A cor dos que trabalham na limpeza da cidade
| Makaíba Soares*
O primeiro levantamento populacional no Brasil foi realizado em 1872. A análise dos números mostra um país essencialmente rural, de população predominantemente negra e mestiça: 58% dos residentes no país se declaravam “pardos ou pretos”, contra 38% que se diziam brancos. Já o último censo realizado em 2010 indicou que a população negra e parda é a maioria no país: 50,7% de um total de 190.732.694 pessoas.
Do primeiro censo no final do século XIX ao último no século XXI, a população brasileira aumentou quase vinte vezes e concentrou-se nos centros urbanos, porém, as condições de vida da maioria, ou seja, dos negros e mestiços não mudou muito. Negros e pardos ganham salários mais baixos do que brancos (que ganham 2,4 vezes mais) e morrem mais cedo em consequência da precariedade das condições de vida, da violência e do difícil acesso a cuidados com a saúde. É também onde se concentra a maior taxa de analfabetismo na faixa etária acima dos 15 anos (entre 24,7% e 27,1%). Das 16,2 milhões de pessoas vivendo na pobreza extrema (cerca de 8,5% da população), com renda igual ou menor a R$ 70 por mês, 70,8% são negras.
O que realmente significam esses dados estatísticos que não se alteram essencialmente há mais de 1 século?
Significam que aos negros e mestiços brasileiros sempre foi destinado as piores condições de vida, saúde, educação e trabalho, apesar do desenvolvimento econômico – o Banco Mundial classificou o Brasil como a sétima maior economia do mundo em um relatório divulgado em 2014.
Significam que além da opressão de classe – patrões explorando trabalhadores -, há também no Brasil uma discriminação racial – RACISMO – por parte da classe dominante capitalista, predominantemente branca, contra a maioria da população negra e mestiça.
E qual a razão desse racismo?
Medo! Medo de perder os privilégios de classe dominante, porém, minoritária. Segundo o mesmo censo de 2010, apesar do crescimento geral da população brasileira, o número de indivíduos brancos diminuiu. Mas, mesmo em menor número, os brancos continuam sendo a maioria nas melhores universidades, nos melhores bairros, nos melhores hospitais, nas melhores e mais qualificadas profissões, nos melhores postos de trabalho, no parlamento brasileiro e os donos das terras, bancos, comércio e indústria desse país.
Aí, vem alguém e diz: mas, também existe alguns negros que conseguiram “chegar lá”, isto é, ser também parte da classe de privilegiados e dominantes. Sim, tem. Pelé é um grande exemplo. Mas, assim como, o fato da classe dominante ser composta pela maioria de brancos ricos não muda em nada a situação dos brancos pobres, a existência de meia dúzia de negros que se deram bem, também não muda em nada a situação da maioria de negros e mestiços pobres.
A classe dominante sabe e por isso tem tanto medo, que a única forma de mudar a situação da maioria da população, em qualquer parte do mundo e em qualquer momento da história, é a luta da maioria contra os privilégios de uma minoria dominante. E no caso da classe dominante brasileira, ela sabe que apesar de toda repressão, pena de morte, tortura no período da escravidão – de 1530 a 1888-, a rebelião dos negros contra os brancos senhores de escravos foi uma luta permanente durante os três séculos do regime escravocrata. E é dessa tradição de luta que a classe branca dominante morre de medo.
A esperança da classe dominante se baseia no fato de que mantendo a maioria de negros e mestiços na condição de semiescravidão, esses não possam ter tempo de tomar consciência de sua própria tradição de luta, de raça e classe. Dessa forma negros e mestiços se manteriam a margem da luta da maioria dos trabalhadores organizados contra a classe dominante, não se tornando mais uma grande ameaça ao seu modo de vida.
A culpa é da Princesa Izabel!
