Uma Constituinte fraudulenta num cenário de fome
por Miguel Sorans (Dirigente da UIT/QI)
Acossado pelos protestos de massa que se estendem por todo o país e depois de uma brutal repressão que deixou 40 mortos e mais de 350 feridos, Nicolás Maduro convoca uma Assembleia Constituinte fraudulenta visando a perpetuar-se no poder para continuar impondo o ajuste ao povo. Enquanto o país continua pagando a dívida externa, aumenta a fome, escasseia o pão e os salários estão numa faixa entre 30 e 50 dólares mensais.
O governo Maduro não é de esquerda. Trata-se de um governo antioperario, mas a oposição patronal da MUD (Mesa de Unidade Democrática), tampouco é uma solução. É preciso que o povo se mantenha mobilizado até a queda de Maduro, com uma alternativa política de independência de classe.
De Caracas, Venezuela, escreve Miguel Sorans -Dirigente da Esquerda Socialista e da UIT-CI
Um exemplo que ajuda a definir a situação do governo chavista de Maduro e do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), é o fato de uma pessoa ir à padaria num domingo pela manhã e voltar para casa com a simples resposta “não tem” e “não vai ter”, e mais nada. Mas isto não ocorre apenas aos domingos, e sim todos os dias, é a Venezuela de hoje. Antes já faltava papel higiênico, mas faltar pão é outra coisa: é a fome contra a primeira das liberdades democráticas, que não está sendo respeitada por Maduro. Para milhões de venezuelanos, há muito tempo comprar pão e farinha para fazer as “arepas” tornou-se uma verdadeira odisseia. Por isto é que a maioria da população repudia com raiva Maduro e seu governo, formando a base do crescimento da rebelião popular. Além de reprimir e impedir a liberdade de expressão e o direito de protestar, o governo Maduro não garante ao povo alimento nem medicamentos. Todos os setores da esquerda que ainda pretendem defender este regime têm que começar agora a perceber o que acontece realmente. A escassez de alimentos não se deve a uma suposta “guerra econômica”, e sim ao fato de que o governo continua pagando a dívida – somente em 2016 foram pagos 18 bilhões de dólares e, neste ano, serão pagos mais 17 bilhões, ao mesmo tempo em que continuam os pactos com as multinacionais do petróleo.
A farsa da Constituinte
Diante da gravidade da crise política e social Maduro resolve, num gesto de desespero, convocar uma suposta Assembleia Nacional Constituinte. Como denuncia o Partido Socialismo e Liberdade (PSL), nosso partido irmão na Venezuela, a Constituinte proposta é fraudulenta, pois uma parte dos seus 500 membros será designada por organizações controladas pelo governo e a outra, por meio de “eleições territoriais” que não se sabe o que significam. Maduro lança esta manobra para tentar ganhar tempo em face das mobilizações de massa, cada vez maiores, que o empurram contra a parede. Por outro lado, com a conversa da “democracia participativa e protagônica” busca perpetuar-se no poder e não convocar as eleições presidenciais que estão agendadas para 2018.
O objetivo de Maduro é avançar na consolidação de um regime totalitário de “partido único”, e sob seu governo vem se consolidando um regime de tipo estalinista burguês. Com um discurso pretensamente socialista e anti-imperialista, trata-se na verdade de um governo repressor que atua em favor dos empresários e das multinacionais. Por isto a palavra de ordem central, entre outras, para pôr termo à presente situação é apoiar a mobilização pelo “Fora Maduro”.
