Kaddafi e OTAN: duas caras da contra-revolução na Líbia

| Silvia Santos (Executiva Nacional do PSOL)

Finalmente, a Milícia Popular entrou em Trípoli trás duros combates. As principais cidades do país estão em mãos dos rebeldes, e ainda que tropas leais a Kaddafi continuem resistindo ferozmente nas cidades de Sirte e de Bani Walid o destino do ditador está selado. Sua derrota constitui um claro triunfo do levante popular e das milícias que durante meses vem resistindo e lutando corajosamente contra o sanguinário ditador, o novo “Calígula” do norte da África. Soma-se assim aos triunfos dos povos vizinhos da Tunísia e Egito, que com a mesma coragem foram capazes de acabar com ditaduras de várias décadas, detonando o processo revolucionário nos países do norte da África.

O imperialismo se considera o vencedor, atribuindo a queda de Kaddafi aos seus bombardeios. Com esta afirmação, seu objetivo político é claro: influenciar e manipular o futuro governo, hoje o CNT, quem já se comprometeu em respeitar os contratos com as multinacionais do petróleo assinados na época com Kaddafi, se apresentando aos olhos do mundo como defensor da “democracia”.

Mas, por outro lado, também o presidente venezuelano Hugo Chávez considera que foi a OTAN quem triunfou. Seu objetivo político também está claro: continuar apoiando e sustentando o ditador, a quem sempre defendeu. Sob esta influencia setores de esquerda em diversas partes do mundo, com o mesmo discurso, chamam as milícias de “mercenários da OTAN” e negam o processo revolucionário no norte da África.

Esta não é uma polêmica secundária, pois de nosso ponto de vista, o apoio ao criminoso Kaddafi mancha definitivamente àqueles que se reivindicam de esquerda ou “progressistas”.
OS BOMBARDEIOS DA OTAN NÃO TRANSFORMAM KADDAFI EM ANTIIMPERIALISTA
Chávez sabe muito bem quem é Kaddafi. Assim como sempre soube quem era Bem Alí e Mubarak, os dois ditadores derrocados pelas revoltas populares na Tunísia e no Egito que detonaram o processo chamado de “primavera árabe”, que também foram apoiados pelo presidente venezuelano até ultimo minuto. No entanto, a intervenção da OTAN com seus bombardeios e com sua campanha se apresentando como paladino da “democracia”, junto ao caráter claramente pró imperialista da cúpula do CNT, (Conselho Nacional de Transição) somado a política de Chávez, criaram confusão em setores que se reivindicam socialistas, e por isso é necessário voltar a precisar as características do governo e do regime do coronel líbio.

Há quarenta anos iniciou-se como um regime nacionalista burguês, parte do nacionalismo árabe a época encabeçado pelo egípcio Gamal A. Nasser. Nacionalizou o petróleo e teve confrontos reais com o imperialismo. No entanto, pelo caráter burguês e ditatorial de seu regime, voltou a se aproximar do imperialismo até virar, no mínimo nos últimos 10 ou 15 anos, um fiel capacho dos interesses europeus e ianques. Enquanto vendia petróleo aos diversos países imperialistas, abriu as portas para a Repsol, British Petroleum, a Total, a Eni, assim como assinou bilionários contratos com empreiteiras européias. Assim cai o principal argumento de Chávez, pois a intervenção da OTAN não foi “para controlar o petróleo” visto que já o controlava.

Mas Kaddafi colaborou também politicamente, somando-se à luta “antiterrorista” e entregando ao Reino Unido os nomes dos nacionalistas irlandeses que tinham treinado na Líbia; aos EUA todas as informações sobre os líbios suspeitos de participar junto a Bin Laden, e tornou-se guardião dos campos de concentração onde internaram milhares de africanos que buscavam entrar na Europa. Foi assim cúmplice da política migratória da União Européia, verdugo dos imigrantes africanos, sendo que foram fartamente denunciadas as torturas nos centros de detenção líbios financiados por Berlusconi da Itália. Essa prática de extermínio assinada com a Comissão Européia como “Agenda de cooperação para fluxos migratórios” significaram 50 milhões de euros para os cofres de Kaddafi!
Fica insustentável o argumento que os bombardeios da OTAN foram contra um líder nacionalista que defendia a nação Líbia!
Parcelas da vanguarda árabe, que viam com expectativa o presidente Chávez e o consideravam um potencial aliado, chegaram à conclusão correta que Chávez está do outro lado, do lado da contra revolução, pois sustenta Kaddafi. Infelizmente, setores da esquerda latino americana, ainda relutam em tirar esta conclusão. Também, alguns que reconhecem o papel nefasto de Chávez, fazem verdadeiro “malabarismo” político dividindo a política interna do Presidente venezuelano da externa: enquanto criticam seu compromisso com os ditadores africanos, continuam sustentando seu governo nas terras de Simon Bolívar!