Muitos de nós negros já ouvimos essa piada. Porém, ela tem um fundo de verdade que não é nada engraçada. Aprendemos na escola que a princesa “branca” Izabel assinou uma lei – “áurea” – para libertar nossos tataravós negros da escravidão. Isso é uma tremenda piada de mau gosto, uma zombaria de branco racista sobre a desgraça que sofreu o povo negro feito escravo. No momento em que essa lei fora colocada em vigor, menos de 5% da população negra era escrava. A escravidão já quase não existia, por razão das rebeliões negras. O que se vê, então, é uma jogada de marketing político, na qual sobressai a Princesa Izabel como uma governante humanista. A população branca brasileira, da época, há muito vivia cercada de temores de uma rebelião negra nos moldes do Hati – no final do século VIII e início do século XIX, influenciados pela Revolução Francesa, uma população de mais de meio milhão de negros haitianos se rebelou contra cerca de 30 mil brancos e os massacrou.
A verdade é que a lei áurea realmente libertou alguém: libertou os brancos senhores de escravos negros da responsabilidade de pagar qualquer tipo de indenização aos seus ex escravos. Libertou os brancos para que esses pudessem financiar a vinda de operários brancos da Europa, com o intuito de “embranquecer” a classe trabalhadora brasileira e em consequência toda a sociedade. Libertou os brancos para que eles pudessem continuar explorando o trabalho de seus ex escravos a troco de um prato de resto de comida, um lugar para dormir num canto nos fundos da casa grande, em vez de um salário. Libertou os brancos para usar os negros como serviçais domésticos para limpar suas sujeiras, ou servir de segurança e fazer o trabalho sujo de perseguir outros negros, como lacaios, jagunços protegendo suas prosperas propriedades. Como fazem os policiais negros até hoje. Para que os brancos de classe média e os ricos possam viver em condomínios de luxo, passear pelas ruas limpas e seguras: limpas e guardadas por um batalhão de homens e mulheres negras que moram nas favelas e periferias da cidade, sujas e sem segurança alguma. A princesa Isabel libertou os brancos para que, até na morte, eles pudessem morrer em paz de morte natural em seus leitos brancos entre seus familiares, enquanto a maioria de negros e mestiços morrem por falta de uma boa alimentação, atendimento médico, hospitais ou quando não morrem de nada disso, são alvos de “balas perdidas”.
No entanto, nenhum branco nasce racista, ele se torna racista, ou, melhor dizendo, ele aprende a ser um racista. Por isso, que muitos brancos conscientes do porquê desse racismo todo, “desaprendem” o racismo e juntam-se aos negros que lutam contra o racismo e os privilégios da classe capitalista branca dominante.
E o que tem a ver a greve dos garis com tudo isso?
Dando uma passagem de olhos rápida na multidão de garis que estiveram nas passeatas, assembleias e piquetes da greve em defesa de um aumento justo no salário, não tem como não perceber que a grande maioria de negros e mestiços predomina nessas manifestações. O serviço de limpeza das cidades por muito tempo foi visto como feito por profissionais “desqualificados”. Os garis trabalhando nas ruas pareciam que eram invisíveis. “Invisíveis” como a maioria da população de negros e mestiços trabalhadores pobres das grandes cidades brasileiras. Ou seja, além de não serem trabalhadores de profissões “nobres”, a cor da maioria dos garis é negra. Porém, todo esse preconceito foi posto abaixo quando os garis quebraram a sua “invisibilidade” com uma greve em pleno carnaval carioca. Os garis provaram que além da sua profissão ser tão nobre quanto qualquer outra, eles também transformaram-se em um exemplo de luta para outras categorias profissionais, ganhando apoio até de sindicatos de outros países. Derrotaram o prefeito Eduardo Paes, que é o típico representante de uma elite branca arrogante e racista.
Por isso, essa não foi apenas mais uma vitória de uma categoria em luta. Mas, a vitória de uma categoria que reúne uma grande maioria de negros e mestiços, trazendo assim à tona a tradição de lutas dos negros contra a elite branca racista. Foi uma vitória de raça e classe, que provoca na burguesia o maior de seus medos. O medo que o exemplo de luta que levou à vitória dos garis, contagie todas as outras categorias de trabalhadores. O medo que esse movimento cresça, se unindo numa ação única que tire da classe branca dominante capitalista burguesa tudo que ela roubou e ainda está roubando da classe trabalhadora.
*Makaíba Soares é um militante socialista de longa data e um estudioso da questão racial brasileira, causa pela qual milita nos movimentos sociais. Atualmente milita como assessor do mandato do Vereador Babá (PSOL/RJ) e constrói a Corrente Socialista dos Trabalhadores (CST-PSOL)