Uma rebelião popular democrática
A disputa ganhou as ruas. Há mais de um mês que tiveram início as crescentes mobilizações de massa contra o governo. Em Caracas e em todo o País, estas mobilizações vão além das convocatórias lançadas pelas organizações patronais e a MUD (Mesa de Unidade Democrática), e a elas estão se somando setores populares dos bairros e comunidades que já foram a base social do chavismo em todas as cidades do país. A rebelião tem tomado diversas formas, como marchas, panelaços, bloqueio de estradas e vias de circulação urbana com barricadas, passeatas de mulheres e até o saque de estabelecimentos comerciais como resultado do desespero de amplos setores da população ante o desabastecimento generalizado. Por isto, é um grande equívoco interpretar esses movimentos como “marchas da MUD e da direita”, pois a própria MUD teve que fazer convocações sob a pressão de sua base. Em Caracas, produziram-se mobilizações em bairros populares como El Valle e Coche, em 23 de janeiro, e outras nos bairros de Baruta e 5 de Julho, em Petare. Em Valencia, no Estado de Carabobo, teve lugar na última semana um levantamento generalizado na zona sul da cidade, um setor predominantemente popular e operário. Houve saques e choques violentos com a polícia em bairros como La Isabelica, San Blas, Los Cedros, Los Guayos, Tocuyito e outros. O mesmo se verificou em Táchira, Mérida, Maracaibo, Barquisimeto, etc. A repressão de todas essas mobilizações, a cargo da Polícia Nacional Bolivariana (PNB) e da Guarda Nacional Bolivariana (GNB), juntamente com os “coletivos”, como são chamados os grupos paramilitares do regime, deixou até agora um saldo de 40 mortos, na maioria jovens, além de mais de 350 feridos e centenas de detidos, os quais, acusados de “terroristas”, estão sendo encaminhados a tribunais militares. Estas manifestações têm tido uma grande participação da juventude estudantil dos bairros populares, que organiza sua própria defesa levantando barricadas nas ruas e enfrentando a repressão com escudos de estilo medieval. Nas marchas urbanas, inclusive as convocadas pela MUD, tem havido a presença de setores independentes que vêm nelas uma via de ação contra Maduro. Foi o que se deu em Maracay, por exemplo, onde um grupo de jovens participou com uma faixa que dizia “Nem MUD nem PSUV. Somos os de baixo que viemos pelos de cima”. Os militantes revolucionários do PSL estão participando de todo este processo de rebelião popular com seus próprios panfletos e palavras de ordem.
As fissuras no chavismo e a luta pelo Fora Maduro
A persistência da mobilização popular está provocando fissuras no seio do chavismo, ainda incipientes mas que podem crescer. O exemplo principal o da procuradora geral Luisa Ortega Diaz, que mais uma vez tomou posição diferente e se distanciou do governo, afirmando, numa entrevista para o Wall Street Journal, que “não podemos exigir um comportamento pacífico e legal dos cidadãos se o Estado toma decisões que não estão de acordo com a lei”.
Outro que se distanciou foi Gustavo Dudamel, o conhecido diretor musical do Sistema Nacional de Orquestras Infantis e Juvenis e simpatizante chavista, que repudiou a repressão. O mesmo aconteceu com o filho do dirigente chavista Tarek Williams Saab, ex-governador de Anzoátegui e atual chefe da Defensoria Pública. Também expressaram seu repúdio figuras do mundo do esporte, como os astros do beisebol Jesús Aguilar, Eduardo Perez e Robinson Chirinos.
A luta pela queda de Maduro está aberta. Como destaca o PSL, “a saída não passa por um governo da MUD e seus partidos, que representam a velha política patronal e pró-ianque” (…) e, por isto mesmo, não repudiam o pacote de ajuste de Maduro nem se opõem a que continue pagando a dívida externa. Por isto, tampouco dizem claramente que saia Maduro, utilizando a mobilização imposta pela pressão popular para buscar uma nova negociação à revelia do povo e da juventude, tal como fizeram em 2016 com o frustrado diálogo”.
A luta pelo Fora Maduro e seu governo coloca a questão da luta estratégica por um governo dos trabalhadores que ponha em prática um programa econômico de emergência operário e popular, como defendem os nossos companheiros do PSL.
Por isto, juntamente com a mobilização é necessário continuar impulsionando a formação de um polo político alternativo com os setores que, pela esquerda, venham a romper com o chavismo. E também continuar impulsionando a mobilização popular até a queda de Maduro, para avançar em direção às mudanças de fundo necessitadas pelos trabalhadores e o povo venezuelano.