma nova Cuba, mas algo muito pior. Para começar, não haverá planejamento centralizado da economia que a estabilize níveis muito baixos, mas que lhe dê regularidade. Diferentemente de Cuba, que para sobreviver teve que chupar da União Soviética e depois da Venezuela, o madurismo pode contar com um rendimento mínimo e constante que lhe permitirá manter-se indefinidamente no poder, se conseguir consolidar um sistema CLAP que satisfaça minimamente a população de “neopeones” do século XXI. E talvez com sorte, Cuba também poderá “evoluir” para este sistema se conseguir assegurar indefinidamente a sua participação ao rentismovenezuelano.
Se gostam deste cenário, por favor não deixem de votar no próximo dia 30 de julho. Se, em vez disso, lhes horroriza tal perspectiva, então amigos, chegou a hora de fazer mais do que protestar inalando gás nas ruas.
[1] Um dos lideres da guerra federal (1859-1861) cujo papel foi revisado pela historiografia chavista.
[2] CLAP: circuito paralelo de distribuição.
Texto publicado originalmente dia 29 de julho de 2017 no site http://uninomade.net/