Fidel e a Revolução Cubana: da Serra Maestra à restauração capitalista
O presente artigo, sobre a trajetória de Fidel Castro e os rumos do governo de Cuba, foi publicado na edição de dezembro do Combate Socialista. Com ele continuamos uma reflexão iniciada com a nota “Morreu Fidel Castro, principal liderança da gloriosa Revolução Cubana de 1959“. Boa Leitura!
Por Silvia Santos *(UIT-QI e CST/PSOL)
Seria um gravíssimo erro deixar de reconhecer o caráter socialista que adquiriu a revolução cubana após o ano de 1959, quando os lendários Fidel, Camilo Cienfuegos e Che Guevara entraram com seus guerrilheiros, triunfantes, em Havana, paralisada por uma greve geral, enquanto o ditador Fulgêncio Batista fugia pondo fim assim a um regime repressor, pró imperialista e corrupto na ilha caribenha. A eles, por ocasião da morte de Fidel, rendemos nossa homenagem e reconhecimento.
Mas seria outro erro gravíssimo, infelizmente cometido por grande parte da esquerda reformista e pós stalinista, acreditar que as mudanças econômicas acontecidas em Cuba seriam, como diz Raul e afirmara Fidel, para “atualizar o socialismo”; ou não se pronunciar, como se essas mudanças não existissem.
Este debate também existe dentro do PSOL, onde não escutamos nenhuma posição sobre este tema por parte das correntes que compuseram a delegação que viajou a Havana por ocasião das homenagens a Fidel, composta pelas correntes majoritárias: a US, o MES e a Insurgência.
Trata-se de um debate imprescindível nas fileiras da esquerda e, particularmente daquela que se reivindica trotskista. Obviamente não nos referimos a nota “oficial” do partido. Porém, não achamos correto que Fidel deve ser recordado como “defensor da paz mundial e principal nome da luta pelo socialismo na segunda metade do século XX” pois a realidade é bastante mais contraditória, para dizer o mínimo.
Como explicar porque aqueles heroicos dirigentes, do estrato social pequeno burguês, que na própria luta chegaram à conclusão que, para acabar com a desigualdade na ilha, era preciso expropriar a burguesia e romper com o imperialismo, hoje percorrem o caminho inverso e enquanto as multinacionais voltam a se apropriar de Cuba falam que dessa forma se estaria “atualizando o socialismo”?
Havia outro caminho
Sabemos que entre Fidel e o Che haviam divergências. Che praticou –com o método errado da guerra de guerrilhas como estratégia- um internacionalismo militante, pois achava que a pequena ilha isolada não poderia avançar se a revolução não se estendesse a outros países. Daí suas missões na África e finalmente na Bolívia onde foi assassinado em 1967. Além dos atritos que teve com a burocracia soviética sobre o intercâmbio comercial, assim como sua defesa apaixonada do planejamento para a construção de uma economia socialista. Para que não ficassem dúvidas sobre sua defesa da revolução permanente (ainda que não a chamasse assim) em seu trabalho de 1963 afirma: “Marx sempre recomendou que uma vez que se começou o processo revolucionário, o proletariado revolucionário deve golpear e golpear sem descanso. Revolução que não se aprofunda constantemente é uma revolução que retrocede.”
No entanto, após os acordos de Fidel com a burocracia stalinista, com Che já morto, Fidel somou-se à estratégia da “coexistência pacífica” que é o que explica a posição que teve frente a revolução nicaraguense em 1979, quando afirmou que “Nicarágua não seria outra Cuba” indicando que não deveria seguir o caminho da expropriação da burguesia.
No entanto, nessa oportunidade, quando a Frente Sandinista de Libertação Nacional dirigiu a ofensiva das massas nicaraguenses e derrubou o feroz ditador Anastásio Somoza, se abria a oportunidade para que Cuba rompesse o isolamento a que foi condenado pelos governos capachos da América Latina, colocando-se a possibilidade da sua libertação do domínio ianque e começasse a construção do socialismo, dando um novo impulso fundamental à revolução na América Latina. Não foi esse o caminho escolhido por Fidel e a burocracia castrista, mas o contrário.
Se aprofunda o “Capitalismo à Cubana”
Em que pese o criminoso embargo que EUA impôs a Cuba desde 1959 esteja já praticamente no fim, continuamos exigindo seu levantamento definitivo, pois tratou-se de uma retaliação antidemocrática e criminosa que precisa acabar definitivamente, assim como continuamos a exigir a devolução de Guantánamo a Cuba.
Mas, isto não nos pode fazer ocultar o que vem acontecendo ao menos nos últimos 20 anos. Dizemos “ao menos” pois a revista Bussines Week de 22 de junho de 1981 já afirmava que em que pese os duros discursos dos porta-vozes do governo Reagan, existiam negociações secretas entre os governos ianque e cubano que tinham objetivos econômicos e políticos.
Já desde 1977 foram abertos os chamados “Escritórios de Interesses”: o cubano em Washington e o estadunidense em Havana, na sua ex embaixada perto do Malecón.