OS PROTAGONISTAS DO LEVANTE LIBIO
O levante espontâneo das massas líbias que começou pacífico teve que responder à feroz repressão desencadeada pelo regime de Kaddafi. Ao invés de amedrontar, levou à formação das Milícias rebeldes, que se armaram com armas capturadas assaltando delegacias ou quartéis e das que receberam dos militares passados do lado do povo. Ao que tudo indica, não tem mando unificado, sendo que seus jovens combatentes começaram se reunindo nos povoados ou Barrios e partiam para a guerra com as armas conseguidas. A jornalista Maite Rico, na sua nota de El País/Espanha de 27/08 afirma: “o poder civil não termina de controlar as quase cinqüenta milícias nascidas ao calor da revolta de fevereiro”. E Patrick Cockburn, em no jornal Página 12/Argentina descreve que “setores camponeses tribais, como os oprimidos bereberés obtiveram poder na guerra reunindo a milícia mais efetiva em combate”. A OTAN, quem sempre se negou a armar às milícias cumpriu um papel secundário na liberação de Trípoli. Explica o jornalista Miguel Lamas/Correspondência Internacional: “Os ataques da OTAN não podem explicar a queda da capital, cidade de dois milhões de habitantes onde estavam concentradas as tropas de elite do regime. Somente a intervenção da milícia popular e uma deserção massiva das tropas kaddafistas desmoralizadas explicam a queda de Trípoli. Militarmente a campanha de bombardeios por si só não pode quebrar a defesa terrestre de uma grande cidade, a menos que demolisse a cidade completa. Isso foi o que aconteceu em 2004 em Faluya (Iraque), cidade que foi demolida pelos bombardeios “… “Ainda assim foi necessária a intervenção das forças terrestres e o combate casa a casa para derrotar a defesa da resistência”!

Por sua vez, o escritor e ensaísta Santiago Alba Rico, em entrevista publicada no site Rebelion, cita a Angelo Del Boca, historiados do colonialismo italiano e biógrafo de Kaddafi pra mostrar a importância da batalha do povo da cidade de Gebel Nafusa: “Foi decisivo… em que pese à falta de armas pesadas os rebeldes de Gebel nos últimos dias puderam capturar armas pesadas, tanques, etc. para entrar na capital líbia. As rebeliões sempre começaram no Gebel, também durante a presença italiana. Quando os italianos desembarcaram em Trípoli em outubro de 1911 não foram os turcos os que resistiram, mas os montanheses de Gebel que baixaram a cavalo dos morros e massacraram 550 soldados italianos… Os jovens rebeldes de hoje pertencem às mesmas famílias dos rebeldes de cem anos atrás..”

A espontaneidade e o caráter popular e massivo da rebelião também se evidenciam na composição heterogênea da milícia onde se misturaram os jovens abrumados pelo desemprego e a miséria do país, com militares desertores da primeira hora de Bengasi, com islamitas que se somaram depois; oportunistas do regime kaddafistas que pularam do barco e com liberais pró ocidentais.

Setores da esquerda que acusam as milícias de “mercenários da OTAN” alem de expressar um profundo desprezo pelo povo líbio se negam a enxergar o processo como ele é, com suas contradições. No site “AMAUTA” numa nota de Gilbert Achcar afirma: “Muitas brigadas rebeldes se converteram em milícias, algumas das quais se negam a obedecer ás ordens ou colaborar com aqueles que ocupavam cargos militares ou de segurança no regime de Kaddafi e que mudaram de bando para se unir com a rebelião. Alguns líderes rebeldes chamaram a purgar os leais do regime de Kaddafi das futuras forças de segurança dando prioridade a aqueles que lutaram contra o ditador“.

