Cuba: Mais “papistas” que o Papa?

| Por Pablo Stefanoni, tradução Makaiba e Eloisa Mendonça

Com respeito às mudanças que estão ocorrendo em Cuba, geralmente, são analisados apenas os aspectos econômicos: como em que medida se dá a abertura de mercados, o aumento do trabalho por conta própria, o papel das forças armadas na administração das empresas mais avançadas, os investimentos estrangeiros, etc. Porem, não é dado muita importância às mudanças ideológicas que também estão acontecendo na ilha: sem dúvida nenhuma toda mudança necessita de uma visão de mundo correspondente para legitimar o processo e construir um horizonte nacional mais ou menos compartilhado. E é aí que a visita do Papa (e a santa padroeira de Cuba – La Virgen Del Cobre) parece ter uma importância fundamental.

No futuro os historiadores poderão consultar num acervo de publicações antigas o jornal cubano Juventude Rebelde e encontrar nas suas páginas a reportagem sobre essa visita do Sumo Pontífice a Ilha, em uma série de artigos a primeira vista surpreendentes (ao menos suponho que surpreenderão aqueles que só lêem publicações de esquerda que nunca criticam o governo de Cuba, como meus amigos do Rebelion.org). Surpreendentes porque a imprensa cubana tem conseguido o milagre – já que estamos falando do Papa – de transformar o ex-chefe da inquisição em um padre quase progressista… E já que a imprensa costuma manipular e mentir sobre a Ilha, só vou usar as citações do Juventude Rebelde (no qual quase ninguém faz notas apologéticas sobre Cuba, onde quase nunca se cita sua mídia estatal, talvez por causa da baixa qualidade de seus conteúdos).

Em um artigo de 28 de março, o jornalista Luiz Hernández Serrano relembra a visita de João Paulo II com um tom tão positivo que poderia ter sido escrito no jornal da Ação Católica. Ele destaca que João Paulo II “imprimiu um grande dinamismo no Vaticano, desenvolveu um projeto de nova evangelização que levou a dezenas e dezenas de países, encaminhando o pensamento social da Igreja Católica sobre os temas contemporâneos mais importantes”. Um desses temas contemporâneos, que o cronista esqueceu, foi a contribuição do Santo Papa para o colapso do socialismo real neo-stalinista no Leste Europeu. Além do seu trabalho em prol do retrocesso da Teologia da Libertação, teve ainda o seu apoio a revitalização das campanhas contra o aborto e outros direitos reprodutivos. Juventude Rebelde recorda ainda que o Papa polonês defendeu a “globalização da solidariedade”. Com o exagero dos novos convertidos, o Papa em 98, assim que chegou a Cuba, “beijou a terra cubana”, e desde então o ex chefe de Estado do Vaticano tem sido mencionado como “líder espiritual”, ou como o “novo sucessor de Pedro, que também nos concedeu o privilégio de visitar-nos, abençoar-nos…” Quando alguém visita a nossa casa, temos que ser cortês, também há que se buscar aliados contra o imperialismo… Mas, precisava de tudo isso?

O mesmo ocorre com Ratzinger. Os jornais normalmente falam de missas, mas o Juventude Rebelde refere-se sempre a cerimônia como a Santa Missa -“O presidente cubano assiste a Santa Missa do Papa Bento XVI na Praça da Revolução em Havana”. E o termo Santa Missa se repete no Granma e Trabalhadores – outros dois veículos informativos de Cuba. Também se informou que o termo “Praça da Revolução” encheu o twitter enquanto Sua Santidade estava lá, e que foram digitadas 2 500 mensagens por minuto de #BenedictoCuba. Para não ficar atrás, o site oficial Cuba Debate mostrava “espetaculares imagens aéreas da Praça da Revolução durante a Missa” (eles se esqueceram de adicionar Papai Noel, mas se referiram ao Papa como o Santo Padre). As fotos de alta qualidade são oferecidas como “um presente de Cuba Debate” aos seus leitores.

O enviado do jornal Clarín de Buenos Aires, Sergio Rubin, logo ao chegar a Havana, relatou que “no intuito de eliminar a tensão política para a visita do Papa e destacar o seu significado espiritual, o governo montou uma redação invejável com projeções de curtas sobre o que é feito no Vaticano, o processo de proclamação dos santos e para amenizar a tarefa jornalística com a Ave Maria, também pôs a venda livros sobre Fidel e Che Guevara. Nem nas super católicas Polônia e Irlanda, quando receberam pela primeira vez a visita de João Paulo II, se chegou a tanto”. O próprio Raul Castro exaltou o papel unificador da nação personificado na Virgen Del Cobre, que, como parece, já ocupa um lugar simbólico no novo nacionalismo pós-comunista. Isso é algo muito diferente do velho debate sobre cristianismo e revolução. O presidente cubano relembrou que “nós comemoramos o quarto centenário da descoberta e da presença da imagem da Virgen de La Caridade Del Cobre que tem bordado em seu manto o escudo nacional. A recente peregrinação de La Virgen por todo o país uniu nosso povo, crentes e não crentes, em um acontecimento de grande significado”. A referência a “crentes e não crentes” está presente em todos os artigos e discursos relacionados à visita do Papa. Raul também mediu suas palavras para que cada uma delas se encaixasse na Doutrina Social da Igreja, como quando se referiu aos “modelos sociais e ideologias que destroem os valores espirituais e produzem exclusão e egoísmo”, ou quando criticou a ciência, as finanças e o consumismo atuais. Talvez, por tudo isso, que o governo cubano não mostrou nenhum entusiasmo para conseguir uma entrevista de Hugo Chaves com o Santo Padre, um Chaves menos amigo da realpolitik que Ratzinger ou Raúl.