Em 2009, após o triunfo de Obama, Fidel escreveu no Granma: “Ninguém poderia duvidar da sinceridade de suas palavras quando afirma que converterá seu país em modelo de liberdade, respeito aos direitos humanos no mundo e a independência entre os povos”.
Além de deportar mais de 2,5 milhões de imigrantes, o governo Obama flexibilizou mais o bloqueio, e a OEA reconheceu Cuba como país membro, enquanto que Hillary Clinton declarou que o bloqueio era um fracasso. Obama por sua vez foi muito aplaudido quando afirmou que “Os EUA estão dispostos a um novo começo com Cuba”.
Em 17 de dezembro de 2014 foram restabelecidas as relações diplomáticas entre os dois países, um fato histórico pois, ainda que não suspendia definitivamente o bloqueio, o reconhecimento do fracasso da política imperialista de mais de 50 anos significa um triunfo político indireto do povo cubano que durante décadas repudiou as represálias imperialistas.
As razões desta mudança política…
Devemos procurá-las na brutal crise da economia capitalista imperialista. Obama buscou reproduzir em Cuba o que conseguiu na China e no Vietnã: combinar ferrenhas ditaduras de partido único com a restauração capitalista mais brutal que lhe possibilita a exploração de mão de obra barata para suas multinacionais. Os europeus e canadenses já estavam fazendo isso com vantagens, o que provocou que setores do próprio imperialismo norte-americano pressionassem para rever a política. Entre os que mais pressionam pelo fim do embargo estão grandes empresários norte-americanos que querem fazer negócios. O Jornal El País de 18/12/14 afirma que entre eles, estão “Arriola, presidente do poderoso consórcio Inktel; os magnatas do açúcar e do setor imobiliário Andrés Fanjul e Jorge Pérez e entre muitos outros o petroleiro Enrique Sosa”.
Sem nenhuma consulta ao povo cubano, são anos que se negocia secretamente. Em 2001 por exemplo, EUA flexibilizou o bloqueio de alimentos. E desde 2003 que EUA se tornou o primeiro provedor em produtos agro alimentícios.
As principais empresas imperialistas pioneiras, no rubro turismo, são as espanholas Sol-Meliá e Barcelo, associadas com as corporações Cubacan e Gaviota, de capitais estatais e privados, especialmente das forças armadas. Em níquel e cobalto, opera desde 1992 a cubano canadense Metalúrgica de Moa, a multinacional Sherrit. Em petróleo, estava Brasil, Canadá e Espanha entre as principais. Nas telecomunicações estão México, Itália e Canadá. No tabaco, existe desde 1994 Habanos AS, com Cubaltabacos, a espanhola Altadis e um grupo inglês: controlam 80% do mercado mundial de puros. O famoso Rum Havana Club é comercializado entre capitais privados cubanos e a francesa Pernod Richard. E assim poderíamos seguir nomeando como o capital estrangeiro entrou na ilha pelas mãos dos irmãos Castro em nome do “socialismo renovado”.
Na nova Lei de Investimentos estrangeiros, publicada na Gazeta Oficial de 14/04/2014, pela primeira vez se autoriza a instalação de empresas 100% de capital estrangeiro.
O segredo é que os trabalhadores são contratados por entidades do governo que provém a mão de obra a estas empresas mistas. Mas, as multinacionais pagam salários de 150 a 200 dólares por mês por cada trabalhador sendo que o governo repassa a seu “funcionário” cubano entre 15 a 20 dólares mensais. O embargo, ao deixar de fora as multinacionais norte americanas, foi fator determinante para que EUA deixasse sua antiga rigidez e hoje está à beira de cair definitivamente.
Finalmente, o acordo de 17/12/2105 entre Obama, Castro e o Vaticano, é outro passo no caminho capitalista que vem percorrendo Cuba, e que desmente todos os que, desde a esquerda, pretendem negar essa triste realidade.
Em Defesa do Povo de Cuba
Em defesa do povo cubano, nos cabe como socialistas, em primeiro lugar, falar a verdade: o progresso não virá com as multinacionais, os milionários nem os novos ricos protegidos por Raul Castro. Com eles virá, como já veio para o povo cubano, a mesma exploração e miséria que existe em todo o mundo capitalista, aprofundando a diferenciação social que já existe na ilha.
Somente com a organização e a luta desse povo, que soube fazer a primeira revolução socialista da América Latina, poderemos reverter a restauração do capitalismo na ilha.
O primeiro passo para isso é lutar contra a tentativa de fazer de Cuba uma nova China, lutando pela legalidade dos partidos políticos, pelo direito à criação de sindicatos independentes, pelo fim do nefasto sistema de partido único que asfixia não só material como política e culturalmente o povo cubano.
Confiamos que os milhares de cubanos e cubanas que lotaram a Praça da Revolução para dar seu último adeus ao comandante Fidel, tirarão suas conclusões a partir de sua experiência com “os mercados” e a exploração das multinacionais, e saberão, como o fizeram em 1959, lutar contra os patrões e burocratas, nacionais e estrangeiros, para voltar a conquistar os colossais avanços que souberam impor quando foram expropriados os latifundiários e as principais empresas nacionais e imperialistas de Cuba.
*Fonte: correspondência Internacional Nº 36 – abril-maio 2015