Por sua vez, a jornalista Shashank Bengali em Real News Network de 14/04 afirma que “… os líbios sentem realmente que este levante tem um caráter autóctone. Desejam receber apoio exterior em forma de armas e reconhecimento do governo de oposição líbio e não desejam que a rebelião seja controlada por alguma força estrangeira…”.

Assim, se equivocam mais uma vez aqueles setores que, desde uma posição de suposto antiimperialismo, tentam deslegitimar a revolta popular manipulando a realidade e acusando os rebeldes de monárquicos por levantar a bandeira com a estrela e a meia lua! No seu esquematismo e cumplicidade com o regime sanguinário de Kaddafi, não querem ver que a bandeira verde criada por Kaddafi era a bandeira da ditadura, e que os monárquicos são absolutamente minoritários na Líbia. “Ela não foi expressão de uma volta ao passado nem nostalgia do ex. rei Idriss, mas uma clara rejeição ao regime despótico” assinala o escritor Santiago Alba Rico na sua nota supracitada.

A OTAN INTEVEIO PARA IMPEDIR UM LEGÍTIMO TRIUNFO DAS MILICIAS POPULARES
Sempre afirmamos que o imperialismo não interveio como defensor da democracia para se livrar de Kaddafi. Este foi seu aliado fiel e útil a seus fins contra-revolucionários, como demonstramos neste texto. O papel de Kaddafi por outro lado, está fartamente documentado e constitui um fato que ninguém minimamente sério e objetivo pode negar. Mas são muitas as vozes autorizadas que afirmam que efetivamente, a intervenção da OTAN teve como objetivo impedir um triunfo claro da revolução popular na Líbia.

“A posição dos EUA e da OTAN é uma conspiração flagrante contra a revolução popular na Líbia e uma tentativa de manter as forças de Kaddafi em atividade até que consigam controlar o CNT e tal vez também algumas lideranças rebeldes. Somente assim derrubarão Kaddafi, enquanto conspiram contra o povo, a revolução e o futuro da Líbia” declarou Munir Shafiq, antigo dirigente de uma corrente maoísta de Al Fatah e coordenador do Congresso Islâmico Nacionalista a Aljazeera.net em 04/0702011. Desde as fileiras rebeldes, Abu Bakr Al Faryani, porta voz do Conselho Revolucionário de Sirte, afirmou ao jornal libanês Al-Ajbar em 02 de Junho: “A própria OTAN avança lentamente em suas operações militares contra as brigadas de Kaddafi a fim de mantê-lo durante mais tempo no poder e incrementar deste modo o preço que obrigarão à oposição a pagar às potencias mundiais e as grandes empresas que estão por trás”. Por sua vez, The Economist, (16/06) desde Londres estampou: “Os governos ocidentais tem a esperança que os rebeldes não conquistem Trípoli… Com o risco que significaria que deram seu merecido castigo aos leais a Kaddafi que achassem no caminho. Preferem que o regime imploda desde dentro”. O jornalista Tom Dale comentou a respeito: “Porque as potencias ocidentais preferem um golpe por parte do círculo íntimo de Kaddafi à vitória do exército rebelde? Pois o golpe palaciano comportaria um acordo negociado entre os elementos do antigo regime que ainda sustentam Kaddafi e a direção rebelde que, por sua vez, abrange muitas antigas personalidades do regime. Os governos ocidentais querem estabilidade e influência, e para eles as figuras do antigo regime, fora a família Kaddafi, são a melhor garantia neste sentido”.

Desta forma, enfraquecendo as milícias, negociando com o CNT e mantendo até ultimo momento canais com a ditadura, a intervenção imperialista buscou se legitimar frente ao mundo como defensor da democracia enquanto fortalecia seu papel de árbitro que lhe assegurasse o controle e a influência na nova Líbia pós ditadura.

