Sobre a blogueira e o ajuste em Cuba: ou concordamos na política econômica

|

Júlio Miragaia

"E já não se sabia quem era homem e quem era porco".

(George Orwell, A Revolução dos Bichos)

A recente visita da blogueira cubana Yoani Sánchez ao Brasil tem gerado uma série de manifestações, principalmente de setores da esquerda castrista, contrários a presença da mesma em território brasileiro. Vários artigos publicados essa semana em blogs e sites apontam uma grande aproximação e relação da mesma com os interesses norte-americanos sobre a ilha. Em visita ao congresso nacional, a blogueira foi recebida com pompa pelo que há de mais reacionário na política brasileira, como deputados e senadores do DEM, do PSDB e figuras como Jair Bolsonaro. Suas próprias declarações em várias entrevistas demonstram que Yoani é uma clara defensora da restauração capitalista em Cuba, que está alinhada com os gusanos e que enfrenta pela direita o governo de Raul Castro. Mais ainda, as premiações que recebe e o papel que cumpre, como correspondente, em vários jornais mundo afora financiam sua movimentação, desde o seu retorno à Cuba em 2004, que objetiva polarizar politicamente com o regime e sangrá-lo sobre o aspecto da democracia interna no país.

Vejamos o que ela aconselha para Cuba em entrevista para Salim Lamrani, especialista nas relações entre Cuba e EUA: “É preciso liberalizar a economia. É claro que isso não pode ser feito de um dia para o outro, pois provocaria uma ruptura e disparidades que afetariam os mais vulneráveis. Mas é preciso fazê-lo gradualmente e o governo cubano tem a possibilidade de fazê-lo”.

A declaração de Yoani é emblemática, pois aponta tanto o que de fato a blogueira defende quanto quais os caminhos que o governo cubano tem optado por fazer nos últimos anos que é justamente trazer de volta para Cuba o capitalismo. Na mesma semana em que Yoani veio ao Brasil, passou praticamente despercebido por imprensa e pela própria esquerda a visita de uma comitiva de senadores democratas e republicanos dos Estados Unidos a Cuba para tratar de negócios com o governo. Os senadores foram recebidos pelo próprio Raul Castro em Havana. Esta não é a primeira vez que Raul se reúne com autoridades ianques. Em 2010, já havia se reunido com o ex-presidente norte-americano Jimmy Carter. "Conversamos sobre tudo, de mergulho autônomo às relações e, é claro, sobre Alan Gross (norte-americano preso em Cuba sob a acusação de espionagem.)", disse na sexta-feira o senador democrata Patrick Leahy. A visita foi anunciada no próprio jornal Granma, órgão oficial do governo cubano.

Restauração capitalista a todo vapor

Quem pouco acompanha as movimentações em Cuba pode estranhar este tipo de visita, porém a reaproximação com os ianques, com as multinacionais e com o capitalismo em geral tem sido a cada ano que passa uma realidade concreta e sendo empreendida pelo próprio governo.

Nos anos 90, ainda sobre o comando de Fidel, já uma série de acordos foram sendo feitos com países como Espanha e Canadá para a entrada de empresas multinacionais em setores importantes da economia cubana como extração e processamento de níquel, o turismo, onde 48% do sistema de hotelaria está nas mãos da iniciativa privada, as telecomunicações e a exportação petroleira quando em 1999 abriram-se 112.000 km2 de sua zona de exclusão no Golfo de México para empresas estrangeiras.

Aliado a esta questão, o VI Congresso do Partido Comunista, realizado em abril do ano passado, avalizou todas as medidas de ajuste implementadas pelo governo nos últimos anos e anunciou um amargo pacote econômico que prevê mais de um milhão de demissões (de forma gradual), o fim da carteira de alimentos (uma conquista da revolução) e o capitalismo das empresas mistas, que na prática já funcionam há anos. Estas mudanças já estão em curso desde 1991 quando se realizou o IV Congresso e em 1992 com a nova constituição. Em síntese, os alicerces de um modelo socialista foram se dissipando com o fim do monopólio do comércio exterior e a abertura para o investimento estrangeiro, a liquidação da planificação econômica e a substituição do plano único de desenvolvimento econômico pelo mercado como principal mecanismo de funcionamento do intercâmbio econômico e a instituição da propriedade privada dos meios de produção.

A radicalidade com que o governo acelera mudanças importantes na economia cubana devem fazer com que tiremos conclusões sobre os rumos que toma o país: Afinal, Cuba ainda trata-se de uma economia socialista? A resposta é um claro não. O governo “planifica” a serviço da economia mista, das multinacionais instaladas. Nisso o castrismo e Yoani Sanches não tem nenhum desacordo, ambos querem uma abertura econômica cada vez maior, porém ambos acreditam que isso deva se dar de forma “gradativa”. O governo não externaliza isso em palavras, mas na prática o aplica. Se utiliza de fraseologia progressista, como fez durante o congresso do PC afirmando, como o disse Raul, sobre a “irreversibilidade do socialismo”.

De agentes da revolução para agentes da restauração

Por outro lado o regime castrista tem grande simpatia ainda em boa parte do movimento de massas por ter feito a primeira e única até aqui revolução socialista da história da América Latina. Isso faz com que um setor amplo e majoritário da vanguarda não debataa Cuba real, dos dias atuais, em que a diluição das conquistas do processo revolucionário que derrubou a ditadura de Batista em 1959 está em pleno curso sobre a consciente direção do mesmo setor que antes havia expropriado a burguesia e o imperialismo.

Os inegáveis avanços sociais na saúde, na educação com a erradicação do analfabetismo e o acesso ao ensino superior, na agricultura e as conquistas esportivas são parte dos avanços que estão se perdendo e que são ilusoriamente defendidas ainda pelos castristas, porém estão sendo retiradas gradativamente (como defende Yoani) pelo governo. Velhos problemas sociais voltam a tona como a prostituição, as desigualdades sociais e a escassez de alimentos, além do problema da falta de democracia, que não é um mal menor, pois a falta da pluralidade política e sindical é uma questão determinante para o não surgimento de alternativas políticas concretas ao PC que passou de agente da revolução para agente da restauração capitalista no país.

Um convite à reflexão aos que defendem o governo cubano

No fim das contas, as divergências entre Yoani Sanchez e o governo cubano estão no campo político, porém no campo da economia não parece haver grandes diferenças entre ambos que desejam e militam cotidianamente para abrir a economia cubana para o capital estrangeiro, aplicar austeridade sobre o povo e reverter as conquistas da revolução. A pergunta que fica depois de ver que as posições do governo cubano convergem com a da blogueira é o que pensam os que defendem intransigentemente o atual governo cubano sobre a política econômica do governo? São favoráveis ao pacote aprovado no VI Congresso do PC? E são favoráveis também a falta de liberdade a organização político e sindical? E a estreitar relações com o imperialismo? Essas são movimentações não da blogueira, claramente conservadora, mas do governo que estes defendem.