O imperialismo e o CNT têm como primordial objetivo desarmar os rebeldes

Se tivesse querido apoiar a luta pela democracia, o imperialismo teria entregado armas aos rebeldes, coisa que sempre evitaram e que por outra parte, a cúpula do CNT nunca solicitou. Encabeçado por Mustafá Abdel Yalil quem fora ministro da Justiça de Kaddafi até começos da rebelião e pelo primeiro ministro Mahmud Yibril, economista formado nos EUA e responsável pelo Conselho de Desenvolvimento da ditadura entre 2007 e 2011, que promoveu a abertura econômica da Líbia, o Conselho Nacional de Transição cumpre um papel claramente pró imperialista. Tanto, que não somente comprometeram-se a não quebrar nenhum dos contratos assinados por Kaddafi com o imperialismo como insistem em que não deve haver represálias contra as figuras do antigo regime. Isto tem a ver com que declararam que convocarão as forças de segurança para garantir a reconstrução e da segurança do país. Ou seja, vão a apelar ao exército e à polícia do ditador para garantir a segurança na Líbia liberada de Kaddafi!

Os EUA e a Europa defenderam até o fim o ditador, da mesma forma como fizeram com Mubarak e Bem Al. Mas quando viram que estes já não mais eram capazes de garantir estabilidade necessária aos seus interesses, os abandonaram. Na nova situação, sua estratégia é outra: apostar na democracia controlada pactuando com velho-novos agentes, para volver à situação anterior de livre exploração das riquezas fundamentalmente petrolíferas do país.

Mas, alguns setores da esquerda que consideram a queda de Kaddafi como um triunfo da OTAN na Líbia, tal vez a seu desgosto aceitam que no Egito e na Tunísia houve um levante que derrocou a ditadura. No entanto, não existe uma diferença qualitativa nos governos e regimes que se impuseram, ao menos pelo momento naqueles dois países, onde setores militares e burgueses pró imperialistas mantêm um considerável poder. A diferença do seu comportamento, então, é que estes setores da esquerda consideram definitivamente Kaddafi como um governante popular e antiimperialista!

O futuro assim não está ainda definido, pois estes triunfos populares tonificam as lutas que não param na Síria, Bahrein ou Argélia, e que influenciaram os jovens e trabalhadores na Grécia, Espanha, Itália ou no Reino Unido, e chegaram até Wall Street evidenciando a força do processo revolucionário do norte da África.

O destino da revolução na Líbia está nas mãos da milícia e das posições políticas que adotarão e do desenvolvimento do conjunto do processo ao menos nos países da região. Assim como também, o êxito da empreitada imperialista se baseia no desarmamento das mesmas.

De tal forma, que a única política verdadeiramente de esquerda passa por defender as milícias armadas e os comitês populares, o fim da intervenção militar imperialista, a constituição de um governo das milícias e dos setores populares que derrotaram a ditadura e a convocatória de uma Assembléia Nacional Constituinte soberana que defina democraticamente os rumos do país.
A maneira de conclusão: Não triunfou o socialismo, mas são revoluções exemplares!

Infelizmente, existe um raciocínio esquemático em setores da esquerda que não reconhecem revoluções se elas não são dirigidas por socialistas. Mas os ditadores do Egito, Tunísia e Líbia não caíram por algum complot imperialista nem por reformas planejadas desde o poder, mas pela irrupção espontânea dos povos cansados de despotismo, repressão e fome. Não triunfou o socialismo, mas mudou dramaticamente a correlação de forças na região, onde o povo foi capaz de derrubar ferozes ditaduras agentes do imperialismo, desestabilizando assim o conjunto de ditaduras no norte de África e no Oriente Médio e o controle imperial que se enfraqueceu ainda mais isolando o enclave racista de Israel. Esta é a razão pela qual se abriram melhores condições para a construção de alternativas socialistas.

Chávez, por sua vez, continua sustentando sua visão conspiradora e apoiando os tiranos da região. Em 01 de Outubro pediu a deus pela vida de seu “amigo” Kaddafi e reiterou sua solidariedade com o chacal da Síria, o Presidente Bashar Al Assad, atribuindo os levantes a mercenários infiltrados pelos Estados Unidos na Síria e na Líbia para provocar uma invasão externa. Acompanhar este raciocínio não faz mais que enfraquecer os setores que se reivindicam da esquerda, que ao invés de se fortalecer e alegrar quando as massas se levantam, negam seu caráter espontâneo e legítimo para defender cruéis ditadores que disparam contra o povo, acabando de vez com princípios elementares da esquerda socialista.